quarta-feira, 5 de outubro de 2011

SEGUNDA VIDA DE SÃO FRANCISCO - Tomás de Celano

INDICE DOS CAPITULOS

PROLOGO

PRIMEIRO LIVRO

CAPITULO 1

Primeiro recebe o nome de João, depois o de Francisco. Profecia de sua mãe e dele próprio a seu respeito. Sua paciência na prisão

CAPITULO 2

Veste um soldado pobre. Ainda no mundo, tem uma visão sobre sua sua vocação

CAPITULO 3

Para agradar seus companheiros, faz-se o chefe de seu bando de jovens. Sua mudança

CAPITULO 4

Vestido de pobre, come com os pobres na porta da igreja de São Pedro. Esmolas que aí recebe

CAPITULO 5

Estando a rezar, o diabo lhe apresenta uma mulher. Resposta que Deus lhe dá. Sua ação com os leprosos

CAPITULO 6

O Crucificado fala com ele. Sua devoção

CAPITULO 7

A perseguição do pai e de seu irmão de sangue

CAPITULO 8

Vence a vergonha. Profecia das virgens pobres

CAPITULO 9

Pede esmolas de porta em porta

CAPITULO 10

A renúncia de Frei Bernardo

CAPITULO 11

A parábola que contou ao Papa

CAPITULO 12

Amor do santo para com esse lugar. A vida dos frades. Amor da própria santa Virgem para com ele

CAPITULO 13

Uma visão

CAPITULO 14

O rigor da disciplina

CAPITULO 15

Discrição de São Francisco

CAPITULO 16

Sua providência. Submete seu modo de viver à Igreja de Roma. Uma visão

CAPITULO 17

Pede o bispo de Óstia como representante do Papa

SEGUNDO LIVRO

INTRODUCÃO

CAPITULO 1



CAPITULO 2

Descobre a falsidade de um irmão tido por santo

CAPITULO 3

Outro caso semelhante. Contra a singularidade

CAPITULO 4

Em Damieta, prediz a derrota dos cristãos

CAPITULO 5

Descobre os pensamentos secretos de um frade

CAPITULO 6

Vê um demônio em cima de um frade. Contra os que quebram a unidade

CAPITULO 7

Livra os habitantes de Gréccio dos lobos e do granizo

CAPITULO 8

Pregando em Perusa anuncia uma sedição futura e recomenda unidade

CAPITULO 9

Profetiza a uma mulher a conversão do marido

CAPITULO 10

Descobre por inspiração que um frade escandalizou a outro e prediz que haveria de sair da Ordem

CAPITULO 11

Descobre que um jovem que entrou na Ordem não é guiado pelo espírito de Deus

CAPITULO 12

Cura um clérigo, mas prediz que, por causa de seu pecado, haverá de sofrer coisas piores

CAPITULO 13

Um frade assaltado por tentações

CAPITULO 14

Um homem que oferece pano, de acordo com o pedido do santo

CAPITULO 15

Convida seu médico para almoçar em uma ocasião em que os frades nada têm. Quantas coisas recebem do Senhor de uma hora para outra. Providência de Deus para com os seus

CAPITULO 16

Saindo de sua cela, abençoa dois irmãos, cujo desejo tinha conhecido pelo Espírito Santo

CAPITULO 17

Rezando, tira água de uma pedra e a dá a um aldeão com sede

CAPITULO 18

Dá de comer aos passarinhos. Um deles morre por causa de sua avareza

CAPITULO 19

Cumprem-se todas as predições a respeito de Frei Bernardo

CAPITULO 20

O frade tentado que quer ter alguma coisa escrita pela mão do santo

CAPITULO 21

Dá uma túnica ao mesmo religioso, satisfazendo seu desejo

CAPITULO 22

O aipo encontrado de noite, entre ervas agrestes

CAPITULO 23

Prediz fome para depois de sua morte

CAPITULO 24

Grandeza do santo e pequenez nossa

CAPITULO 25

Louvor à Pobreza

CAPITULO 26



CAPITULO 27

Começa a destruir uma casa na Porciúncula

CAPITULO 28

Na casa de Bolonha, põe os doentes para fora

CAPITULO 29

Nega-se a entrar numa cela com o seu nome

CAPITULO 30



CAPITULO 31

Exemplo da mesa que prepararam em Gréccio no dia da Páscoa. Apresenta-se como peregrino, a exemplo de Cristo

CAPITULO 32

Contra a preciosidade dos livros

CAPITULO 33

Exemplo do bispo de Óstia, e seu elogio

CAPITULO 34

O que lhe acontece numa noite ao usar um travesseiro de penas

CAPITULO 35

Dura correção para um frade que o toca com as mãos

CAPITULO 36

Castigo de um frade que apanhou uma moeda

CAPITULO 37

Repreende a um frade que quer guardar dinheiro com a desculpa de que é necessário

CAPITULO 38

O dinheiro transformado numa cobra

CAPITULO 39

Repreensão do santo, por palavras e por exemplo, aos que se vestem com luxo

CAPITULO 40

Diz que os que se afastam da pobreza serão corrigidos pela necessidade

CAPITULO 41

Recomendação da mendicância

CAPITULO 42

Exemplo do santo ao pedir esmola

CAPITULO 43

Seu exemplo no palácio do bispo de Óstia. Resposta ao bispo

CAPITULO 44

Sua exortação a pedir esmolas pelo exemplo e pela palavra

CAPITULO 45

Repreensão a um frade que não quer mendigar

CAPITULO 46

Corre ao encontro de um frade que traz esmolas e lhe beija o ombro

CAPITULO 47

Convence até alguns cavaleiros a pedir esmolas

CAPITULO 48

Em Alexandria, transforma um pedaço de frango em peixe

CAPITULO 49

O santo reprova um candidato que distribui suas coisas entre os parentes e não entre os pobres

CAPITULO 50

Uma visão relacionada com a pobreza

CAPITULO 51

Sua compaixão dos pobres. Inveja os que são mais pobres

CAPITULO 52

Correção a um frade que estava falando mal de um pobre

CAPITULO 53

Em Celano, dá uma capa a uma velhinha

CAPITULO 54

Outro pobre a quem dá sua capa

CAPITULO 55

Age de maneira semelhante com outro pobre

CAPITULO 56

A outro, dá a capa com a condição de não odiar seu patrão

CAPITULO 57

A outro pobre dá um pedaço de seu hábito

CAPITULO 58

Dá a uma pobre, mãe de dois frades, o primeiro Novo Testamento que houve na Ordem

CAPITULO 59

Deu sua capa a uma pobre que sofria da vista

CAPITULO 60

Aparecem-lhe, no caminho, três mulheres, que o saúdam e desaparece

CAPITULO 61

Tempo, lugar e fervor de sua oração

CAPITULO 62

Recitação devota das horas canônicas

CAPITULO 63

Como afasta as distrações na oração

CAPITULO 64

Êxtases

CAPITULO 65

Como se comporta depois da oração

CAPITULO 66

O bispo perde a fala quando o encontra a rezar

CAPITULO 67

Um abade experimenta a força de sua oração

CAPITULO 68

Conhecimento e memória

CAPITULO 69

A pedido de um dominicano, interpreta um texto profético

CAPITULO 70

Respostas a um cardeal

CAPITULO 71

Manifesta o que sabe a um frade que lhe recomenda o estudo

CAPITULO 72

Frei Pacífico vê espadas brilhantes em sua boca

CAPITULO 73

Eficácia de suas palavras e testemunho de um médico

CAPITULO 74

Pela virtude de suas palavras, Frei Silvestre espanta demônios de Arezzo

CAPITULO 75

Conversão de Frei Silvestre. Visão com que é agraciado

CAPITULO 76

Um frade libertado do assalto do demônio

CAPITULO 77

A porca malvada que comeu um cordeirinho

CAPITULO 78

Deve-se evitar a familiaridade com mulheres. Como conversa com elas

CAPITULO 79

Parábola contra os olhares para as mulheres

CAPITULO 80

Exemplo do santo contra a familiaridade exagerada

CAPITULO 81

Tentações do santo e como as supera

CAPITULO 82

O demônio o chama, e o tenta para a luxúria. Como o santo vence

CAPITULO 83

Livra um frade da tentação. Vantagem da tentação

CAPITULO 84

Assalto dos demônios. As cortes devem ser evitadas

CAPITULO 85

Um exemplo a propósito

CAPITULO 86



CAPITULO 87

Um frade libertado da tentação

CAPITULO 88

A alegria espiritual e seu louvor. O mal da tristeza

CAPITULO 89

Ouve um anjo tocando cítara

CAPITULO 90

Canta em francês quando está entusiasmado

CAPITULO 91

Repreende um frade triste, ensinando-lhe como se comportar

CAPITULO 92

Como tratar o corpo, para que não se queixe

CAPITULO 93

Contra a hipocrisia e a vaidade

CAPITULO 94

Confessa-se hipócrita

CAPITULO 95

Acusa-se de vanglória

CAPITULO 96

Palavras contra os que o louvam

CAPITULO 97

Palavras aos que se louvam

CAPITULO 98

Resposta que dá a uma pergunta sobre os estigmas. Cuidado com que os cobre

CAPITULO 99

Um frade consegue vê-las, enganando-o piedosamente

CAPITULO 100

Um irmão vê a chaga do peito

CAPITULO 101

Ocultamento das virtudes

CAPITULO 102

Humildade de São Francisco no comportamento, no porte e nos costumes. Contra o próprio parecer

CAPITULO 103

Sua humildade diante do bispo de Terni e diante de um homem rude

CAPITULO 104

Durante um capítulo, renuncia a ser superior. Uma oração

CAPITULO 105

Renuncia até a seus companheiros

CAPITULO 106

Palavras contra os que querem ser superiores. Descrição do frade menor

CAPITULO 107

Como e porque quer que os frades sejam submissos aos clérigos

CAPITULO 108

Respeito que demonstra para com o bispo de Ímola

CAPITULO 109

Humildade e caridade mútuas entre ele e São Domingos

CAPITULO 110

Como se recomendam um ao outro

CAPITULO 111

Para praticar a verdadeira obediência, quer ter sempre um guardião

CAPITULO 112

Descrição do obediente. As três obediências

CAPITULO 113

Não se deve mandar por obediência em coisas leves

CAPITULO 114

Joga no fogo o capuz de um frade, porque tinha vindo sem obediência, embora trazido pela devoção

CAPITULO 115

Exemplo de um bom frade. Costumes dos frades antigos

CAPITULO 116

Maldição e sofrimento do santo por causa de alguns de má conduta

CAPITULO 117

Revelação divina sobre a situação da Ordem, que nunca há de acabar

CAPITULO 118

Deus lhe revela quando é seu servo e quando não

CAPITULO 119

Penitência contra as palavras ociosas na Porciúncula

CAPITULO 120

Operosidade do santo e desgosto pelos preguiçosos

CAPITULO 121

Queixa feita ao santo dos preguiçosos e dos gulosos

CAPITULO 122

Como deve ser um pregador

CAPITULO 123

Contra os pregadores ávidos de glória. Explicação de um texto profético

CAPITULO 124

Amor do santo para com as criaturas sensíveis e insensíveis

CAPITULO 125

As criaturas lhe retribuem o amor. O fogo que não o queima

CAPITULO 126

Um passarinho pousa em sua mão

CAPITULO 127

O falcão

CAPITULO 128

As abelhas

CAPITULO 129

O faisão

CAPITULO 130

A cigarra

CAPITULO 131

Caridade de São Francisco. Apresenta-se como um modelo de perfeição na salvação das almas

CAPITULO 132

Solicitude com os súditos

CAPITULO 133

Compaixão para com os enfermos

CAPITULO 134

Compaixão para com os doentes do espírito. Os que fazem o contrário

CAPITULO 135

Os frades espanhóis

CAPITULO 136

Contra os que vivem mal nos eremitérios. Quer que tudo seja comum

CAPITULO 137

Dá a túnica a dois frades franceses

CAPITULO 138

Punição para os detratores

CAPITULO 139

Como deve agir com os companheiros

CAPITULO 140

Os ministros provinciais

CAPITULO 141

Resposta do santo sobre os ministros

CAPITULO 142

O que é a verdadeira simplicidade

CAPITULO 143

Frei João, o simples

CAPITULO 144

Encoraja a união entre seus filhos. Uma parábola sobre este assunto

CAPITULO 145

Como deseja que cortem o cabelo

CAPITULO 146

Como quer que se despojem os homens cultos que entram na Ordem

CAPITULO 147

Como deseja que estudem. Aparição a um companheiro ocupado com pregações

CAPITULO 148

Como se comove ao lhe falarem do amor de Deus

CAPITULO 149

Devoção aos anjos. O que faz por devoção a São Miguel

CAPITULO 150

Devoção a Nossa Senhora, a quem consagra particularmente a Ordem

CAPITULO 151

Devoção ao Natal do Senhor. Como quer que atendam a todos nesse dia

CAPITULO 152

Devoção ao Corpo do Senhor

CAPITULO 153

Devoção para com as santas relíquias

CAPITULO 154

Devoção para com a cruz. Um mistério oculto

CAPITULO 155

Como queria que os frades tratassem com elas

CAPITULO 156

Repreensão para alguns que gostam de ir aos mosteiros

CAPITULO 157

A pregação feita mais pelo exemplo que pelas palavras

CAPITULO 158

Recomendação da Regra de São Francisco. Um frade que a leva consigo

CAPITULO 159

Uma visão que recomenda a Regra

CAPITULO 160

Conversa com um frade sobre como tratar o corpo

CAPITULO 161

Promessa do Senhor em recompensa de suas enfermidades

CAPITULO 162

Exortação e bênção final aos frades

CAPITULO 163

Sua morte e o que faz antes de morrer

CAPITULO 164

Visão de Frei Agostinho em sua morte

CAPITULO 165

Aparição do santo pai a um frade, depois de sua morte

CAPITULO 166

Visão do bispo de Assis na morte do santo pai

CAPITULO 167





PROLOGO

Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. Ao ministro geral da Ordem dos Frades Menores.

Começa o prólogo.

1. Reverendíssimo Padre, aprouve ao santo conselho do último capítulo geral e a vós, não sem disposição da vontade divina, confiar à nossa pequenez escrever os atos e até os ditos de nosso Pai Francisco, para consolação dos presentes e memória dos futuros. Tivemos o privilégio, mais que outros, de um conhecimento direto, por convivência assídua e mútua familiaridade com ele. Apressamo-nos a obedecer com devoção a esse santo mandato, pois dele não poderíamos furtar-nos, de maneira alguma.

Mas, pensando melhor em nossa pouca capacidade, temos justificado receio de que tão importante assunto, deixando de ser tratado como deve, desagrade aos outros por nossa culpa. Pois tememos que esse manjar tão saboroso se torne insípido pela incapacidade de quem o prepara e possam dizer que o fizemos mais por presunção que por obediência.

Se o resultado de todo este trabalho devesse ser apresentado somente à vossa benevolência, bem-aventurado pai,e não ao público, receberíamos com prazer tanto as correções como uma agradável aprovação. Quem conseguirá, nessa profusão de atos e palavras, ponderar todas as coisas com o cuidado suficiente para que todos os ouvintes aceitem da mesma maneira tudo que for dito?

Entretanto, como somos simples, buscando apenas o proveitode todos e de cada um, pedimos aos leitores que nos julguem com bondade e perdoem ou corrijam essa simplicidade do narrador, de maneira que não se perca a reverência devida àquele de quem estamos falando.

Nossa memória, prejudicada pelo tempo como a das pessoas incultas, tem dificuldade para dominar as alturas de suas palavras ou a extraordinária excelência de seus feitos, o que seria difícil mesmo para a acuidade de uma inteligência exercitada, mesmo diante dos fatos. Queiram desculpar-nos todos por nossa imperícia, levando em consideração a autoridade de quem insistentemente nos mandou fazer este trabalho.

2. Este opúsculo contém, em primeiro lugar, alguns fatos admiráveis da conversão de São Francisco, não colocados nas biografias anteriores porque não tinham chegado ao conhecimento do autor.

Além disso, quisemos apresentar e demonstrar esmeradamente qual foi o ideal generoso, amável e perfeito do santo pai para si e para os seus na execução dos ensinamentos divinos e no esforço de perfeição, que sempre manteve em seus afetos para com Deus e em seus exemplos para todos. Apresentamos também alguns milagres, de acordo com a oportunidade. Procuramos descrever o que foi possível em estilo simples e chão, procurando satisfazer, se possível, tanto os menos cultos como os mais doutos.

Por isso vos pedimos, pai cheio de bondade, que vos digneis consagrar com vossa bênção o dom, pequeno mas não desprezível, deste trabalho que não nos custou pouco. Corrigi os erros e cortai fora o que é supérfluo, para que aquilo que a vosso juizo parecer bem apresentado, de acordo com o vosso nome, Crescêncio, cresça por toda parte e se multiplique em Cristo. Amém.

Termina o prólogo.

PRIMEIRO LIVRO

Começa a "recordaçäo pela qual a alma aspira" dos feitos e palavras de nosso pai Säo Francisco

SUA CONVERSÃO

CAPITULO 1
Primeiro recebe o nome de João, depois o de Francisco.
Profecia de sua mãe e dele próprio a seu respeito. Sua paciência na prisão

3. Servo e amigo do Altíssimo, Francisco recebeu esse nome por providência divina, para que, por sua singular originalidade, mais rapidamente se difundisse por todo o mundo o conhecimento de sua missão. Ao renascer da água e do Espírito Santo, deixando de ser filho da ira para ser filho da graça, recebeu de sua mãe o nome de João.

Essa mulher, modelo de retidão, era de uma virtude notável, e teve o privilégio de se parecer com Santa Isabel, tanto pelo nome que deu ao filho como pelo espírito profético. Pois, quando os vizinhos se admiravam da grandeza de alma e da integridade de Francisco, dizia, como que inspirada: "Quem vocês pensam que vai ser este meu filho? Ainda vão ver que, pelos seus merecimentos, vai ser um verdadeiro filho de Deus".

De fato, era essa a opinião de várias pessoas quando, já mais grandinho, Francisco conquistou a simpatia de todos por suas boas qualidades. Evitava tudo que pudesse ser ofensivo e era um adolescente tão educado que não parecia filho de seus pais mas de gente mais nobre. O nome de João cabia bem à missão que recebeu, mas o de Francisco coube melhor à difusão de sua fama que chegou rapidamente a toda parte, quando ele se converteu totalmente a Deus.

Para ele a festa mais importante entre as de todos os santos era a de São João Batista, cujo nome insigne o havia marcado com uma força mística. Assim como entre os nascidos de mulher não apareceu nenhum maior do que João, entre os fundadores de Ordens não houve nenhum mais perfeito do que Francisco. Esta observação é digna de nota.

4. João profetizou fechado no segredo do seio materno. Francisco predisse o futuro no cárcere do mundo, quando ainda desconhecia os planos de Deus. De fato, numa ocasião em que os cidadãos de Perusa e os de Assis se viram envolvidos em não pequena desgraça por causa da guerra, Francisco foi preso com muitos outros e sofreu com eles as penúrias do cárcere. Os companheiros deixavam-se abater pela tristeza, lamentando-se do cativeiro, mas Francisco exultava no Senhor, ria-se e fazia pouco da cadeia. Ofendidos, os outros increparam esse louco e demente que se alegrava na prisão. Francisco respondeu profeticamente: "Por que vocês pensam que eu estou contente? Estou pensando em outra coisa: ainda vou ser venerado como santo por todo mundo". E, de fato, cumpriu-se o que ele disse.

Entre os prisioneiros havia um soldado soberbo e insuportável, que todos os outros resolveram ignorar. Mas a paciência de Francisco foi firme: tolerava o insuportável e conseguiu fazer com que todos voltassem às pazes com ele. Aberto a todas as graças, era um vaso escolhido de virtudes, já a transbordar de carismas por todos os lados.

CAPITULO 2
Veste um soldado pobre. Ainda no mundo, tem uma visão sobre sua sua vocação

5. Libertado pouco tempo depois, tornou-se ainda mais bondoso para com os necessitados. Resolveu, desde então, não desviar o rosto de pobre nenhum, de ninguém que lhe pedisse alguma coisa por amor de Deus.

Um dia encontrou um soldado pobre e quase nú, ficou com pena e, levado pelo amor de Cristo, deu-lhe generosamente a roupa elegante que estava vestindo. Não fez menos que São Martinho, ainda que as circunstâncias tenham sido diferentes, porque a intenção e o ato foram os mesmos. Francisco deu primeiro as vestes e depois o resto. Martinho entregou tudo primeiro e a roupa no fim. Ambos foram pobres e necessitados no mundo, ambos entraram ricos no céu. Aquele, soldado e pobre, vestiu um pobre com uma parte de sua roupa. Este, que não era soldado mas rico, vestiu com uma roupa boa um pobre soldado. Ambos, por terem obedecido ao mandamento de Cristo, mereceram uma visão de Cristo: Um foi louvado pela perfeição e o outro recebeu um honroso convite para o que ainda tinha que fazer.

6. De fato, pouco depois, teve a visão de um esplêndido palácio, em que encontrou toda sorte de armas e uma noiva belíssima. No sonho, foi chamado de Francisco e seduzido pela promessa de possuir todas aquelas coisas. Tentou, por isso, ir à Apúlia para entrar no exército e preparou com muita largueza tudo que era preciso, com pressa de ser armado cavaleiro. É que seu espírito, ainda carnal, estava dando uma interpretação mundana à visão que tinha tido, na realidade muito mais valiosa nos tesouros da sabedoria de Deus.

Foi assim que uma noite, estando a dormir, ouviu pela segunda vez em sonhos alguém que lhe falava, interessado em saber para onde estava indo. Contou seus planos e disse que ia combater na Apúlia. Mas a voz insistiu:

- "Quem lhe pode ser mais útil: o senhor ou o servo?"

- "O senhor", respondeu Francisco.

- "Então, por que preferes o servo ao senhor?"

- "Que queres que eu faça, Senhor?" perguntou Francisco.

- "Volta para a terra em que nasceste, porque é espiritualmente que vou fazer cumprir a visão que tivestes".

Voltou imediatamente, já exemplarmente obediente e, deixando de lado a própria vontade, passou de Saulo a Paulo. Paulo foi derrubado e, duramente castigado, proferiu palavras admiráveis. Francisco trocou as armas materiais pelas espirituais, e recebeu o comando de Deus no lugar da glória militar. Aos muitos que se admiravam de sua invulgar alegria, dizia que haveria de ser um grande príncipe.

CAPITULO 3
Para agradar seus companheiros, faz-se o chefe de seu bando de jovens. Sua mudança

7. Começou a transformar-se num homem perfeito e passou a ser outra pessoa. De volta para casa, foi seguido pelos filhos de Babilônia, que tentavam levá-lo para onde não queria, mesmo contra sua vontade. Porque um grupo de jovens de Assis, que antes o tinha tido como líder de suas aventuras, continuoua convidá-lo a seus banquetes, em que sempre se serviam lascívia e chocarrices. Escolheram-no como chefe, porque tinham experiência de sua liberalidade e esperavam que pagasse as despesas de todos. Obedeciam para encher a barriga e se submetiam para poder saciar-se.

Francisco não rejeitou a honra para não parecer avarento e, mesmo absorvido em suas santas reflexões, não deixou de se comportar como devia: preparou um banquete suntuoso e mandou servir iguarias em abundância. Saturados a ponto de vomitar, mancharam as praças da cidade com suas canções de bêbados.

Francisco acompanhava-os como comandante levando o cetro na mão, mas, devagar, foi se distanciando deles. Interiormente já estava surdo a tudo aquilo, e ia cantando a Deus em seu coração. Como ele mesmo contou depois, foi tamanha a doçura divina que sentiu nessa ocasião, que não podia dizer palavra ou dar um passo. Invadira-o um afeto espiritual que o arrebatou para as realidades invisíveis, diante das quais achou que todas as coisas da terraeram absolutamente frívolas, sem valor.

Estupenda bondade de Deus, que aos que fazem as coisas menores dá as maiores, e no meio de um dilúvio de águas caudalosas preserva e promove o que é seu. Cristo alimentou com pães e peixes a multidão e não repeliu os pecadores de sua mesa. Convidado para ser rei, fugiu e subiu à montanha para rezar. São mistérios de Deus, que Francisco entendeu e que, embora ignorante, foi levado a compreender com perfeição.

CAPITULO 4
Vestido de pobre, come com os pobres na porta da igreja de São Pedro.
Esmolas que aí recebe

8. Desde esse tempo, passou a ser o maior amigo dos pobres, fazendo ver, nesse começo, a perfeição que haveria de atingir mais tarde. Muitas vezes despiu-se para vestir os pobres, procurando assemelhar-se a eles se não de fato, nesse tempo, pelo menos de todo coração.

Numa peregrinação a Roma, o amor da pobreza levou-o a tirar sua roupa rica e a vestir a de um pobre. Juntou-se alegremente aos mendigos no átrio da igreja de São Pedro, onde são numerosos, e comeu avidamente com eles, sentindo-se seu companheiro. E se não fosse pela presença de conhecidos, teria feito a mesma coisa muitas outras vezes.

Diante do altar do príncipe dos apóstolos, admirado de serem tão poucas as esmolas lá deixadas pelos visitantes, jogou uma mão cheia de dinheiro, para mostrar que devia ser especialmente honrado por todos aquele que por Deus foi honrado acima de todos os demais.

Muitas vezes presenteou sacerdotes pobrezinhos com paramentos sagrados, pois prestava a todos a devida honra, mesmo nos graus mais inferiores. Absolutamente íntegro na fé católica e destinado a receber uma missão apostólica, sempre teve a maior reverência para com os ministros de Deus e os seus ministérios.

CAPITULO 5
Estando a rezar, o diabo lhe apresenta uma mulher.
Resposta que Deus lhe dá. Sua ação com os leprosos

9. Ainda se vestia como um leigo mas já tinha espírito religioso e começou a preferir os lugares solitários, onde era freqüentemente visitado por inspirações do Espírito Santo. Sua fundamental doçura o atraíra e arrebatara, tão transbordante desde o início, que nunca mais o abandonou durante toda a vida.

Mas quando se retirava para lugares escondidos por serem melhores para a oração, o demônio tentava perturbá-lo com diabólica malvadeza. Despertou-lhe a lembrança de uma mulher monstruosamente corcunda que havia em sua cidade. Dizia que o tornaria igual a ela se não desistisse de seus propósitos.

Confortado pelo Senhor, teve a alegria de uma resposta de salvação e de graça: "Francisco, disse-lhe Deus em espírito, se queres o meu conhececimento, tens que trocar as coisas vãs e carnais pelas espirituais, tens que preferir as coisas amargas às doces, tens que desprezar a ti mesmo. Haverá uma transformação e tudo isso vai te parecer delicioso". Sentiu-se imediatamente obrigado a obedecer ao que Deus mandava e enfrentou a experiência.

Ele, que tinha natural aversão pelos leprosos, julgando-os a monstruosidade mais infeliz do mundo, encontrou-se um dia com um, quando andava a cavalo por perto de Assis. Ficou muito aborrecido e enjoado mas, para não quebrar o propósito que fizera, apeou e foi beijá-lo. O leproso estendeu-lhe a mão para receber alguma coisa e recebeu de volta o dinheiro e um beijo. Francisco tornou a montar e olhou para todos os lados mas, apesar de estar em campo aberto,e não viu mais o leproso.

Cheio de admiração e de alegria, poucos dias depois tratou de repetir a boa obra. Dirigiu-se para onde moravam os leprosos, deu dinheiro a cada um deles e beijou-lhes a mão e a boca. Assim substituiu o amargo pelo doce e se dispôs corajosamente para o que ainda estava por vir.

CAPITULO 6
O Crucificado fala com ele. Sua devoção

10. Já inteiramente mudado de coração, e a ponto de mudar de vida, passou um dia pela igreja de São Damião, abandonada e quase em ruinas. Levado pelo Espírito, entrou para rezar e se ajoelhou devotamente diante do crucifixo. Tocado por uma sensação insólita, sentiu-se todo transformado. Pouco depois, coisa inaudita, a imagem do Crucificado mexeu os lábios e falou com ele. Chamando-o pelo nome, disse: "Francisco, vai e repara minha casa que, como vês, está em ruinas". A tremer, Francisco espantou-se não pouco e ficou fora de si com o que ouviu. Tratou de obedecer e se entregou todo à obra. Mas, como nem ele mesmo conseguiu exprimir a sensação inefável que teve, também nós vamos nos calar.

Desde essa época, domina-o enorme compaixão pelo Crucificado, e podemos julgar piedosamente que os estigmas da paixão ficaram gravados nele desde esse dia: no corpo ainda não, mas sim no coração.

11. Coisa admirável e inaudita em nosso tempo! Quem não se há de admirar? Quem já viu coisa parecida? Quem não acreditará que Francisco estava crucificado quando foi para o céu, sabendo que mesmo quando não tinha desprezado plenamente o mundo exterior ouviu Cristo falar da cruz, em um milagre novo e inaudito? Desde essa hora, em que o amado se dirigiu a ele, sua alma ficou transformada. E o amor do coração manifestou-se posteriormente pelas feridas do corpo.

Mas desde essa época foi incapaz de deixar de chorar a paixão de Cristo, mesmo em voz alta, como se a tivesse diante dos olhos. Enchia os caminhos de gemidos, e não admitia consolação alguma lembrando-se das chagas de Cristo. Um dia encontrou um amigo íntimo e também o levou a chorar amargamente quando contou a causa de sua dor.

Mas não se esqueceu de cuidar daquela imagem nem deixou de obedecer a sua ordem. Na mesma hora deu dinheiro a um padre para comprar uma lâmpada e óleo, para que a imagem não ficasse um só momento sem a devida honra. E, sem preguiça, tratou de fazer o resto, trabalhando sem cessar na reparação daquela igreja. Porque, embora lhe tivesse sido falado da Igreja que Cristo conquistou com seu próprio sangue, não quis ir de repente ao alto, porque devia passar aos poucos da carne para o espírito.

CAPITULO 7
A perseguição do pai e de seu irmão de sangue

12. Entregue às obras de piedade, foi perseguido por seu pai que, julgando uma loucura seu serviço a Cristo, amaldiçoava-o por toda parte. Por isso o servo de Deus tomou como pai um homem do povo, muito simples, e pediu que lhe desse a bênção cada vez que seu pai o amaldiçoasse. Executou, assim, concretamente, o que foi dito pelo profeta: "Eles poderão amaldiçoar; tu abençoarás".

Devolveu ao pai o dinheiro que, como homem de Deus, gostaria de ter gasto na reforma daquela igreja. Fez isso a conselho do bispo da cidade, homem muito piedoso, que lhe disse não ser lícito gastar em coisas sagradas bens mal adquiridos. E disse, na frente de muitas pessoas que se tinham ajuntado: "Agora poderei dizer livremente: Pai nosso, que estais nos céus. Pedro Bernardone já não é meu pai, e a ele devolvo tanto o dinheiro como a minha roupa toda. Irei nu para o Senhor".

Era um homem verdadeiramente livre, para quem só Cristo já era suficiente! Nessa ocasião, foi possível ver que ele usava um cilício embaixo da roupa, e dava mais valor a ser que a parecer virtuoso.

Seu irmão de sangue também o feria com palavras envenenadas, a exemplo do pai. Numa manhã de inverno, vendo Francisco a orar coberto de trapos e tremendo de frio, disse com perversidade a um concidadão: "Pede a Francisco para te vender um tostão de suor". Ouvindo isso, o homem de Deus se alegrou muito e respondeu sorrindo: "De fato, vou vendê-lo muito caro ao meu Senhor".

Nada mais verdadeiro, porque recebeu o cêntuplo e até mil vezes mais neste mundo, e ainda ganhou, no mundo futuro,a vida eterna para si e para muitos outros.

CAPITULO 8
Vence a vergonha. Profecia das virgens pobres

13. Cuidou de reformar seus costumes delicados e de reduzir ao bem seu corpo desregrado.

Andava um dia por Assis, mendigando óleo para as lâmpadas da igreja de São Damião, que estava reparando. Dando com uma porção de pessoas a se divertir na porta da casa em que queria entrar, ficou envergonhado e se afastou. Mas soube volver seu nobre espírito para o céu, recriminou a própria fraqueza e venceu a si mesmo. Voltou imediatamente para a casa e expôs abertamente, diante de todos, as causas de sua vergonha. Como que embriagado de espírito, pediu óleo em francês e o conseguiu.

Com o maior fervor, animou todo mundo a reconstruir a referida igreja e profetizou diante de todos, em francês, que naquele lugar haveria no futuro um mosteiro de virgens consagradas a Cristo. Falava sempre em francês quando se sentia tomado pelo ardor do Espírito Santo, proferindo palavras ardentes, como se conhecesse desde então que haveria de ser venerado de maneira toda especial por esse povo.

CAPITULO 9
Pede esmolas de porta em porta

14. Desde que começou a servir o Senhor comum de todas as coisas, gostava de fazer coisas comuns, fugindo às singularidades, que sempre acabam manchadas de algum vício.

Trabalhando duro na reforma daquela igreja, para obedecer a Cristo, transformou-se de um jovem excessivamente delicado em um homem rude e acostumado ao trabalho. O padre ficou com pena. Vendo-o tão extenuado, começou a dar-lhe todos o dias alguma comida especial, embora não saborosa, porque era pobre. Recebendo a esmola, Francisco louvou a discrição do sacerdote, dizendo a si mesmo: "Não hás de encontrar em toda parte um sacerdote como este, que sempre te sirva desse jeito. Não é essa a vida de um homem que professa a pobreza. Não te deves acostumar com isso: acabarás voltando ao que desprezaste e terás outra vez coisas finas em abundância. Levanta depressa e vai pedir restos de porta em porta!"

Foi mendigar comida cozida pelas portas de Assis. Quando viu o prato cheio de restos misturados, sua primeira reação foi de nojo, mas lembrou-se de Deus, venceu a si mesmo e comeu aquilo com alegria da alma. O amor suaviza tudo e faz o amargo ficar doce.

CAPITULO 10
A renúncia de Frei Bernardo

15. Um certo Bernardo, de Assis, que depois foi modelo de perfeição, desejando, a exemplo do homem de Deus, desprezar completamente o mundo que passa, foi pedir seu conselho, dizendo:

- "Pai, se alguém tivesse possuído por muito tempo os bens de algum senhor, e já não os quisesse mais, qual seria a melhor coisa a fazer?" O homem de Deus respondeu que deveria devolver tudo ao senhor de quem recebera. Então Bernardo disse:

- "Sei que tudo que tenho me foi dado por Deus. Estou resolvido a dar tudo de volta, de acordo com o teu conselho". Respondeu o santo:

- "Se queres provar o que dizes, iremos bem cedo à igreja, tomaremos o Evangelho e pediremos conselho a Cristo".

Por isso foram à igreja logo de manhã, rezaram primeiro com devoção e depois abriram o Evangelho, dispostos a fazer a primeira proposta que ocorresse. Abriram o livro e foi este o conselho de Cristo: "Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens, edá-o aos pobres". Na segunda vez: "Não leveis nada pelo caminho". E numa terceira vez: "Quem quer vir após mim, renuncie a si mesmo". Bernardo não perdeu tempo para cumprir tudo isso e não deixou de observar uma vírgula do conselho recebido.

Em pouco tempo, foram muitos os que se converteram dos corrosivos cuidados do mundo e, guiados por Francisco para o bem infinito, voltaram para a casa paterna. Seria longo contar como cada um deles conquistou o galardão da vocação superna.

CAPITULO 11
A parábola que contou ao Papa

16. Na ocasião em que se apresentou com os seus ao papa Inocêncio, para pedir a aprovação de sua regra de vida, o Papa achou que seu propósito estava acima de suas forças e, como era dotado da maior discrição, disse: "Meu filho, pede a Cristo que nos manifeste sua vontade, para que possamos concordar com maior segurança com os teus piedosos desejos".

O santo obedeceu à ordem do Pastor supremo e correu a Cristo confiantemente. Rezou bastante e exortou os irmãos a suplicarem a Deus com devoção. Obteve uma resposta na oração e contou aos filhos a salutar novidade. A conversa familiar com Cristo foi conhecida numa parábola: "Francisco, dirás isto ao Papa: uma mulher pobrezinha, mas bonita, morava em um deserto. Um rei se apaixonou por ela por causa de sua grande formosura, desposou-a todo feliz e teve com ela filhos muito bonitos. Quando já estavam adultos e nobremente educados, a mãe lhes disse: 'Não vos envergonheis, meus queridos, porque sois pobres, pois sois todos filhos daquele grande rei. Ide com alegria para sua corte, e pedi-lhe tudo que precisais'. Surpresos e felizes quando ouviram isso e, orgulhosos por saberem que eram de linhagem real, pois previam que seriam os herdeiros, já imaginaram sua pobreza transformada em riqueza. Apresentaram-se ousadamente ao rei, sem temer o rosto que era parecido com o deles. Vendo essa semelhança, o rei perguntou, admirado, de quem eram filhos. Quando disseram que eram filhos daquela mulher pobrezinha do deserto, o rei os abraçou dizendo: 'Sois meus filhos e meus herdeiros, não tenhais medo! Se até estranhos comem à minha mesa será muito mais justo que eu alimente aqueles a quem está destinada por direito a minha herança toda'. E mandou que a mulher levasse todos os seus filhos para serem educados em sua corte". O santo gostou muuito da parábola e foi logo contar ao Papa a resposta de Deus.

17. Essa mulher era Francisco, pela fecundidade de seus muitos filhos, não pela moleza de sua vida. O deserto era o mundo, então inculto por falta de doutrina e estéril em virtudes. A prole abundante e formosa era a multidão dos frades, ricos de valores espirituais. O rei era o Filho de Deus, de quem se tornaram parecidos pela santa pobreza, em cuja abundante mesa real foram alimentados por terem desprezado toda vergonha das coisas vis, pois estavam contentes com a imitação de Cristo e viviam de esmolas, sabendo que haveriam de conquistar a bem aventurança através dos desprezos do mundo.

Admirado com a parábola, o Papa não teve dúvida de que Cristo lhe falava através de Francisco. Lembrou uma visão que tivera poucos dias antes e, iluminado pelo Espírito Santo, afirmou que haveria de cumprir-se naquele mesmo homem. Em sonhos, tinha visto a basílica de Latrão prestes a ruir mas sendo sustentada por um religioso, pequeno e desprezível, que a firmara com seu ombro para não cair. E disse: "Na verdade este é o homem que, por sua obra e por sua doutrina, haverá de sustentar a Igreja".

Foi por isso que aquele senhor acedeu tão facilmente ao seu pedido e, a partir daí, cheio de devoção, sempre teve especial predileção pelo servo de Cristo. Concedeu-lhe imediatamente tudo que queria e prometeu que ainda haveria de fazer mais concessões.

Com a autoridade que lhe foi concedida, o santo começou a lançar as sementes das virtudes e a percorrer as cidades e vilas pregando com fervor.

SANTA MARIA DA PORCIUNCULA

CAPITULO 12
Amor do santo para com esse lugar. A vida dos frades. Amor da própria santa Virgem para com ele

18. O servo de Deus Francisco, pequeno de estatura, humilde de pensamento e menor por profissão, escolheu para si e para os seus um pedacinho desta terra, enquanto aqui tinha de viver, pois não poderia servir a Cristo sem ter alguma coisa do mundo. Devem ter sido inspirados por Deus os que, desde os tempos mais antigos, chamaram de Porciúncula - pedacinho - o lugar que deveria caber em sorte àqueles que deste mundo não queriam ter quase nada.

Nele tinha sido construída uma igreja em honra da Virgem Mãe, aquela que, por sua humildade singular, mereceu ser cabeça de todos os santos logo depois de seu Filho. Nela teve início a Ordem dos Menores, e sobre ela se ergueu, como em sólido fundamento, sua nobre estrutura de inumerável multidão. O santo teve uma preferência especial por esse lugar, quis que os frades o venerassem de maneira toda particular e quis que fosse conservado na humildade e na altíssima pobreza, como espelho de toda a sua Ordem, deixando a propriedade para outros e reservando para si e para os seus apenas o uso.

19. Aí se observava a mais rígida disciplina, tanto no silêncio e no trabalho, como nos outros pontos da vida regular. Não eram admitidos senão frades especialmente escolhidos entre os que afluíam de todas as partes. O santo exigia que fossem verdadeiramente devotados a Deus e perfeitos em tudo que fosse possível. Era absolutamente proibida a entrada de pessoas seculares: ele não queria que os frades, vivendo ali em número reduzido, poluíssem seus ouvidos com o relacionamento dos seculares, para não deixarem a meditação das coisas celestes, arrastados para assuntos menos dignos por espalhadores de boatos. Nesse lugar ninguém podia dizer coisas ociosas, nem narrar as que tinham sido contadas por outros. Quando isso acontecia, aplicava-se uma pena salutar para corrigir o culpado. Os que ali moravam ocupavam-se, dia e noite, com os louvores divinos, levando uma vida angelical, cujo perfume admirável se espalhava por toda parte.

Aliás, o local era apropriado, pois, conforme diziam os antigos moradores, também se chamava Santa Maria dos Anjos. O bem- aventurado pai dizia que lhe tinha sido revelado por Deus que Nossa Senhora tinha uma predileção por aquele lugar, entre todas as outras igrejas construídas no mundo em sua honra. E era por isso que o santo gostava mais dela que das outras.

CAPITULO 13
Uma visão

20. Um devoto irmão tinha tido, antes de sua conversão, uma visão a respeito dessa igreja, que merece ser contada. Viu muitos homens feridos de cruel cegueira, com o rosto voltado para o céu e de joelhos ao redor da igreja. Todos, com voz chorosa, de mãos estendidas para o alto, clamavam a Deus pedindo misericórdia e a visão. Veio de céu um esplendor enorme, que se difundiu por todos e a cada um deu luz e a desejada saúde.

COMO VIVIAM SÃO FRANCISCO E DOS FRADES

CAPITULO 14
O rigor da disciplina

21. O valoroso soldado de Cristo nunca poupava o corpo, expondo-o, como se nem fosse o seu, a toda espécie de injúrias, por atos ou palavras. Se alguém tentasse numerar todos os seus sofrimentos, ultrapassaria os que nos são referidos pelo Apóstolo sobre os santos. Da mesma maneira, toda a sua primeira escola submetia-se a todos os incômodos, a ponto de julgar mal se alguém ambicionasse alguma outra coisa que não fosse a consolação do espírito. Muitas vezes, teriam desfalecido pelo uso de argolas de ferro e cilícios e pelos jejuns contínuos, se não abrandassem um pouco o rigor de tamanha abstinência pelas admoestações atentas do piedoso pastor.

CAPITULO 15
Discrição de São Francisco

22. Certa noite, quando todos descansavam, uma daquelas ovelhas começou a gritar: "Estou morrendo, irmãos, estou morrendo de fome!" O valoroso pastor levantou-se imediatamente a acudir sua ovelhinha doente com o devido remédio. Mandou preparar a mesa, embora cheia de pobres iguarias, onde havia água no lugar de vinho, como era freqüente. Ele mesmo começou a comer e, por caridade, para que o frade não ficasse envergonhado, convidou também os outros irmãos.

Depois de terem tomado o alimento no temor do Senhor, para que nada faltasse ao dever da caridade, contou-lhes o pai uma parábola sobre a virtude da discrição. Disse que o sacrifício oferecido a Deus deve ser sempre bem temperado e aconselhou carinhosamente cada um a levar em conta as próprias forças quando pensa em prestar obséquio a Deus. Afirmou que tanto era pecado deixar de dar o que era devido ao corpo quanto dar-lhe o supérfluo por gula.

E acrescentou: "Deveis saber, caríssimos, que agora comi por cortesia e não por gosto, porque assim mandava a caridade fraterna. Tomem como exemplo a caridade e não o fato de comer, porque o comer serve à gula, e a caridade ao espírito".

CAPITULO 16
Sua providência. Submete seu modo de viver à Igreja de Roma. Uma visão

23. Progredindo o santo pai continuamente em merecimentos e em virtude, e tendo os seus filhos aumentado muito em número e em santidade, pois estendiam até os confins do mundo seus ramos carregados de frutos maravilhosos, começou a pensar seriamente no que teria que fazer para conservar e fazer crescer aquela planta nova sem perder o vínculo da união.

Percebia que havia muitos que eram como lobos enraivecidos contra o seu pequeno rebanho. Inveterados no mal, buscariam pretexto para prejudicá-los só porque eram uma novidade. Previa que mesmo entre seus próprios filhos poderiam suceder coisas contrárias à santa paz e unidade e temia que, como pode acontecer com os escolhidos, pudessem aparecer alguns, inflados por sua própria sensualidade, dispostos a contendas e inclinados aos escândalos.

24. Como o homem de Deus estava sempre com essas preocupações e outras semelhantes, numa noite teve esta visão enquanto dormia: viu uma galinha, pequena e preta, parecida até com uma pomba, que tinha penas nas pernas e até nos pés. Seus pintainhos, sem número, rodeavam-na por toda parte, sem poder juntar-se sob suas asas. Quando se levantou e recordou tudo, o homem de Deus apresentou sua própria interpretação: "Essa galinha sou eu, moreno e baixinho. Devo procurar ter a simplicidade da pomba pela inocência de vida, que é rara neste mundo e voa mais facilmente para o céu. Os pintainhos são os frades, que se multiplicaram em número e santidade, a quem não bastam minhas pobres forças para defender da maldade dos homens e da oposição das más línguas...

Por isso vou recomendá-los à santa Igreja Romana, cuja vara poderosa castigará os malvados, fazendo com que os filhos de Deus possam gozar em toda parte de plena liberdade para crescer na salvação eterna. Nisso reconhecerão os filhos os doces benefícios da mãe, e seguirão sempre os seus passos com especial devoção. Sob a sua proteção, não haverá de ocorrer o mal na Ordem, nem passará impune pela vinha do Senhor o filho de Belial. Ela mesma, que é santa, há de gloriar-se de emular nossa pobreza, e não permitirá que os elogios da humildade sejam ofuscados pelas nuvens da soberba. Conservará entre nós ilesos os vínculos da caridade e da paz, censurando os dissidentes com rigor.

Diante dela, florescerá continuamente a santa observância da pureza evangélica: ela não há de permitir que se perca o bom perfume de nossa vida por uma hora sequer".

Essa foi a verdadeira intenção do santo de Deus quando decidiu confiar-se à Igreja. Aí está um documento santíssimo de sua previdência para garantir o futuro.

CAPITULO 17
Pede o bispo de Óstia como representante do Papa

25. Por isso o santo foi a Roma, onde foi recebido com muita devoção pelo Papa Honório e por todos os cardeais. E com razão, porque viam brilhar em sua presença e em suas palavras tudo que já conheciam de fama: não era possível ficar indiferente diante dele. Pregou diante do Papa e dos cardeais com inspiração e fervor, transbordando plenamente tudo que o espírito lhe sugeria. 'A sua palavra comoveram-se as eminências e, movidos na profundidade, lavaram suas almas em lágrimas.

Terminada a pregação, depois de breve e familiar conversa com o Senhor Papa, dirigiu-lhe o seguinte pedido: "Senhor, como sabeis, não é fácil o acesso dos pobres e dos desprezados a tão sublime majestade. Pois tendes o mundo nas mãos, e os negócios importantíssimos não permitem que cuideis das coisas de importância mínima. Por isso, Senhor, peço que Vossa Santidade queira conceder-nos como papa o senhor de O'stia, para que, sempre salva a dignidade de vossa preeminência, os frades possam recorrer a ele quando precisarem, conseguindo tanto o benefíciodo amparo como o da orientação".

O Papa gostou de tão santo pedido, e logo colocou o Senhor Hugolino, então bispo de O'stia, à frente da Ordem, como queria o homem de Deus. O santo cardeal acolheu com carinho o rebanho que lhe foi confiado e, feito seu zeloso pai, foi pastor e irmão até sua bem-aventurada morte. A essa especial submissão devemos o amor e cuidado que a santa Igreja de Roma nunca deixa de manifestar para com a Ordem dos Menores.

Aqui termina a primeira parte.

 SEGUNDA VIDA DE SÃO FRANCISCO

Tomás de Celano

SEGUNDO LIVRO

INTRODUCÃO

26. Guardar para a memória dos filhos os feitos insignes dos pais é sinal tanto da honra que estes tiveram quanto de amor para com aqueles. Com efeito, os que não os conheceram corporalmente podem pelo menos ser levados ao bem por seus feitos, e são animados para coisas melhores porque os pais, separados pelo tempo, oferecem aos filhos exemplos dignos de serem lembrados. E não é pequeno o fruto que conseguimos só de percebermos como somos pequenos, vendo como eles tinham de sobra os méritos que nos faltam.

Na minha opinião, São Francisco é um espelho santíssimo da santidade do Senhor e uma imagem de sua perfeição. Suas palavras e ações trescalam alguma coisa de divino e, se encontrarem um discípulo atento, diligente e humilde, dentro de pouco tempo, com seu ensino salutar, haverão de conduzí-lo à mais alta sabedoria. Por isso, depois de ter contado alguma coisa a seu respeito, embora em estilo simples e como que de passagem, acho que é bom acrescentar mais alguns pontos, escolhidos entre tantos, para recomendar o santo e animar nosso sonolento afeto.

O ESPIRITO PROFETICO DE SÃO FRANCISCO

CAPITULO 1

27. Elevado acima das coisas deste mundo, o bem-aventurado Pai tinha dominado de maneira muito especial tudo que havia no mundo, pois tinha os olhos sempre voltados para a luz do alto, e não só conhecia por revelação divina o que devia fazer, como também predizia muitas coisas com espírito profético, penetrava os segredos dos corações, estava informado de coisas ausentes, previa e aunciava o futuro. Vamos dar alguns exemplos.

CAPITULO 2
Descobre a falsidade de um irmão tido por santo

28. Havia um frade que, a julgar pelas aparências, demonstrava uma santidade insigne, embora singular. Estava sempre entregue à oração, observava um silêncio tão rigoroso que até se acostumara a confessar-se por gestos e não por palavras. Tinha grande entusiasmo pelas palavras da Sagrada Escritura e, quando as ouvia, sentia um admirável prazer. Todos achavam que era três vezes santo. Mas aconteceu que o santo pai foi a esse lugar, viu o frade, ouviu o santo. Enquanto todos o louvavam e elogiavam, ele comentou: "Deixai disso, irmãos, não me venhais louvar seu diabólico fingimento. Podeis ficar sabendo que isso é tentação do demônio e engano. Tenho certeza, e o fato de não querer confessar-se é uma prova".

Os frades ficaram chocados, principalmente o vigário do santo. Perguntaram: "Mas como é possível haver engano em todos esses sinais de perfeição?" Disse-lhes o pai: "Aconselhai-o a confessar-se uma ou duas vezes por semana. Se não obedecer, sabereis que é verdade o que eu disse".

O vigário chamou-o à parte e, depois de conversar familiarmente com ele, acabou mandando que se confessasse. Ele não quis saber. Pôs o dedo nos lábios, cobriu a cabeça e deu a entender que não se confessaria de maneira alguma. Os frades emudeceram, com medo do escândalo do falso santo. Não muitos dias depois, ele saiu espontaneamente da Ordem, voltou para o mundo, retornou ao seu vômito. Afinal, dobrando seus crimes, foi privado tanto a penitência como da vida.

Precisamos tomar sempre muito cuidado com a singularidade, que não é mais do que um precipício atraente. Temos a experiência de tantas pessoas singulares, que pareciam estar subindo aos céus e se precipitaram no abismo. Também devemos considerar o valor da confissão bem feita, porque não só faz mas também mostra quem é santo.

CAPITULO 3
Outro caso semelhante. Contra a singularidade

29. Coisa parecida aconteceu com outro frade, chamado Tomás de Espoleto. Todos o tinham em boa conta e estavam certos de que era santo. O santo pai achava que ele era perverso, e sua apostasia o confirmou. Não aguentou muito tempo, porque a virtude baseada na simulação não dura muito. Saiu da Ordem e morreu fora dela: agora já sabe o que fez.

CAPITULO 4
Em Damieta, prediz a derrota dos cristãos

30. No tempo em que o exército cristão estava sitiando Damieta, lá estavam o santo de Deus e seus companheiros: desejosos do martírio, tinham atravessado o mar.

Ouvindo dizer que os nossos estavam se preparando para o dia da batalha, o santo ficou muito triste. Disse a seu companheiro: "O Senhor me revelou que, se houver um combate nesse dia, os cristãos não vão sair-se bem. Se eu disser isso, vão achar que estou louco; se me calar, minha consciência não vai me deixar em paz. Que te parece?" O companheiro respondeu: "Pai, não te importes de ser julgado pelos homens, pois não vai ser a primeira vez que te chamarão de louco. Descarrega tua consciência, teme mais a Deus que aos homens".

O santo foi correndo dar bons conselhos aos cristãos, dizendo que não deveriam ir à guerra e avisando que haveriam de fracassar. Mas eles levaram a verdade na brincadeira, endureceram seus corações e não aceitaram o aviso. Partiram, atacaram, combateram e foram derrotados pelo inimigo. Durante a batalha, o santo, angustiado, mandou o companheiro levantar-se para olhar. Como não visse nada na primeira e na segunda vez, mandou olhar uma terceira. E viu o exército cristão em debandada, carregando no fim da guerra não o triunfo mas a vergonha. O desastre foi tão grande que os nossos perderam seis mil, entre mortos e prisioneiros. O santo ficou cheio de compaixão, e eles não tiveram menor arrependimento. Compadeceu-se especialmente dos espanhóis porque eram mais audaciosos e tinham sobrado muito poucos.

Pensem nisso os príncipes de todo o mundo, convençam-se de que não se pode combater impunemente contra Deus, isto é, contra a vontade do Senhor. Costuma acabar mesmo em desgraça o atrevimento, porque confia em suas próprias forças e não merece o auxílio do céu. Se é do céu que esperamos a vitória, já devemos entrar na luta com o espírito de Deus.

CAPITULO 5
Descobre os pensamentos secretos de um frade

31. Ao voltar de além-mar acompanhado por Frei Leonardo de Assis, fatigado e cansado pela viagem, o santo teve que fazer um trecho montado num jumento. O companheiro, que vinha atrás e também não estava menos cansado, começou a dizer consigo mesmo, levado por fraqueza humana: "Os pais dele e os meus não jogavam juntos. Mas agora ele vai montado e eu guiando o burro".

Estava pensando nisso quando o santo apeou de repente e disse: "Não, irmão, não convém que eu vá montado e tu a pé, tu que no mundo eras mais nobre e mais poderoso do que eu". O frade caiu das nuvens e ficou todo envergonhado, vendo que tinha sido surpreendido pelo santo. Lançou-se a seus pés confessando, em lágrimas o que tinha pensado, e pediu perdão.

CAPITULO 6
Vê um demônio em cima de um frade. Contra os que quebram a unidade

32. Havia outro frade, famoso entre os homens e ainda mais estimado diante de Deus, por sua santidade. Invejoso de suas virtudes, o pai de toda inveja quis cortar a árvore que já estava chegando aos céus e arrancar a coroa de suas mãos. Rodeia, revira, discute e examina os seus costumes, para encontrar um bom tropeço para o frade. Com a desculpa de maior perfeição, inspira- lhe o desejo da solidão. Mas era para atacá-lo a sós e derrubá-lo mais depressa e também para que, caindo sozinho, não tivesse ninguém para ajudá-lo a levantar-se.

Digamos logo: ele se afastou do convívio dos frades e foi pelo mundo como peregrino e forasteiro. Reduziu seu hábito a uma túnica curta, com o capuz solto. Percorria assim as regiões, desprezando-se em tudo.

Mas aconteceu que, viajando dessa maneira, bem depressa perdeu a consolação divina e começou a ser sacudido por tormentosas tentações. Subiram-lhe as águas até a alma e, desolado por dentro e por fora, foi adiante como um pássaro prestes a cair na armadilha. Já estava á beira do precipício quando a providência paterna teve pena e olhou para ele com bondade. Teve a graça de compreender o próprio engano e, voltando a si, finalmente, disse: "Volta para a Ordem, miserável, porque lá está a tua salvação". Não deixou para depois, levantou-se logo e correu para o regaço materno.

33. Quando chegou a Sena, onde moravam os frades, lá estava São Francisco. Coisa admirável! Logo que o santo o viu, fugiu dele e foi correndo fechar-se em sua cela. Os frades ficaram desconcertados e perguntaram por que tinha fugido. Respondeu o santo: "Por que vos admirais de minha fuga, se não conheceis o motivo? Fugi para a proteção da oração, para livrar um errado. Senti nesse meu filho alguma coisa que justamente me desgostou. Mas agora, pela graça de Cristo, já se afastou todo engano".

O irmão se ajoelhou e se confessou culpado, todo envergonhado. Disse-lhe o santo: "Deus te perdoe, irmão. Mas toma cuidado daqui para frente para não te separares de tua Ordem e de teus irmãos mesmo a pretexto de santidade". Desde então, esse frade passou a ser amigo da vida em comum e da companhia dos frades, e tinha especial devoção para com as comunidades em que mais imperava a observância regular.

Como são admiráveis as obras do Senhor quando os justos se reúnem e se congregam! Porque então os tentados resistem, os caídos são levantados, os tíbios são estimulados, o ferro se afia no ferro e os frades se ajudam uns aos outros estabelecendo-se como uma cidadela inabalável. As multidões deste mundo impedem ver Jesus, mas não é isso que acontece quando a multidão é de anjos do céu. Quem for fiel até a morte e não fugir, receberá a coroa da vida.

Outro caso semelhante

34. Pouco depois, aconteceu outro caso semelhante. Um dos frades não se submetia ao vigário do santo, mas seguia um outro frade como seu preceptor. Avisado por um intermediário do santo, que também estava presente, o frade lançou-se imediatamente aos pés do vigário e, deixando de lado seu antigo preceptor, passou a obedecer àquele que o santo tinha constituído como prelado. Mas o santo, dando um profundo suspiro, disse ao frade que lhe tinha servido de intermediário: "Irmão, eu vi um diabo nas costas do desobediente, apertando-lhe o pescoço. Guiado por tal condutor, desprezava o freio da obediência e seguia as rédeas do seu instinto. Roguei ao Senhor e logo o demônio foi embora todo confuso".

Essa era a perspicácia do santo, que tinha os olhos fracos para ver as coisas do corpo, mas enxergava muito bem as coisas espirituais. De fato, não temos de que nos admirar por ele ter visto carregado com esse peso torpe aquele que não queria suportar o Senhor da majestade. Não há meio-termo: ou levamos a carga leve, que na verdade nos carrega, ou vamos ter uma mó de burro pendurada no pescoço, com a iniquidade sentada em cima como se fosse um talento de chumbo.

CAPITULO 7
Livra os habitantes de Gréccio dos lobos e do granizo

35. O santo gostava de morar na eremitério dos frades em Gréccio, tanto porque achava rica a sua pobreza como porque podia entregar-se com maior liberdade aos exercícios espirituais numa pequena cela construída na ponta de um rochedo. Foi nesse lugar que recordou pela primeira vez o Natal do Menino de Belém, fazendo-se menino com o Menino.

Mas o povo do lugar estava sofrendo diversas calamidades: um bando de lobos vorazes atacava não só os animais mas até pessoas, e uma tempestade de granizo acabava todos os anos com o trigo e as vinhas. Num dia em que estava pregando para eles, São Francisco disse: "Para honra e louvor de Deus onipotente, ouvi a verdade que eu vos anuncio. Se cada um de vós confessar seus pecados e fizer frutos dignos de penitência, eu vos garanto que esse mal se afastará e que o Senhor olhará para vós e multiplicará os vossos bens materiais. Mas ouvi isto também, que tenho outro aviso: se fordes ingratos aos benefícios e voltardes ao próprio vômito, a praga se renovará, o castigo vai ser duplo e uma ira ainda maior cairá sobre vós".

36. De fato, pelos merecimentos e orações do santo pai, desde aquela hora acabaram as pragas, cessaram os perigos, e os lobos e o granizo não lhes causaram mais nenhum mal. Até mais: quando o granizo assolava os campos dos vizinhos e chegava perto dos deles, ou parava por ali ou se desviava para outro lado.

Tranqüilos, cresceram muito e se encheram de bens temporais. Mas a prosperidade fez o que costuma fazer: eles enterraram o rosto na gordura das coisas temporais, ou melhor, ficaram cegos com o esterco.

Por fim, caindo em coisas piores, esqueceram-se de Deus que os tinha salvo. E isso não ficou impune, porque a censura da justiça divina castiga menos quem cai do que quem recai. Excitou-se o furor de Deus contra eles, voltaram os males que tinham ido embora e mais a guerra, e ainda caiu do céu uma epidemia que acabou com muitos. É justo que os benefícios se transformem em castigo para os que são ingratos.

CAPITULO 8
Pregando em Perusa anuncia uma sedição futura e recomenda unidade

37. Alguns dias mais tarde, quando o bem-aventurado pai desceu daquela cela, disse com voz sofrida aos frades presentes: "Os habitantes de Perusa fizeram muito mal a seus vizinhos, e seu coração se exaltou, mas para sua vergonha. Na verdade, a vingança de Deus está próxima: Ele já está com a mão na espada". Depois de mais alguns dias, levantou-se afervorado e foi para Perusa. Os frades puderam concluir que tinha tido alguma visão em sua cela.

Em Perusa, reuniu o povo e começou a pregar. Mas, como os cavaleiros estavam fazendo seus exercícios e impediam a palavra de Deus, o santo se voltou para eles e disse gemendo: "Homens perversos, dignos de compaixão, que não respeitais nem temeis o juízo de Deus! Ouvi o que o Senhor vos anuncia por intermédio deste pobrezinho. O Senhor vos exaltou acima de todos os que estão ao vosso redor. Justamente por isso deveríeis ser mais bondosos com os vizinhos e mais agradecidos a Deus. Mas estais sendo ingratos, atacais os vizinhos à mão armada, matando e saqueando. Eu vos digo que isso não vai ficar sem vingança, porque Deus, para maior punição, vai fazer com que enfrenteis uma guerra interna, levantando-vos uns contra os outros. E a indignação vai instruir aqueles que a bondade não conseguiu ensinar".

Não demorou muito para se levantar a discórdia entre eles. Empunharam armas contra os companheiros: o povo se amotinou contra os cavaleiros e os nobres atacaram os plebeus à espada. Numa palavra, lutaram com tamanha ferocidade e estrago, que até os vizinhos, a quem tanto mal tinham feito, ficaram com pena.

Foi um castigo merecido! Afastaram-se daquele que é Uno e Sumo, e perderam a unidade entre eles mesmos. Não há vínculo que mais una uma nação do que o fiel amor a Deus, numa fé sincera e sem fingimento.

CAPITULO 9
Profetiza a uma mulher a conversão do marido

38. Naqueles dias, viajando o servo de Deus para Celle de Cortona, uma nobre dama da aldeia de Volusiano teve conhecimento disso e correu ao seu encontro. Após uma viagem muito cansativa, porque era de compleição muito delicada, acabou chegando ao santo. Percebendo como estava ofegante e exausta, o santo pai ficou com pena e lhe disse: "Que desejais, Senhora?" "Que me abençoeis, pai". E o santo: "Sois casada ou solteira?"

"Pai, respondeu, tenho um marido muito cruel, que me impede de servir a Jesus Cristo. Essa é minha maior dor, porque, por causa de meu marido, não posso cumprir os bons propósitos que o Senhor me inspirou. Por isso, ó santo, eu vos peço que intercedais por ele, para que a misericórdia divina lhe transforme o coração".

Admirado da fortaleza e maturidade de uma mulher tão jovem, o pai teve compaixão e disse: "Vai, filha abençoada. Podes ter a certeza de que bem depressa terás uma consolação por parte de teu marido". E acrescentou: "Diz-lhe, da parte de Deus e da minha, que agora é o tempo de salvação, e depois virá o da justiça".

Tendo recebido a bênção, a mulher foi embora. Quando encontrou o marido e lhe deu o recado, o Espírito Santo desceu de repente sobre ele e o renovou, fazendo com que dissesse com toda a mansidão: "Senhora, vamos servir ao Senhor em nossa casa e salvar nossas almas".

A mulher disse: "Acho que devemos colocar a continência como fundamento de nossa vida espiritual, para edificar sobre ela as outras virtudes".

"Eu também estou de acordo", disse ele.

A partir desse dia viveram como celibatários durante muitos anose tiveram uma morte feliz no mesmo dia, um como o holocausto da manhã e o outro como o sacrifício da tarde.

Feliz mulher que assim conseguiu convencer seu senhor, restituindo-o à vida! Cumpriu-se nela o que foi dito pelo Apóstolo: "O marido infiel é salvo pela mulher fiel". Mas pessoas assim, como se diz comumente hoje em dia, podem contar-se nos dedos.

CAPITULO 10
Descobre por inspiração que um frade escandalizou a outro
e prediz que haveria de sair da Ordem

39. Certa ocasião, vieram da Terra do Labor dois frades. O mais velho tinha escandalizado muito o mais novo: não era um companheiro mas um tirano. Mas o mais jovem suportava tudo em silêncio por amor de Deus.

Quando chegaram a Assis, e o mais novo foi visitar São Francisco (porque era muito conhecido dele), o santo disse entre outras coisas: "Como é que se comportou contigo o teu companheiro nessa viagem?" O frade respondeu: "Muito bem, pai caríssimo". Mas o santo retrucou: "Cuidado, irmão, para não mentires, pensando em ser humilde, porque eu sei como ele te tratou. Mas espera um pouco e hás de ver".

O frade ficou muito admirado de que ele tivesse conhecido pelo espírito coisas que não presenciara. De fato, não muitos dias depois, desprezando a Ordem, foi-se embora o que tinha escandalizado seu irmão. Sem dúvida, é um sinal de maldade e demonstração de falta de juízo fazer o mesmo caminho e não saber andar de acordo com o companheiro.

CAPITULO 11
Descobre que um jovem que entrou na Ordem não é guiado pelo espírito de Deus

40. Por esses mesmos dias chegou a Assis um jovem da nobreza de Lucca, querendo entrar na Ordem. Apresentado a São Francisco, suplicou de joelhos e entre lágrimas que o recebesse. Mas o homem de Deus enxergou dentro dele e teve a inspiração de que ele não estava sendo trazido pelo espírito. Disse-lhe: "Pobre homem carnal, por que pensas que podes enganar ao Espírito Santo e a mim? Estás chorando por motivos humanos, e teu coração não está com Deus. Vai, porque não entendes coisa alguma espiritualmente".

Acabava de dizer isso quando avisaram que seus pais estavam à porta, querendo levá-lo à força. Mas ele saiu ao seu encontro e foi embora de boa vontade. Os frades ficaram muito admirados e louvaram ao Senhor em seu santo.

CAPITULO 12
Cura um clérigo, mas prediz que, por causa de seu pecado,
haverá de sofrer coisas piores

41. No tempo em que o santo pai esteve doente no palácio episcopal de Rieti, um cônego chamado Gedeão, sensual e mundano, também estava de cama, com dores por todos os lados. Fez com que o levassem a São Francisco e pediu, entre lágrimas, que lhe fizesse o sinal da cruz.

O santo disse: "Como é que vou fazer o sinal da cruz se estás vivendo há muito tempo de acordo com os desejos da carne, sem temer os juizos de Deus?" E acrescentou: "Eu te assinalo em nome de Cristo, mas fica sabendo que sofrerás coisas ainda piores se, depois de libertado, voltares ao vômito". Ainda concluiu: "Quando há um pecado da ingratidão, os castigos são sempre piores que os anteriores".

Fez o sinal da cruz, e logo o cônego, que estivera deitado e contraído, levantou-se curado e entoando louvores. Disse: "Estou livre". Muita gente ouviu seus ossos estalarem, como quando se quebra lenha seca com as mãos.

Mas, pouco tempo depois, esquecido de Deus, entregou-se outra vez à sensualidade. Numa noite em que tinha jantado em casa de um cônego seu colega, tendo lá ficado para dormir, o teto da casa ruiu de repente sobre todos. Os outros escaparam da morte, mas ele não conseguiu e foi esmagado.

Nem devemos admirar que, como disse o santo, tenham acontecido coisas piores que as anteriores, porque devemos ser agradecidos pelos favores recebidos, e um pecado repetido ofende duas vezes mais.

CAPITULO 13
Um frade assaltado por tentações

42. Estando o santo ainda no mesmo lugar, um frade muito espiritual, que pertencia à custódia de Mársica e sofria graves tentações, disse consigo mesmo: "Oh! se eu tivesse comigo alguma coisa de São Francisco, pelo menos um pedacinho de suas unhas, acho que toda essa tempestade de tentações iria embora, e eu voltaria a viver em paz, com o auxílio de Deus".

Conseguiu a licença, foi para onde estava o santo pai e expôs o assunto a um de seus companheiros. O frade respondeu: "Acho que não vai ser possível dar-te alguma coisa de suas unhas, porque, embora nós as cortemos de vez em quando, ele manda jogá-las fora, proibindo que as conservemos".

Logo depois, o frade foi chamado e o mandaram ir ao santo, que queria falar com ele. "Filho, disse, vai buscar uma tesoura para cortar minhas unhas". O frade mostrou a tesoura, que já tinha trazido para isso e depois pegou as aparas e as entregou ao irmão que as pedira. Este recebeu-as com devoção, guardou-as com mais devoção ainda, e logo ficou livre de todas as tentações.

CAPITULO 14
Um homem que oferece pano, de acordo com o pedido do santo

43. Nesse mesmo lugar, o pai dos pobres, que vestia uma túnica velha, disse uma vez a um de seus companheiros, a quem constituíra seu guardião: "Gostaria, irmão, se fosse possível, que me arranjasses fazenda para fazer uma túnica". Ouvindo isso, o frade ficou pensando em como poderia adquirir esse pano tão necessário e tão humildemente pedido.

No dia seguinte, saiu bem cedo para ir à cidade arranjar o pano. Mas havia um homem sentado junto à porta, querendo falar com ele. Disse-lhe: "Por amor de Deus, recebe esta fazenda para fazer seis túnicas, guarda uma para ti e distribui as outras como te aprouver, pela salvação de minha alma". O frade voltou muito alegre para junto de Frei Francisco e contou como tinha recebido esse presente do céu. O pai disse: "Recebe as túnicas, porque esse homem foi enviado para satisfazer dessa forma a minha necessidade. Demos graças àquele que parece que só precisa cuidar de nós".

CAPITULO 15
Convida seu médico para almoçar em uma ocasião em que os frades nada têm.
Quantas coisas recebem do Senhor de uma hora para outra.
Providência de Deus para com os seus

44. Quando São Francisco morava em um eremitério perto de Rieti, visitava-o um médico, todos os dias, para cuidar de seus olhos. Certo dia, disse o santo aos frades: "Convidai o médico e dai-lhe um bom almoço". O guardião respondeu: "Pai, digo ruborizado que tenho vergonha de convidá-lo, porque estamos muito pobres".

O santo retrucou: "Será que vou ter que repetir?" E o médico, que estava presente, disse: "Irmãos caríssimos, para mim vai ser muito bom partilhar da vossa pobreza".

Os frades correram e puseram na mesa toda a provisão da sua dispensa, isto é, um pouquinho de pão, um pouco de vinho e, para comerem alguma coisa melhor, alguns legumes trazidos da cozinha. Nesse meio tempo, a mesa do Senhor teve pena da mesa dos servos: bateram à porta e eles foram atender. Era uma mulher que lhes deu uma cesta cheia: um belo pão, peixes e pastéis de camarão, coroados, por cima, com mel e uvas.

Diante de todas essas coisas, a família dos pobres ficou exultante e, deixando os pratos miseráveis para o dia seguinte, comeu logo os mais preciosos. Comovido, o médico disse: "Irmãos, nem vós religiosos nem nós seculares sabemos apreciar devidamente a santidade deste homem". Teriam ficado saturados, se não os tivesse satisfeito mais o milagre que a comida.

Pois é assim que o olhar paterno de Deus jamais abandona os seus; pelo contrário, serve-os melhor quanto mais são necessitados. Como Deus é mais generoso que o homem, alimenta-se melhor o pobre que o tirano.

Livra Frei Ricério de uma tentação

44a. Um frade chamado Ricério, tão nobre de coração como de nascimento, tinha tamanha confiança nos merecimentos de São Francisco, que achava que mereceria a graça de Deus aquele a quem São Francisco desse algum sinal de sua benevolência, mas que mereceria a ira de Deus quem não tivesse a sua amizade. Como tinha uma vontade enorme de merecer a amizade do santo, tinha muito medo de que o pai descobrisse nele algum defeito ignorado, fazendo com que seu favor ainda ficasse mais distante.

Numa ocasião em que esse frade já estava sendo afligido diária e gravemente por esse temor, sem nunca ter revelado seu pensamento a ninguém, passou por perto da cela em que São Francisco estava rezando. Estava perturbado como de costume. Percebendo tanto a sua chegada como seu estado de ânimo, o homem de Deus o chamou com bondade e lhe disse: "Não tenhas mais medo, filho, nem te perturbe nenhuma tentação, porque gosto muito de ti, e és mesmo um dos mais queridos, a quem tenho um amor especial. Aqui podes vir confiadamente quando quiseres, ou ir embora quando te parecer". O frade se espantou bastante e ficou contente com as palavras do santo pai. A partir desse dia, seguro de sua amizade, cresceu também na graça do Salvador, conforme acreditava.

CAPITULO 16
Saindo de sua cela, abençoa dois irmãos,
cujo desejo tinha conhecido pelo Espírito Santo

45. São Francisco costumava passar o dia inteiro numa cela solitária, e não voltava para o meio dos frades a não ser que sentisse muita necessidade de tomar algum alimento. Mas não saía em horas certas para comer, porque em geral a fome maior de contemplação tomava-o inteiramente.

Uma vez chegaram a Gréccio dois frades vindos de longe, e que eram homens de santa conversação com Deus. A única razão de sua vinda era ver o santo e receber sua bênção, que desejavam havia muito tempo. Mas como chegaram e não o encontraram, porque já se havia retirado para sua cela, ficaram muito tristes: como não se podia dizer quando ia sair, a demora seria longa. Eles acharam que isso era merecido e se retiraram, desolados.

Alguns dos que viviam com São Francisco os acompanharam, tentando consolá-los. Quando já estavam à distância de uma pedrada, o santo os chamou inesperadamente e disse a um dos companheiros: "Vai dizer àqueles meus irmãos que aqui vieram que olhem para mim". Quando os frades se voltaram para ele, fez-lhes o sinal da cruz e os abençoou com muito afeto.

Eles ficaram mais do que satisfeitos, porque conseguiram o que queriam e mais um milagre, e voltaram louvando e bendizendo a Deus.

CAPITULO 17
Rezando, tira água de uma pedra e a dá a um aldeão com sede

46. Uma vez São Francisco quis ir a um certo eremitério para se entregar mais livremente à contemplação, mas estava um bocado enfraquecido e conseguiu com um homem pobre um jumento para montar.

Era tempo de calor, e o camponês, cansado daquela longa e dura caminhada subindo atrás do santo, começou a desfalecer de sede antes de chegarem. Ficando para trás, gritou insistentemente pelo santo e pediu que tivesse pena dele: disse que ia morrer se não fosse reanimado com algum pouco de água.

O santo de Deus, que sempre tinha compaixão dos aflitos, desceu imediatamente do jumento, ajoelhou-se no chão, estendeu as mãos para o alto e não parou de rezar enquanto não sentiu que tinha sido atendido. Disse, então, ao camponês: "Vai depressa, que ali mesmo encontrarás água para beber, produzida neste instante pela misericórdia de Cristo".

Estupenda bondade de Deus, que tão facilmente se inclina aos rogos de seus servidores! Um aldeão pôde beber a água que a virtude de um homem de oração fez brotar da rocha viva. Nesse lugar nunca tinha havido fonte alguma, nem a puderam encontrar mais tarde, de acordo com uma escrupulosa pesquisa.

Por que admirar, se este homem, cheio do Espírito Santo, reproduz em si mesmo os feitos admiráveis de todos os santos? Não nos devemos surpreender de que uma pessoa unida a Cristo por graças tão singulares realize prodígios iguais aos que foram operados pelos outros santos.

CAPITULO 18
Dá de comer aos passarinhos.
Um deles morre por causa de sua avareza

47. Uma vez, São Francisco estava sentado à mesa com os frades quando chegou um casal de passarinhos que ia sempre buscar migalhas para cuidar de seus filhotes. O santo ficou todo contente, fez-lhes carícias como era seu costume e tratou de juntar- lhes o sustento. Certo dia, pai e mãe apresentaram os filhotes aos frades, como que para agradecer por os terem alimentado, entregaram-nos e não apareceram mais.

Os filhotes se acostumaram com os frades e andavam empoleirados em suas mãos,não como hóspedes mas como de casa. Fugiam da presença dos seculares e só se aproximavam dos frades. O santo observou isso admirado e convidou os frades a se alegrarem. "Olhai, disse, o que fizeram nossos irmãos pintarroxos. Até parece que têm razão e disseram: Irmãos, aqui estão nossos filhotes, alimentados com as vossas migalhas. Fazei deles o que quiserdes, que nós vamos para outro ninho". Assim os passarinhos se familiarizaram de uma vez com os frades, e todos tomavam a refeição em comum.

Mas essa harmonia foi quebrada pela voracidade do maiorzinho, que começou a perseguir petulantemente os mais pequenos: comia à vontade e não deixava os outros chegarem perto. Disse o santo pai: "Vede o que está fazendo esse comilão. Mesmo cheio e empanturrado, tem inveja de seus esfomeados irmãozinhos. Ele ainda vai acabar mal". Não demorou muito para se cumprir o que o santo dissera. O perturbador de seus irmãos subiu a um vaso de água para beber, caiu e morreu afogado. E não houve gato ou qualquer outro animal que quisesse comer o passarinho anatematizado pelo santo.

Horroroso mal é o egoísmo dos homens, quando é punido dessa maneira nos pássaros. E também é para temer a condenação dos santos, uma vez que o castigo vaticinado vem com tanta facilidade.

CAPITULO 19
Cumprem-se todas as predições a respeito de Frei Bernardo

48. Numa outra ocasião, fez esta profecia a respeito de Frei Bernardo, que tinha sido o segundo frade da Ordem: "Eu vos afirmo que ele recebeu, para sua provação, os piores e mais astutos dos demônios. Mas não vão conseguir nada apesar de todo o seu esforço para fazer cair do céu essa estrela. Ele vai sofrer tribulações, tentações e angústias mas haverá de triunfar de tudo". E acrescentou: "Mais perto de sua morte, afastada a borrasca e vencida toda tentação, gozará de admirável paz e tranqüilidade e, tendo terminado sua carreira, partirá feliz para Cristo".

E foi assim mesmo. Sua morte ficou conhecida por diversos milagres e tudo que o homem de Deus havia predito realizou-se ao pé da letra. Os frades até disseram: "De fato, esse irmão não foi suficientemente conhecido enquanto estava vivo". Mas vamos deixar os louvores de Frei Bernardo para serem contados por outras pessoas.

CAPITULO 20
O frade tentado que quer ter alguma coisa escrita pela mão do santo

49. No tempo em que o santo estava recolhido a sua cela no Monte Alverne, um de seus companheiros tinha muita vontade de ter algum escrito edificante com as palavras do Senhor, anotadas brevemente pela mão de São Francisco. Achava que, dessa maneira, ficaria livre de uma grave tentação não da carne mas do espírito, ou que pelo menos conseguiria suportá-la melhor.

Preocupado com esse desejo, tinha receio de abrir-se com o santíssimo pai. Mas, se ele não o disse, revelou-lho o Espírito Santo. Porque um dia São Francisco o chamou e disse: "Traz-me papel e tinta: quero escrever umas palavras e louvores do Senhor, que estive meditando em meu coração".

Quando recebeu o que pedira, o santo escreveu de próprio punho os Louvores de Deus e as palavras que quis, e por último uma bênção para o frade, dizendo-lhe: "Recebe este pedaço de papel e guarda-o diligentemente até o dia de tua morte". A tentação desapareceu na mesma hora. O escrito foi guardado e, posteriormente, realizou coisas admiráveis.

CAPITULO 21
Dá uma túnica ao mesmo religioso, satisfazendo seu desejo

50. No mesmo frade resplandeceu outro milagre. No tempo em que o santo pai estava doente no palácio de Assis, esse frade pensou consigo mesmo: "O pai está para morrer. Minha alma ficaria muito consolada se, depois de sua morte, eu tivesse uma túnica do meu pai".

Como se o seu desejo do coração fosse um pedido feito com a boca, pouco depois foi chamado por São Francisco, que lhe disse: "Dou-te esta túnica. Recebe-a e passará a ser tua: vou usá-la enquanto estiver vivo, mas será tua quando eu morrer". Admirado de tão profunda penetração, o frade recebeu a túnica muito consolado. Mais tarde, ela foi levada para a França, com muita devoção.

CAPITULO 22
O aipo encontrado de noite, entre ervas agrestes

51. Nos últimos tempos de sua doença, teve vontade de comer aipo, tarde da noite, e o pediu com humildade. Chamaram o cozinheiro para que o trouxesse, mas ele disse que não poderia colher nada na horta: "Eu apanho aipos todos os dias, e já cortei tanto, que até de dia mal consigo achar algum. De noite, com a escuridão, nem seria capaz de distinguí-lo das outras ervas".

Mas o santo disse: "Vai, meu irmão, e para não te dar trabalho, traz as primeiras ervas em que puseres as mãos". O frade foi à horta, arrancou as primeiras plantas que encontrou, sem enxergar, e as trouxe para casa. Os frades olharam as ervas do mato e, revirando-as, encontraram entre elas um aipo folhudo e tenro.

O santo comeu um pouquinho e ficou muito confortado. E disse aos irmãos: "Irmãos caríssimos, cumpri as ordens sempre à primeira palavra, sem esperar que sejam repetidas. Não fiqueis pensando na impossibilidade porque, mesmo que eu desse alguma ordem acima das forças, a própria obediência tem suas forças". Até esse ponto o dotara-o o Espírito Santo com o dom da profecia.

CAPITULO 23
Prediz fome para depois de sua morte

52. Os santos às vezes são obrigados pela força do Espírito Santo a falar coisas maravilhosas a respeito de si mesmos, quando é a glória de Deus que exige uma revelação, ou há alguma exigência da caridade para edificação do próximo.

Foi por essa razão que, um dia, o santo pai contou a um frade a quem tinha grande estima uma revelação que tinha tido em sua comunicação familiar com a majestade divina: "Em nossos dias, existe na terra um servo de Deus, por quem o Senhor não vai permitir que a fome se abata sobre a humanidade enquanto ele viver".

Não tinha vaidade nenhuma. Só a santa caridade, que busca seus interesses, fez com ele que relatasse isso para nossa edificação, em palavras santas e modestas. E nem devia mesmo esconder com um silêncio inútil tão admirável prerrogativa da predileção de Deus para com seu servo.

Todos que estivemos presentes sabemos como foram calmos e pacíficos os tempos enquanto o santo viveu, e transbordaram na fertilidade de todos os bens. Não havia fome da palavra de Deus, porque as palavras dos pregadores eram então cheias de maior virtude, e os corações de todos os ouvintes estavam mais dispostos para Deus. Refulgiam os exemplos de santidade na figura dos religiosos, a hipocrisia dos "caiados" ainda não tinha atacado tantos santos, e a doutrina dos "transfigurados" ainda não tinha despertado tanta curiosidade. Era justo que houvesse abundância dos bens temporais quando todos tinham tanto amor pelos bens eternos.

53. Quando ele nos foi tirado, houve uma alteração e tudo ficou diferente. Guerras e revoluções se espalharam por toda parte, e de uma hora para outra muitos reinos foram invadidos por calamidades mortais. Uma fome atroz se estendeu em todas as direções, e sua crueldade, superando todos os males, acabou com muita gente. A necessidade transformou tudo em alimento, e os homens comeram o que nem os animais costumam comer. Chegaram a fazer pães com cascas de nozes e de árvores. Para falarmos um tanto veladamente, há testemunhas para confirmar que nem a morte de um filho chegou a comover um pai torturado pela fome.

Mas, para que fique bem certo quem era aquele servo fiel, por cujo amor a mão de Deus estava suspendendo a vingança, o próprio pai São Francisco, poucos dias depois de sua morte, apareceu ao frade a quem tinha predito a desgraça e afirmou claramente que era ele aquele servo do Senhor.

Certa noite, estando o frade a dormir, chamou-o com voz clara e disse: "Irmão, já chegou a fome que Deus não permitiu que viesse sobre a terra enquanto eu estava vivo". Acordado pela voz, o frade contou depois tudo direitinho. Três noites depois, o santo apareceu de novo e repetiu as mesmas palavras.

CAPITULO 24
Grandeza do santo e pequenez nossa

54. Ninguém deve estranhar que o profeta de nosso tempo gozasse de tais privilégios. Livre da escuridão das coisas terrenas, não submisso aos desejos da carne, sua inteligência voava para as alturas mais sublimes e penetrava na luz com pureza. Iluminado pelos resplendores da luz eterna, tirava da Palavra eterna o que ressoava em suas palavras.

Ai, como somos diferentes hoje! Envolvidos nas trevas, nem o necessário conhecemos! O motivo não é nenhum outro: somos amigos da carne e estamos também envolvidos no pó dos mundanos. Se elevássemos nossos corações para os céus junto com as mãos, se aspirássemos pelas coisas eternas, provavelmente ficaríamos sabendo o que ignoramos: Deus e nós mesmos. Quem se revira na lama tem que ver lama; quem puser os olhos no céu não poderá deixar de ver as coisas celestiais.



A POBREZA

CAPITULO 25
Louvor à Pobreza

55. Enquanto viveu neste vale de lágrimas, o santo pai desprezou as míseras riquezas dos filhos dos homens e, ambicionando a mais alta glória, dedicou-se de todo coração à pobreza.

Vendo que era estimada pelo Filho de Deus e estava sendo desprezada por toda a terra, quis desposá-la com um amor eterno. Apaixonado por sua beleza e querendo unir-se mais estreitamente a sua esposa, como se fossem dois em um só espírito, abandonou não só pai e mãe mas tudo. Abraçou-a por isso em ternos abraços e não quis deixar de ser seu esposo em nenhum momento. Dizia a seus filhos que ela era o caminho da perfeição, o penhor e a garantia das riquezas eternas.

Jamais houve alguém tão ambicioso de ouro quanto ele de pobreza, e nunca houve guarda mais cuidadoso de um tesouro do que ele o foi da pérola evangélica. O que mais o ofendia era ver, dentro ou fora de casa, alguma coisa nos frades que fosse contrária à pobreza. Desde sua entrada na Ordem até à morte, sua única riqueza foram uma túnica, o cordão e as calças. Sua roupa pobre mostrava que riquezas estava amontoando. Por isso, alegre, seguro e livre para correr, tinha o prazer de ter trocado as riquezas que perecem pelo cêntuplo.

POBREZA DAS CASAS

CAPITULO 26

56. Ensinava os seus a construírem habitações pequenas e pobres, de madeira e não de pedra, como as choças das pessoas mais miseráveis. Muitas vezes, falando da pobreza, recordava aos frades aquela passagem do Evangelho: "As raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos, mas o Filho de Deus não tem onde repousar a cabeça".

CAPITULO 27
Começa a destruir uma casa na Porciúncula

57. Certa feita, deveria haver um capítulo em Santa Maria da Porciúncula. Já estava em cima da hora e o povo de Assis, achando que não havia um local adequado, construiu rapidamente uma casa para o capítulo, sem que o soubesse o homem de Deus, que estava ausente.

Quando o santo voltou e viu a casa, ficou muito triste e aborrecido. Achou que devia ser o primeiro a eliminar o edifício. Subiu ao telhado e com mão forte pôs abaixo telhas e cobertura. Mandou os frades subirem também para acabar de uma vez com aquele monstro contrário à pobreza. Porque dizia que logo se haveria de espalhar pela Ordem e ser tomado por exemplo tudo que se visse de mais pretencioso naquele lugar.

Teria acabado de uma vez com o prédio se os soldados que lá estavam não tivessem feito frente ao seu fervor dizendo que ele pertencia à comuna e não aos frades.

CAPITULO 28
Na casa de Bolonha, põe os doentes para fora

58. Uma vez, voltando de Verona, ia passar por Bolonha mas ouviu dizer que aí tinha sido construída uma casa nova para os frades. Só de ouvir falar em "casa dos frades", mudou de direção e foi por outro lado, sem passar por Bolonha. Depois mandou que frades saíssem imediatamente da casa: não ficaram nem os doentes, postos para fora como os outros.

E não deu licença para voltarem enquanto o cardeal Hugolino, então bispo de Óstia e legado na Lombardia, não afirmasse em pública pregação que a casa era sua. Quem o referiu e testemunhou também teve que sair doente da casa nessa ocasião.

CAPITULO 29
Nega-se a entrar numa cela com o seu nome

59. Não queria que os frades habitassem lugar algum, pormenor que fosse, a não ser que constasse com certeza quem era o seu dono. Sempre exigiu que seus filhos observassem as leis dos peregrinos: abrigar-se sob teto alheio, passar em paz, ansiar pela pátria.

No eremitério de Sarciano, uma vez um frade perguntou ao outro de onde vinha, e este respondeu que "da cela de Frei Francisco". O santo ouviu e disse: "Já que deste à cela o nome de Francisco, tomando posse dela para mim, que ela arranje outro morador, porque eu não vou mais morar lá. O Senhor, quando esteve no deserto em que orou e jejuou por quarenta dias, não mandou fazer uma cela nem uma casa, mas ficou embaixo de uma rocha da montanha. Nós podemos seguí-lo na forma determinada, deixando de ter qualquer propriedade, embora não possamos viver sem casas".

POBREZA DOS UTENSILIOS

CAPITULO 30

60. Não só abominava a ostentação das casas como tinha horror a utensílios muito numerosos ou de valor. Não gostava de nada que, nas mesas ou nos recipientes, recordasse o mundanismo, para que tudo cantasse a peregrinação e o exílio.

CAPITULO 31
Exemplo da mesa que prepararam em Gréccio no dia da Páscoa.
Apresenta-se como peregrino, a exemplo de Cristo

61. Num dia de Páscoa, os frades prepararam no eremitério de Gréccio uma mesa mais bonita, com toalhas brancas e copos de vidro. Quando o santo pai desceu de sua cela e foi para a mesa, viu-a arrumada em lugar elevado e ostentosamente enfeitada: toda ela ria, mas ele não sorriu.

Às escondidas e devagarinho, saiu, pôs na cabeça o chapéu de um pobre que lá estava, tomou um bordão e foi para fora. Esperou à porta até que os frades começaram a comer, porque estavam acostumados a não esperá-lo quando não vinha ao sinal.

Quando iniciaram o almoço, clamou à porta como um pobre de verdade: "Uma esmola, por amor de Deus, para um peregrino pobre e doente". Os frades responderam: "Entra, homem, pelo amor daquele que invocaste".

Entrou logo e se apresentou aos comensais. Que espanto provocou esse peregrino! Deram-lhe uma escudela, e ele se sentou à parte, pondo o prato na cinza. E disse: "Agora estou sentado como um frade menor". Dirigindo-se aos irmãos, disse: "Mais do que os outros religiosos, devemos deixar-nos levar pela pobreza do Filho de Deus. Vi a mesa preparada e enfeitada, e vi que não era de pobres que pedem esmola de porta em porta".

O fato demonstra que ele era semelhante àquele outro peregrino que ficou sozinho em Jerusalém nesse mesmo dia de Páscoa. Mas, quando falou, deixou abrasado o coração de seus discípulos.

CAPITULO 32
Contra a preciosidade dos livros

62. Ensinava que nos livros devemos procurar o testemunho do Senhor e não o seu valor material; a edificação e não a aparência. Queria que fossem poucos e à disposição dos frades que precisavam. Por isso, quando um ministro lhe pediu licença para ter uns livros de luxo e muito preciosos, ouviu esta resposta: "Não quero perder pelos teus livros o livro do Evangelho, que professei. Faz o que quiseres, contanto que não seja com a desculpa da minha licença".

POBREZA DAS CAMAS

CAPITULO 33
Exemplo do bispo de Óstia, e seu elogio

63. Era tão grande a pobreza em questão de camas e cobertas, que alguém que tivesse algum pedaço de pano gasto para pôr em cima da palha achava que estava ocupando um leito nupcial.

Durante um capítulo em Santa Maria da Porciúncula, chegou o bispo de O'stia, com uma multidão de soldados e clérigos, para visitar os frades. Vendo-os deitados no chão e olhando suas camas, que mais pareciam ninhos de feras, chorou muito e disse diante de todos: "Olhem onde dormem os frades. Que será de nós, miseráveis, que tanto abusamos do supérfluo?" Todos os presentes se comoveram até as lágrimas e foram embora muito edificados.

Foi esse o bispo de Óstia que, feito mais tarde porta principal da Igreja, resistiu sempre aos inimigos, até que entregou a Deus sua alma bendita, como uma hóstia sagrada. Que coração piedoso, que entranhas de caridade! Colocado no alto, doía-se por não ter altos merecimentos, mas na realidade era mais sublime pela virtude que pelo cargo.

CAPITULO 34
O que lhe acontece numa noite ao usar um travesseiro de penas

64. Por falar em camas, lembro-me de um outro fato que talvez seja bom contar. Desde o tempo em que o santo se converteu para Cristo e tratou de esquecer as coisas do mundo, não quis mais deitar sobre um colchão ou pôr a cabeça num travesseiro de penas. E não quebrava essa resolução nem quando estava doente ou hospedado em casa de outros.

Mas, no eremitério de Greccio, quando sua doença dos olhos se agravou, foi obrigado contra sua vontade a usar um pequeno travesseiro. Quando amanheceu a primeira noite, chamou seu companheiro e disse: "Irmão, não pude dormir nesta noite, nem ficar em pé para rezar. A cabeça tremia, os joelhos cediam, e o corpo se sacudia todo, como se tivesse comido pão de joio. Acho que o diabo está nesse travesseiro em que pus a cabeça. Leva-o, que não quero mais saber de diabo na cabeça".

O frade se compadeceu do pai, que continuava a se lamuriar, e pegou o travesseiro que lhe foi jogado para levar embora. Quando saiu, perdeu a fala, e se sentiu oprimido e preso por tamanho horror, que nem podia mover os pés do lugar nem mexer os braços de lado algum.

Depois de algum tempo, quando o santo ficou sabendo disso, mandou chamá-lo. Então ficou livre, voltou e contou o que tinha sofrido. Disse-lhe o santo: "'A tarde, quando estava rezando Completas, tive certeza de que o diabo vinha para a minha cela". E acrescentou: "É muito esperto e matreiro o nosso inimigo. Quando não pode fazer o mal dentro da alma, faz com que o corpo tenha oportunidade de murmurar".

Ouçam-no os que espalham almofadas por todos os lados, para caírem sempre no mole. O diabo segue o luxo de boa vontade, gosta de estar ao lado das camas muito cômodas, principalmente quando não há necessidade e quando são contrárias à vida que se professou. Mas a antiga serpente foge com horror do homem despojado, ou porque detesta a companhia dos pobres, ou porque tem medo da grandiosidade da pobreza. Se o frade se convencer de que o diabo está embaixo das penas, ficará contente com palha para a cabeça.

EXEMPLOS CONTRA O DINHEIRO

CAPITULO 35
Dura correção para um frade que o toca com as mãos

65. Verdadeiramente apaixonado por Deus, desprezava profundamente tudo que era do mundo mas, acima de tudo, detestava o dinheiro. Fez pouco dele desde o início de sua conversão, e aos seus seguidores sempre disse que deviam fugir do dinheiro como do próprio demônio. Costumava repetir que deviam dar o mesmo valor ao esterco e ao dinheiro.

Certo dia, entrou um leigo para rezar na igreja de Santa Maria da Porciúncula, e pôs dinheiro de esmola junto da cruz. Quando ele foi embora, um frade pegou o dinheiro com simplicidade e o jogou numa janela. O santo ficou sabendo que o frade fizera isso e ele, vendo-se descoberto, correu pedir perdão e se prostrou no chão pedindo penitência. O santo o repreendeu e lhe disse coisas duras por ter tocado o dinheiro. Depois mandou que o pegasse na janela com a boca e que assim o levasse para fora do terreno e colocasse em cima de esterco de asnos. O frade obedeceu de bom grado e os presentes ficaram cheios de temor. Tiveram ainda maior aversão pelo dinheiro que assim tinha sido comparado ao esterco e se encorajavam a desprezá-lo cada dia com novos exemplos.

CAPITULO 36
Castigo de um frade que apanhou uma moeda

66. Dois frades iam a caminho de um hospital de leprosos. No caminho, encontraram uma moeda, pararam e ficaram discutindo sobre o que deviam fazer com aquele esterco. Um deles, rindo-se dos escrúpulos do confrade, tentou pegar o dinheiro para levá-lo aos enfermeiros dos leprosos. O companheiro disse que não deveria fazer isso, enganado por uma falsa piedade e desprezando temerariamente o preceito da Regra, que dizia muito claramente que dinheiro achado deve ser pisado como pó. Mas o outro não quis ouvir, porque sempre tinha sido de cabeça dura. Desprezou a Regra, abaixou-se e apanhou a moeda. Mas não escapou ao julgamento divino. Perdeu a fala na hora, rangia os dentes e não podia se comunicar.

Dessa maneira, o castigo fez bem para o louco, e a punição ensinou o soberbo a obedecer às leis do pai. Finalmente, jogou fora aquele fedor, e seus lábios lavados na água da penitência prorromperam em louvores. É velho o ditado: "Corrige o néscio e terás um amigo".

CAPITULO 37
Repreende a um frade que quer guardar dinheiro com a desculpa de que é necessário

67. Uma ocasião, Frei Pedro Cattani, vigário do santo, considerando que uma multidão de frades de fora freqüentava Santa Maria da Porciúncula, e que as esmolas não eram suficientes para prover o necessário, disse a São Francisco: "Irmão, não sei o que fazer quando vêm grupos de irmãos de toda parte e não tenho o suficiente para lhes oferecer. Peço que permitas guardar algumas coisas quando entram noviços, para recorrer a elas no tempo oportuno".

- "Irmão caríssimo - respondeu o santo -, longe de nós essa piedade. Não vamos ofender a Regra para servir quem quer que seja".

- "Que farei, então?", disse o frade.

- "Se não houver outro meio de prover às necessidades, despe o altar da Virgem e tira seus ornamentos. Podes crer que é melhor guardar o Evangelho de seu Filho e despojar o altar do que deixar o altar ornado e seu Filho desprezado. O Senhor mandará que alguém restitua à sua Mãe o que ela nos tiver emprestado".

CAPITULO 38
O dinheiro transformado numa cobra

68. Passando o homem de Deus com um companheiro pela Apúlia, perto de Bari, encontrou no caminho uma bolsa grande, dessas que chamam de alforje de negociante, cheia de moedas. O companheiro chamou a atenção do santo e insistiu com ele para recolher a bolsa e dar o dinheiro aos pobres. Falou em piedade para com os necessitados e fez o elogio das obras de misericórdia que podiam ser feitas com aquele dinheiro.

O santo se recusou absolutamente e disse que aquilo era manha do diabo. Disse: "Filho, não é lícito pegar o que é dos outros. Dar o que não é nosso é pecado e não merecimento".

Afastaram-se, apressando-se para terminar a viagem. Mas o frade não sossegou, iludido por sua falsa piedade. Continuou a sugerir a obra má.

Então o santo concordou em voltar, não para cumprir a vontade do frade, mas para esclarecer àquele insensato o mistério divino. Chamou um rapaz que estava sentado em cima de um poço à beira da estrada, para dar testemunho da Trindade "na boca de duas ou três testemunhas". Quando os três chegaram onde estava a bolsa, viram-na gorda de dinheiro.

Mas o santo não deixou nenhum deles se aproximar, querendo demonstrar com a força da oração a ilusão diabólica. Afastou-se à distância de uma pedrada e se pôs a rezar. Quando voltou, mandou o frade pegar a bolsa que, por efeito de sua oração, continha uma cobra no lugar do dinheiro.

O frade começou a tremer de medo, tomado de estranho pressentimento. No fim, por respeito à santa obediência deixou de duvidar e pegou a bolsa. Não era pequena a cobra que saiu lá de dentro, convencendo o frade da falsidade do demônio.

Disse o santo: "Irmão, para os servos de Deus, o dinheiro é apenas o diabo e uma cobra venenosa".

POBREZA DAS ROUPAS

CAPITULO 39
Repreensão do santo, por palavras e por exemplo,
aos que se vestem com luxo

69. Revestido da virtude do alto, o santo se aquecia mais com o fogo divino que tinha por dentro do que com a roupa que lhe recobria o corpo. Não suportava os que, na Ordem, usavam roupas a mais ou de qualidade mais fina. Afirmava que a necessidade que não se firma em razões válidas mas na veleidade é sinal de perda do espírito: "Quando o espírito está frio e se vai esfriando na graça, a carne e o sangue precisam procurar o que é seu".

Também dizia: "Que resta para a alma que só encontra prazer nas delícias da carne? É então que a vontade animal se disfarça em necessidade, e o sentido da carne forma a consciência". Acrescentava: "Se um de meus frades tiver uma necessidade verdadeira, próxima da indigência, e se apressar em satisfazê-la, em afastá-la de si, qual será o seu mérito? Teve uma oportunidade de merecimento, mas procurou demonstrar que não a apreciou". Submetia os principiantes a essas necessidades e a outras semelhantes, porque não suportá-las com paciência é o mesmo que retornar ao Egito.

Afinal, não queria que em nenhuma oportunidade os frades tivessem mais que duas túnicas, embora permitisse que as reforçassem com remendos. Ensinava a detestarem os panos luxuosos, e aos que faziam o contrário repreendia fortemente diante de todos. Para escarmentar tais frades com seu exemplo, costurou sobre sua túnica um saco rude. Mesmo na hora da morte pediu para cobrirem a túnica que seria sua mortalha com outro pano mais pobre.

Mas aos frades que eram forçados pela doença ou por outra necessidade permitia que usassem outra túnica mais fina junto ao corpo, mas de forma que exteriormente se observasse a aspereza e pobreza. Dizia: "Ainda vai haver tamanho relaxamento no fervor, e um domínio tão grande da tibieza, que filhos do pobre pai não vão se envergonhar de usar até púrpura, cuidando apenas de mudar a cor". Com isso, pai, não é a ti que enganamos como filhos falsos; nossa maldade engana a si mesma. E isso está aumentando e se fazendo cada dia mais evidente.

CAPITULO 40
Diz que os que se afastam da pobreza serão corrigidos pela necessidade

70. Algumas vezes, o santo se lamentou dizendo: "Quanto mais os frades se afastarem da pobreza, mais o mundo se há de afastar-se deles. Procurarão e não hão de encontrar. Mas, se estiverem abraçados à minha senhora pobreza, o mundo os alimentará, pois foram dados para a salvação do mundo". Também dizia: "Há um contrato entre o mundo e os frades: os frades dão bom exemplo ao mundo e o mundo provê suas necessidades. Quando forem infiéis e deixarem de dar bom exemplo, o mundo retirará sua mão, em justa repreensão".

Pelo zelo da pobreza, o homem de Deus tinha medo do número muito grande, que pode demonstrar riqueza, se não de fato, pelo menos na aparência. Por isso, dizia: "Oh! se fosse possível que o mundo só visse os frades raramente e se admirasse de serem tão poucos!"

Unido à senhora pobreza por um vínculo indissolúvel, esperava seu dote futuro, não o presente. Cantava com maior fervor e alegria os Salmos que falam da pobreza como: "Não ficará o pobre em eterno esquecimento", e "Olhai, pobres, e alegrai-vos".

A MENDICANCIA

CAPITULO 41
Recomendação da mendicância

71. O santo pai gostava mais das esmolas pedidas de porta em porta do que das que eram dadas espontaneamente. Dizia que a vergonha de mendigar era inimiga da salvação, embora afirmasse que a vergonha de mendigar que não impede de fazê-lo é coisa santa. Louvava o rubor que vem ao rosto por candura, mas não a vergonha que deixa confundido. Às vezes, quando exortava os seus a pedirem esmolas, usava estas palavras: "Ide, porque nesta última hora os frades menores foram dados ao mundo para que os eleitos cumpram com eles aquilo que vai ser elogiado pelo Juiz: "O que fizestes a um destes meus irmãos menores, foi a mim que fizestes".

Dizia que a Ordem tinha tido o privilégio de ter o seu nome citado tão claramente pelo Grande Profeta. Por isso queria que os frades morassem não só nas cidades mas também nos eremitérios, para dar oportunidade a todos e acabar com as desculpas dos relaxados.

CAPITULO 42
Exemplo do santo ao pedir esmola

72. Para não ofender uma vez sequer a pobreza, sua esposa, o servo de Deus altíssimo costumava agir assim: quando era convidado por senhores e sabia que ia ser distinguido com mesas mais lautas, primeiro pedia pedaços de pão pelas casas vizinhas e depois corria para a mesa, enriquecido pela miséria.

Quando lhe perguntavam por que tinha feito isso, respondia que não queria perder a herança firme por um favor de uma hora. Dizia: "É a pobreza que faz os herdeiros e os reis do reino dos céus, e não vossas falsas riquezas".

CAPITULO 43
Seu exemplo no palácio do bispo de Óstia. Resposta ao bispo

73. Numa ocasião em que São Francisco foi visitar o papa Gregório, antes de ser promovido a esse cargo, saiu já na hora da refeição para pedir esmolas e, quando voltou, colocou os pedaços de pão preto na mesa do bispo.

Quando viu isso, o bispo ficou um pouco envergonhado, especialmente por causa dos convidados que lá estavam pela primeira vez. Mas o santo pai distribuiu com semblante alegre as esmolas que tinha recebido para os cavaleiros e capelães. Todos receberam com admirável devoção. Uns comeram na hora e outros guardaram com respeito.

No fim da refeição, o bispo se levantou e o abraçou, dizendo: "Meu irmão, por que me envergonhaste nesta casa que é tua e dos teus frades, indo pedir esmolas?" Respondeu o santo: "Pelo contrário, eu vos honrei, porque honrei o Senhor maior. O Senhor gosta da pobreza, e principalmente quando a mendicidade é voluntária. Para mim é dignidade e nobreza insigne seguir aquele Senhor que, sendo rico, se fez pobre por amor de nós". E acrescentou: "Tenho mais prazer numa mesa pobre, posta com poucas esmolas, do que nas grandiosas, em que mal dá para contar o número de pratos".

O bispo ficou muito edificado e disse ao santo: "Filho, continua a fazer o que te parece bom, porque o Senhor está contigo".

CAPITULO 44
Sua exortação a pedir esmolas pelo exemplo e pela palavra

74. No começo, para exercitar a si mesmo e por compaixão da vergonha dos frades, ia ele muitas vezes sozinho para pedir esmolas. Mas quando viu que alguns não estavam dando a devida importância a sua vocação, disse: "Irmãos caríssimos, muito mais nobre era o Filho de Deus, que se fez pobre por nós neste mundo. Por seu amor, nós escolhemos o caminho da pobreza; não nos devemos envergonhar de pedir esmolas. Os herdeiros do reino não podem ficar com vergonha daquilo que lhes está garantindo a herança celestial. Eu vos afirmo que muitos nobres e muitos sábios vão entrar na nossa Ordem e vão se sentir muito honrados por poderem pedir esmolas. Por isso, vós que sois as primícias deles, alegrai-vos e exultai, e não vos negueis a fazer o que estais transmitindo para ser feito por esses santos".

CAPITULO 45
Repreensão a um frade que não quer mendigar

75. São Francisco dizia muitas vezes que o verdadeiro frade menor não devia ficar muito tempo sem ir mendigar. "E quanto mais nobre for meu filho, mais deve gostar de ir, porque é assim que acumulará méritos".

Havia em certo lugar um frade que não era ninguém na hora de esmolar mas valia por vários na hora de comer. Vendo que era comilão, participava dos frutos mas não do trabalho, disse-lhe uma vez: "Segue teu caminho, irmão mosca, porque queres comer o suor de teus irmãos e ficar ocioso no trabalho de Deus. Pareces com o irmão zângão, que não ajuda as abelhas a trabalhar mas quer comer o mel por primeiro".

Quando esse homem carnal viu que sua glutoneria tinha sido descoberta, voltou para o mundo, que nunca tinha deixado. Saiu da Ordem: já não era frade nenhum, ele que nunca tinha sido ninguém para esmolar. E o que valia por vários na hora da mesa, passou a ser uma legião de demônios.

CAPITULO 46
Corre ao encontro de um frade que traz esmolas e lhe beija o ombro

76. Numa outra oportunidade, na Porciúncula, um frade vinha voltando de Assis com esmolas e, ao chegar perto, começou a cantar e a louvar o Senhor em voz alta. Quando ouviu isso, o santo se levantou de um salto, correu para fora, beijou o ombro do frade e carregou a bolsa, dizendo: "Bendito seja meu irmão que vai com prontidão, pede com humildade e volta com alegria".

CAPITULO 47
Convence até alguns cavaleiros a pedir esmolas

77. Quando São Francisco estava muito doente e próximo do fim, foi reclamado pelo povo de Assis, que mandou uma solene delegação a Nocera, para não dar a outros a honra de ficar com o corpo do homem de Deus. Os cavaleiros que o levavam a cavalo, com muita reverência, chegaram a uma vila paupérrima, chamada Satriano. Como estavam com fome e já fosse hora de comer, foram comprar alguma coisa mas não encontraram nada. Voltaram e disseram a São Francisco: "Vais precisar dar-nos de tuas esmolas, porque aqui não há nada que se compre".

Respondeu o santo: "Não encontrais nada porque confiais mais em vossas moscas que em Deus" (chamava o dinheiro de "mosca"). "Voltai às casas por onde passastes, oferecei o amor de Deus em vez de dinheiro, e pedi esmola com humildade. Não é preciso ficar com vergonha porque, depois do pecado, tudo que temos nos é dado como esmola, e o grande Esmoler dá com clemente piedade aos dignos e aos indignos".

Os soldados deixaram de lado o respeito humano, foram pedir esmolas e conseguiram mais com o amor de Deus que com o dinheiro. As pessoas, divertidas, até competiram em serví-los e não houve fome onde dominou a opulenta pobreza.

CAPITULO 48
Em Alexandria, transforma um pedaço de frango em peixe

78. Para ele, esmolar visava mais o proveito das almas que o sustento do corpo, e era exemplo para todos quando dava e quando recebia.

Tendo ido a Alexandria da Lombardia para pregar, foi hospedado devotamente por um homem que temia a Deus e tinha muito boa fama. Pedindo-lhe este que, de acordo com o Evangelho, comesse de tudo que lhe fosse servido, concordou bondosamente, vencido pela devoção do hospedeiro.

Este cuidou logo de preparar muito bem um franguinho gordo para o homem de Deus. Estavam sentados á mesa o patriarca dos pobres e a alegre família, quando apareceu à porta um filho de Belial, pobre de toda graça mas feito mendigo por oportunismo.

Usou astuciosamente o nome do Senhor para pedir esmolas e com voz chorosa pediu que o ajudassem por amor de Deus. Ouvindo o nome que para ele era mais doce que o mel e que é abençoado mais que qualquer outro nome, o santo pegou um pedaço de frango com toda a boa vontade, colocou-o num pão e o deu ao pedinte. Ora, o infeliz guardou o que recebera para poder falar mal do santo.

79. No dia seguinte, o santo estava pregando a palavra de Deus ao povo reunido. Rugiu de repente o malvado, querendo mostrar o pedaço de frango a todo o povo. "Vede quem é esse Francisco que está pregando, a quem honrais como um santo. Vede a carne que me deu ontem à tarde quando estava jantando".

Todo mundo o repreendeu, dizendo que parecia um possesso do demônio. Porque, na verdade, todos viam que era peixe aquilo que o homem afirmava que era frango. Até ele, coitado, espantado com o milagre, foi obrigado a confessar o que todos estavam vendo. Envergonhou-se e desfez com a penitência o crime descoberto. Pediu perdão ao santo diante de todos, revelando a má intenção que tinha tido. E a carne voltou a ser o que realmente era, depois que o pecador voltou ao juízo.

OS QUE RENUNCIAM AO MUNDO

CAPITULO 49
O santo reprova um candidato que distribui suas coisas
entre os parentes e não entre os pobres

80. Aos que vinham para a Ordem, ensinava o santo que deviam entregar ao mundo a carta de repúdio, pondo primeiro suas coisas para fora para depois poderem oferecer a si mesmos, por dentro, ao Senhor. Só admitia na Ordem os que já se tivessem despojado de toda propriedade, sem ter guardado nada para si, tanto para observar o Evangelho como para evitar que os bens retidos fossem motivo de escândalo.

81. Uma vez, depois de uma pregação em Marca de Ancona, um homem foi ter com o santo pedindo humildemente para entrar na Ordem. O santo disse: "Se te queres juntar aos pobres de Deus, distribui primeiro o que é teu aos pobres do mundo".

Ouvindo isso, ele foi, mas, levado pelo amor carnal, distribuiu o que tinha entre os seus, sem dar nada para os pobres. Quando voltou e contou ao santo sua generosidade, respondeu-lhe o pai: "Vai embora, irmão mosca, porque ainda não deixaste tua casa e teus parentes. Deste o que era teu aos parentes e defraudaste os pobres, por isso não és digno dos pobres santos. Começaste pela carne, puseste um fundamento de ruína para o teu edifício espiritual".

Voltou para casa aquele "homem animal", pediu de volta o que era seu e não tinha querido deixar para os pobres e desanimou logo de seu propósito de virtude. São muitos, hoje, os que se enganam fazendo erradamente a distribuição de seus bens, pois querem entrar numa vida santa e lhe dão um começo material. Ninguém se consagra a Deus para enriquecer os parentes, mas para remir os pecados com o preço da misericórdia e para adquirir a vida pelo fruto das boas obras.

Ensinou muitas vezes que, se os frades passassem necessidade, deveriam recorrer a outras pessoas mas não aos que estavam entrando na Ordem, primeiro para dar exemplo e depois para evitar toda aparência de aproveitamento desonesto.

CAPITULO 50
Uma visão relacionada com a pobreza

82. Vou contar uma visão memorável do santo. Certa noite, depois de longa oração, acabou adormecendo. Sua santa alma foi levada para o santuário de Deus e viu em sonhos, entre outras coisas, uma senhora que assim se apresentava: cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre de cristal e, daí para baixo, de ferro. Era de estatura alta, talhe esbelto e bem proporcionada. Mas cobria suas belas formas com um manto muito pobre. Quando se levantou, pela manhã, o bem-aventurado pai contou a visão ao santo homem que era Frei Pacífico, mas sem revelar o significado.

Muita gente já deu suas interpretações, mas não acho fora de propósito apresentar a que foi dada pelo próprio Frei Pacífico, sugerida pelo Espírito Santo, quando ouviu o caso. Disse: "Essa mulher formosa é a bela alma de São Francisco. A cabeça de ouro é a contemplação e a sabedoria das coisas eternas. O peito e os braços de prata são as palavras de Deus meditadas no coração e postas em prática. A dureza do cristal demonstra sua sobriedade e o esplendor, sua castidade. O ferro é a firmeza da perseverança. E podemos crer que o manto miserável é o pobre corpo que continha aquela preciosa alma".

Muitos outros, que possuem o espírito de Deus, acharam que essa senhora era a pobreza, esposa do santo pai. Dizem que "ela foi feita de ouro pelo prêmio da glória, de prata por sua fama, cristalina por ser a mesma por dentro e por fora sem nada para esconder, e de ferro porque perseverou até o fim. O manto miserável foi tecido para ela pela reputação que tem entre os homens materializados".

Há outros que aplicam esse oráculo à Ordem, de acordo com a sucessão de tempos, como fez o profeta Daniel. Mas podemos acreditar que se referia principalmente ao santo pai, uma vez que, para evitar a vanglória, ele se recusou absolutamente a dar uma interpretação. Não teria deixado passar em silêncio se se referisse à Ordem.

COMPAIXÃO DE SÃO FRANCISCO PARA COM OS POBRES

CAPITULO 51
Sua compaixão dos pobres. Inveja os que são mais pobres

83. Quem poderá contar toda a compaixão que esse homem tinha para com os pobres? De fato, era de uma clemência nata, redobrada pela piedade infusa. Por isso, Francisco se derretia todo pelos pobres e aos que não podia estender a mão nunca deixava de dar seu afeto.

Qualquer necessidade ou penúria que visse em alguém faziam- no pensar na mesma hora em Jesus Cristo. Via o Filho da pobre Senhora em todos os pobres, pois o levava despojado em seu coração como ela o tinha carregado em seus braços.

Apesar de se ter livrado de toda inveja, não conseguiu libertar-se da cobiça da pobreza. Quando via alguém mais pobre do que ele, sentia-se logo invejoso e, disputando em pobreza, ficava com medo de ser vencido pelo outro.

84. Certo dia, em que o homem de Deus andava pregando, encontrou um pobrezinho na rua. Vendo-o sem roupa, ficou compungido e disse a seu companheiro: "A miséria desse homem é uma vergonha para nós, e uma censura à nossa pobreza".

O companheiro respondeu: "Por que, irmão?" E o santo, lamentando-se: "Escolhi a pobreza como minha senhora e toda minha riqueza, e ela está brilhando muito mais nesse homem. Ou não sabes que por todo o mundo correu nossa fama de pobres por amor de Cristo? Pois esse pobre está provando que isso não é verdade".

Invejável inveja! E' uma emulação que deve ser imitada por seus filhos! Pois não se aflige com os bens alheios, não teme a luz do sol, não se opõe à piedade, nem se remói de amarguras. Pensas que a pobreza evangélica não tem nada para ser invejado? Tem o próprio Cristo e, nele, tudo em todas as coisas em. Por que cobiças rendimentos, ó clérigo de nossos dias? Amanhã, quando só tiveres nas mãos os lucros dos tormentos, ficarás sabendo que rico de verdade foi São Francisco.

CAPITULO 52
Correção a um frade que estava falando mal de um pobre

85. Num outro dia de pregação, chegou ao lugar um pobrezinho doente. Compadecido por seu duplo sofrimento, a miséria e a dor, começou a conversar com um companheiro sobre a pobreza.

E quando sua compaixão já se tinha transformado em ternura, disse-lhe o companheiro: "Irmão, é verdade que esse aí é pobre, mas não deve haver outro mais rico em desejo, em toda esta região".

São Francisco repreendeu-o na hora e, quando confessou sua culpa, disse-lhe: "Tira já o teu hábito, ajoelha-te aos pés do pobre e confessa a tua culpa! Não peças apenas o perdão, roga também que reze por ti!" O irmão obedeceu, fez o que tinha sido mandado e voltou. Disse-lhe o santo: "Quando vês um pobre, meu irmão, tens à frente um espelho do Senhor e de sua pobre Mãe. E da mesma maneira, nos doentes deves ver as enfermidades que ele assumiu por nossa causa!"

Francisco tinha sempre o "ramalhete de mirra" em seu coração. Estava sempre olhando para o rosto do seu Cristo, sempre agarrado ao homem das dores, que conhece todos os sofrimentos.

CAPITULO 53
Em Celano, dá uma capa a uma velhinha

86. Uma vez, em Celano, no tempo do inverno, São Francisco estava usando como capa uma peça de pano que recebera por empréstimo de um homem de Tívoli, amigo dos frades.

Estava no palácio do bispo dos marsos, quando encontrou uma velhinha pedindo esmolas. Desamarrou imediatamente o pano do pescoço e, embora não fosse seu, deu-o à pobrezinha, dizendo: "Vai fazer um vestido, que bem estás precisando". A velhinha sorriu espantada, não sei de medo ou de alegria. Pegou o pano das mãos dele, foi embora depressa, e, com medo de demorar muito e ter que devolver, passou-lhe a tesoura.

Mas quando viu que o pano cortado não ia dar para o vestido, a experiência do primeiro favor fez com que voltasse ao santo para mostrar que a fazenda era pouca. O santo se voltou para o companheiro, que levava nas costas o mesmo tanto de fazenda e lhe disse: "Estás ouvindo, irmão? Vamos suportar o frio por amor de Deus. Dá o pano para a pobrezinha acabar o vestido". Como ele tinha dado, deu também o companheiro. Despojaram-se os dois para que a velhinha se vestisse.

CAPITULO 54
Outro pobre a quem dá sua capa

87. Outra vez, voltando de Sena, encontrou um pobre e disse ao frade que ia com ele: "Temos que devolver a capa a este pobrezinho, irmão, porque é dele. Nós a recebemos por empréstimo, até encontrarmos alguém mais pobre do que nós". O companheiro, vendo a necessidade em que se achava o santo pai, resistiu firmemente para que não ajudasse o outro à sua custa. Mas o santo retrucou: "Não quero ser ladrão. Seria roubo se não déssemos ao que precisa mais". O outro desistiu, e ele deu a capa.

CAPITULO 55
Age de maneira semelhante com outro pobre

88. Coisa semelhante aconteceu em Celle di Cortona. São Francisco estava com uma capa nova, que os frades tinham conseguido para ele com muito esforço. Chegou um pobre, chorando a morte da esposa e a família que tinha ficado na miséria. Disse o santo:

- "Por amor de Deus, eu te dou esta capa, com a condição de não a dares a ninguém, a não ser que pague bem". Correram os frades para tirar a capa e impedir essa doação. Mas o pobre, animado pela expressão de apoio do santo pai, agarrou-a e defendeu-a como sua. No fim, os frades compraram a capa, e o pobre foi embora com o seu pagamento.

CAPITULO 56
A outro, dá a capa com a condição de não odiar seu patrão

89. Outra vez, em Colle, no condado de Perúsia, São Francisco encontrou um pobrezinho que conhecia desde antes de sua conversão. Perguntou-lhe: "Como vais, irmão?" E ele, mal humorado, começou a amaldiçoar seu patrão, que lhe tinha tirado tudo que era seu: "Estou é muito mal, por causa de meu patrão. Que Deus todo-poderoso o amaldiçoe!"

São Francisco, com mais pena de sua alma que de seu corpo, por causa desse ódio mortal, disse-lhe: "Irmão, perdoa o teu patrão por amor de Deus, para libertares tua alma, e para haver possibilidade de ele devolver o que tirou. Senão, além de perderes tuas coisas, acabarás perdendo tua alma também". Ele respondeu: "Não posso perdoar de maneira alguma se ele não devolver primeiro o que me pertence". Como estava com uma pequena capa nas costas, São Francisco disse: "Eu te dou esta capa e te peço que perdoes teu patrão em nome do Senhor Deus".

Acalmado, e comovido com o presente, o homem recebeu a capa e perdoou as injúrias.

CAPITULO 57
A outro pobre dá um pedaço de seu hábito

90. Solicitado certa vez por um pobre e não tendo nada para dar, descosturou a barra do hábito e a entregou. Algumas vezes deu até sua roupa de baixo. Tanta era a compaixão que tinha para com os pobres, e tanto o afeto que tinha por todas as manifestações de Cristo pobre.

CAPITULO 58
Dá a uma pobre, mãe de dois frades,
o primeiro Novo Testamento que houve na Ordem

91. A mãe de dois frades veio uma vez ao santo, pedindo esmola com toda confiança. Compadecido dela, o santo pai disse a seu vigário Pedro Cattani: "Temos alguma esmola para dar a nossa mãe?" Porque chamava de mãe sua e de todos os frades quem fosse mãe de algum frade. Frei Pedro respondeu: "Não há mais nada em casa, que lhe possamos dar". E acrescentou: "Só temos o Novo Testamento, onde, como não temos breviário, lemos as lições de Matinas".

São Francisco disse: "Dá o Novo Testamento a nossa mãe, para que ela o venda e possa acudir sua necessidade, pois é ele mesmo que nos manda ajudar os pobres. Acho que Deus vai ficar mais contente com a esmola do que com a leitura".

Deram o livro à mulher, e assim, por essa piedade, foi-se embora o primeiro Novo Testamento que houve na Ordem.

CAPITULO 59
Deu sua capa a uma pobre que sofria da vista

92. No tempo em que São Francisco esteve no palácio do bispo de Rieti, para cuidar de sua doença dos olhos, foi consultar o médico uma pobrezinha de Maquilone, que tinha a mesma doença que o santo. Conversando familiarmente com o guardião, o santo começou a insinuar: "Irmão guardião, precisamos devolver o que não é nosso".

- "Se estivermos com alguma coisa, vamos devolver", respondeu o guardião.

- "Vamos devolver esta capa, que recebemos emprestada desta pobrezinha, porque ela não tem nada em sua bolsa para as despesas".

- "Mas essa capa é minha, disse o guardião, e não foi emprestada por ninguém. Usa-a enquanto te aprouver, mas tens que devolvê-la a mim quando não a quiseres mais". (Na realidade, tinha-a comprado o guardião um pouco antes, para a necessidade de São Francisco).

- "Irmão guardião, insistiu o santo, sempre foste cortês comigo. Peço-te que mostres tua cortesia".

- "Pai, faz como quiseres, tudo que o Espírito te sugerir!"

Então mandou chamar um secular muito devoto e lhe disse: "Toma esta capa e doze pães, e vai dizer àquela pobrezinha: O pobre a quem emprestaste a capa manda agradecer o empréstimo. Agora fica com o que é teu". Ele foi e fez como tinha sido mandado. Mas a mulher, pensando que estava sendo enganada, disse enrubescida: "Deixa-me em paz com tua capa. Não sei o que estás falando". Mas o homem insistiu e lhe colocou tudo nas mãos. Vendo que não havia engano e com medo de perder lucro tão fácil, a mulher se levantou de noite e, esquecendo o tratamento dos olhos, foi embora com a capa.

CAPITULO 60
Aparecem-lhe, no caminho, três mulheres, que o saúdam e desaparece

93. Vou contar em poucas palavras um fato admirável, de interpretação um tanto difícil mas de autenticidade garantida.

São Francisco, o pobre de Cristo, estava viajando de Rieti para Sena, para cuidar dos olhos, e atravessava a planície de Rocca Campília levando como companheiro de viagem um médico ligado à Ordem. Apareceram três pobrezinhas junto ao caminho, na passagem de São Francisco. Eram tão semelhantes no tamanho, na idade e no rosto, que pareciam três exemplares feitos na mesma forma. Quando São Francisco se aproximou, inclinaram reverentemente a cabeça e o saudaram com um cumprimento novo: "Bem-vinda, Senhora Pobreza!" O santo se encheu na mesma hora de incontável alegria, porque não havia nenhuma saudação que mais gostasse de ouvir do que a que elas tinham escolhido.

E pensando que aquelas mulheres fossem realmente pobrezinhas, virou-se para o médico que o acompanhava e disse: "Peço-te, pelo amor de Deus, que me dês alguma coisa para eu dar a essas pobrezinhas". Ele saltou imediatamente do cavalo e deu algumas moedas para cada uma.

Prosseguiram seu caminho mas, voltando-se logo o médico e os frades, não viram sinal das mulheres em toda aquela planície. Muito admirados, juntaram mais esse fato às maravilhas do Senhor, sabendo que não havia mulheres capazes de voar mais rápido que as aves.

AMOR DE SÃO FRANCISCO À ORAÇÃO

CAPITULO 61
Tempo, lugar e fervor de sua oração

94. Francisco, o homem de Deus, afastado do Senhor pelo corpo, procurava fazer seu espírito estar presente no céu. Concidadão dos anjos, só estava separado deles pela parede do corpo. Sua alma inteira tinha sede do seu Cristo e a ele dedicava não só o coração mas também todo o corpo. Das maravilhas de sua oração, vamos contar o pouco que vimos com nossos próprios olhos e tanto quanto é possível transmitir a ouvidos humanos, para imitação dos pósteros.

Empregava todo o seu tempo nessa santa ocupação, para gravar a sabedoria em seu coração porque, se não estivesse sempre progredindo, achava que estava regredindo. Quando era impedido por visitas de seculares ou por outros assuntos, interrompia-os antes do fim e voltava para o retiro. Para ele, que se alimentava da doçura celeste, o mundo era insípido. As delícias celestiais tinham-no tornado incapaz de suportar as grosseiros prazeres dos homens.

Procurava sempre um lugar escondido, onde pudesse entregar a seu Deus não só o espírito mas todo o seu corpo. Quando estava em lugares públicos e era visitado de repente pelo Senhor, para não ficar sem cela, fazia um pequeno abrigo com sua própria capa. Às vezes, quando estava sem capa, para não perder o maná escondido, cobria o rosto com as mangas.

Furtava-se sempre aos olhares dos presentes, para que não se dessem conta da presença do Amado e para poder rezar sem que o percebessem, mesmo nos estreitos limites dum navio. Se não o conseguia, fazia de seu próprio peito um templo. Fora de si e totalmente absorto em Deus, ele parava de tossir, de gemer, de suspirar forte, de se entregar a qualquer manifestação externa.

95. Isso em casa. Quando rezava em florestas ou lugares ermos, enchia os bosques de gemidos, derramava lágrimas por toda parte, batia no peito e, achando-se mais oculto que num esconderijo, conversava muitas vezes em voz alta com o seu Deus. Respondia ao juiz, fazia pedidos ao pai, conversava com o amigo, entretinha-se com o esposo. De fato, para fazer um holocausto múltiplo de todo o interior de seu coração, propunha a seus próprios olhos de muitas maneiras aquele que é sumamente simples. Muitas vezes ficava pensando com os lábios parados, e, levando para dentro todo o seu exterior, elevava-se até os céus. Transformado não só em orante mas na própria oração, unia a atenção e o afeto num único desejo que dirigia ao Senhor.

De que suavidade não era invadido, ele que estava acostumado a orar dessa forma! Só ele é quem sabe. Eu apenas posso admirá-lo. Só quem tem a experiência disso pode saber; para os demais o mistério continua inacessível: com o espírito todo abrasado de ardor, interior e exteriormente absorto, ele já se tornara cidadão dos céus.

Acostumara-se a não perder por negligência nenhuma visita do Espírito, e por isso, quando lhe era oferecida alguma, seguia-a, saboreando a doçura que lhe era dada enquanto o Senhor o permitia. Quando era solicitado por outro afazer ou tinha que prestar atenção na viagem, e pressentia sensivelmente algum toque da graça, saboreava aqui e ali, com a maior freqüência, o dulcíssimo maná. Mesmo na estrada, deixava os companheiros irem à frente, parava e, entregando-se ao gozo da nova inspiração, não deixava passar em vão aquela graça.

CAPITULO 62
Recitação devota das horas canônicas

96. Rezava as horas canônicas com devoção e não menor respeito. Mesmo doente dos olhos, do estômago, do baço e do fígado, negava-se a se encostar no muro ou na parede durante a salmodia. Rezava as horas em pé e sem capuz, sem vaguear os olhos e sem interrupções.

Quando viajava a pé, sempre parava para recitar o ofício. Se estava a cavalo, apeava. Num dia em que vinha voltando de Roma e estava chovendo muito, desceu do cavalo para rezar o ofício e ficou tanto tempo em pé que acabou encharcado. 'As vezes dizia: "Se o corpo tem uma hora de descanso para tomar o alimento que, como ele, vai ser pasto dos vermes, com que paz e tranqüilidade deve a alma tomar seu alimento, que é o seu Deus!"

CAPITULO 63
Como afasta as distrações na oração

97. Achava que cometia uma falta grave quando, entregue à oração, era assaltado por distrações. Se acontecia uma coisa dessas, não se poupava na confissão, para conseguir uma expiação completa. Esse esforço chegou a ser tão habitual que era muito raro ser atormentado por essa espécie de "moscas".

Durante uma Quaresma, fez um pequeno vaso, aplicando nisso muitos pedacinhos de tempo, para não o desperdiçar. Num dia em que estava rezando devotamente a hora de Terça, teve a atenção casualmente distraída para o vaso, e achou que sua interioridade tinha sido prejudicada no fervor. Condoído por ter interrompido a voz do coração que se dirigia a Deus, quando terminou a Terça, disse aos frades que o ouviam: "Que obra tola é essa, que teve tanta força sobre mim para me distrair a atenção! Vou sacrificá-la ao Senhor, porque estorvou o seu sacrifício".

Dizendo isso, pegou a vasilha e a jogou no fogo. Ainda disse: "Devíamos ter vergonha de nos deixar distrair quando estamos conversando com o Grande Rei, na oração".

CAPITULO 64
Êxtases

98. Era muitas vezes arrebatado por tamanho prazer na contemplação, que ficava fora de si, e a ninguém revelava as experiências sobre-humanas que tinha tido. Mas, por um fato, que uma vez chamou a atenção, podemos imaginar com que frequência ficava absorto nos prazeres celestiais.

Ia montado num jumento, e precisou passar por Borgo San Sepolcro. Como quis ir descansar numa casa de leprosos, muita gente ficou sabendo da passagem do homem de Deus. De toda parte correram homens e mulheres para vê-lo, querendo tocá-lo com a costumeira devoção. Apertavam, empurravam e lhe cortavam e repunham pedaços da túnica. Ele parecia insensível a tudo e, como um corpo morto, não tomou conhecimento de nada do que estava acontecendo. Afinal, chegaram ao lugar. Muito depois de terem deixado a povoação, o contemplador das coisas do céu, como se estivesse voltando de longe, perguntou interessado quando chegariam a Borgo.

CAPITULO 65
Como se comporta depois da oração

99. Quando voltava de suas orações particulares, em que quase se transformava num outro homem, esforçava-se por se assemelhar aos demais, para que a veneração dos outros, se o vissem abrasado de fervor, não o levasse a perder o que tinha lucrado.

Muitas vezes dizia a seus mais íntimos: "Quando um servo de Deus é visitado na oração por alguma nova consolação de Deus, deve levantar os olhos para o céu, antes de concluir, e dizer ao Senhor de mãos postas: 'Senhor, a mim que sou pecador e indigno mandaste do céu esta consolação e esta doçura. Eu a devolvo, para que a guardes para mim, porque sou um ladrão de teu tesouro'. E ainda: 'Senhor, tira-me o teu dom neste mundo e guarda-o para o outro'".

- "Assim é que se deve fazer", dizia, "mostrando-se aos outros, quando sair da oração, tão pobrezinho e pecador como se não tivesse conseguido nenhuma graça nova". Pois explicava: "Pode acontecer que, por uma pequena vantagem, a gente perca um dom de valor incalculável, e leve com facilidade aquele que o deu, a não dar mais".

Tinha o costume de se levantar para rezar tão disfarçada e quietamente, que nenhum dos companheiros percebia que se tinha levantado ou que estava rezando. Mas à noite, quando ia dormir, fazia muito ruído para todo mundo saber que tinha ido deitar.

CAPITULO 66
O bispo perde a fala quando o encontra a rezar

100. Estando São Francisco a rezar na Porciúncula, o bispo de Assis foi visitá-lo familiarmente, como costumava. Quando chegou, foi à cela do santo sem muita reverência, pois não tinha sido chamado, empurrou a pequena porta e foi entrando.

Logo que pôs a cabeça para dentro e viu o santo a rezar, foi tomado por um súbito tremor, teve os membros imobilizados e até perdeu a fala. Subitamente, por vontade do Senhor, foi lançado para fora e levado de costas para longe.

Na minha opinião, ou ele era indigno de contemplar o segredo, ou então o santo é que merecia continuar a receber mais do que tinha tido. O bispo voltou espantado para junto dos frades e recuperou a fala logo que confessou a culpa.

CAPITULO 67
Um abade experimenta a força de sua oração

101. Noutra ocasião, o abade do mosteiro de São Justino, da diocese de Perúsia, encontrou-se com São Francisco no caminho. Apeou-se imediatamente e conversou um pouco com ele sobre a salvação de sua alma. Ao partir, pediu humildemente ao santo que rezasse por ele. São Francisco disse: "Vou rezar de boa vontade, meu senhor".

Pouco depois que o abade se afastou, disse o santo a seu companheiro: "Espera um pouco, meu irmão. Vou cumprir o que prometi". Sempre teve esse costume. Quando lhe pediam para rezar nunca deixava para depois, cumpria quanto antes o que tinha prometido.

Pela súplica que o santo dirigiu a Deus, o abade sentiu de repente um calor diferente e uma doçura que nunca tinha experimentado em seu espírito, tanto que ficou arrebatado e os outros viram que desmaiava. Não demorou muito e, voltando a si, reconheceu a força da oração de São Francisco. Por isso sempre teve o maior amor para com a Ordem e contou a muita gente esse fato, dizendo que tinha sido um milagre.

É assim que os servos de Deus devem prestar um ao outro os seus favores. É bom que entre eles haja essa comunhão de dar e receber. A amizade santa, também chamada de amizade espiritual, contenta-se com a oração e dá pouco valor aos favores terrenos. Acho que é próprio de uma amizade santa ajudar e ser ajudado na luta espiritual, recomendar e ser recomendado diante do tribunal de Cristo.

Como não deve ter subido alto a oração de quem foi capaz de elevar assim uma outra pessoa por seus merecimentos!

COMPREENSÃO QUE O SANTO TEVE DAS SAGRADAS ESCRITURAS
E DO VALOR DE SUAS PALAVRAS

CAPITULO 68
Conhecimento e memória

102. Embora não tenha tido nenhum estudo, o santo aprendeu do alto a sabedoria que vem de Deus e, iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras. Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor.

Lia os livros sagrados de quando em quando mas, o que punha uma vez na cabeça ficava gravado indelevelmente em seu coração. Sua memória supria os livros: não perdia o que tivesse ouvido uma única vez, pois ficava refletindo com amor em contínua devoção. Dizia que esse modo de aprender e de ler era muito vantajoso, e não o de ficar folheando milhares de tratados. Achava que filósofo verdadeiro era o que preferia mais a vida eterna do que todas as outras coisas. Afirmava que passaria facilmente do conhecimento de si mesmo para o conhecimento de Deus aquele que estudasse as Escrituras com humildade e sem presunção. Era frequente resolver oralmente as dúvidas de algumas questões, porque, embora não fosse culto nas palavras, destacava-se vantajosamente na inteligência e na virtude.

CAPITULO 69
A pedido de um dominicano, interpreta um texto profético

103. Quando estava em Sena, apareceu por lá um frade da Ordem dos Pregadores, homem verdadeiramente espiritual e doutor em sagrada teologia. Foi visitar São Francisco e os dois saborearam uma longa e agradável conversa sobre as palavras do Senhor. Quis o mestre saber sua opinião sobre aquele texto de Ezequiel: "Se não advertires ao ímpio sobre sua impiedade, eu te pedirei contas de seu sangue". E esclareceu: "São muitos, bom pai, os que eu conheço e sei que estão em pecado mortal, mas nem sempre lhes mostro sua impiedade. Será que Deus vai me pedir contas de suas almas?"

São Francisco respondeu que era um ignorante e que por isso estava mais na situação de aprender com ele do que na de dar sentenças sobre as Escrituras, mas o humilde mestre lhe disse: "Irmão, já ouvi a exposição de alguns sábios sobre esse texto, mas gostaria de saber qual é o teu pensamento".

Falou, então, São Francisco: "Se é em geral que devemos entender essa palavra, eu acho que o servo de Deus deve arder tanto na vida e na santidade, que repreenda todos os maus com a luz de seu exemplo e com a voz de seu comportamento. O esplendor da vida e o bom perfume da fama é que vão convencer a todos de sua iniquidade".

O frade foi embora muito edificado e disse aos companheiros de São Francisco: "Meus irmãos, a teologia desse homem, firmada na pureza da contemplação, é uma águia a voar; nossa ciência arrasta-se pela terra".

CAPITULO 70
Respostas a um cardeal

104. Em outra ocasião, estando na casa de um cardeal, em Roma, foi interrogado sobre textos obscuros e os esclareceu de maneira tão profunda que parecia alguém que vivesse estudando as Escrituras. Disse-lhe o cardeal: "Não te interrogo como a um letrado, mas como a um homem que possui o espírito de Deus, e aceito de tão boa vontade a resposta da tua compreensão porque sei que vem apenas de Deus"

CAPITULO 71
Manifesta o que sabe a um frade que lhe recomenda o estudo

105. Quando estava doente e cheio de achaques, disse-lhe um companheiro: "Pai, sempre te refugiaste nas Escrituras, elas sempre foram um remédio para tuas dores. Peço que mandes ler alguma coisa dos profetas, pode ser que teu espírito exulte no Senhor". O santo respondeu: "É bom ler os testemunhos das Escrituras, é bom procurar nelas Deus nosso Senhor, mas eu já aprendi tantas coisas na Bíblia que para mim é mais do que suficiente recordar e meditar. Não preciso mais nada, filho. Conheço o Cristo pobre e crucificado".

CAPITULO 72
Frei Pacífico vê espadas brilhantes em sua boca

106. Havia na Marca de Ancona um secular que, esquecido de sua salvação e ignorante de Deus, entregara-se à vaidade. Chamavam-no "Rei dos Versos", porque se projetara como cantor de coisas desavergonhadas e compositor de canções mundanas. Ficou tão famoso nas glórias deste mundo, que chegou a ser coroado com toda a pompa pelo próprio imperador.

Enquanto assim caminhava, nas trevas e arrastando a iniquidade nas rédeas da vaidade, a bondade divina teve compaixão dele e resolveu chamá-lo para que não viesse a perecer abandonado. Por providência divina, encontraram-se em um mosteiro de pobres reclusas ele e São Francisco. São Francisco fora com seus companheiros para visitar suas filhas. O cantor fora com alguns colegas visitar uma parenta.

A mão de Deus pousou sobre ele, que viu com seus próprios olhos São Francisco assinalado por duas espadas refulgentes e cruzadas, uma da cabeça aos pés e outra atravessando o peito, de uma mão à outra. Não conhecia São Francisco mas, depois de tão surpreendente milagre, identificou-o imediatamente. Espantado pelo que tinha visto, começou imediatamente a fazer bons propósitos, ainda que para o futuro.

O santo pai, por sua vez, tendo pregado primeiro a todos em comum, traspassou o homem com a espada da palavra de Deus. Admoestou-o com bondade a respeito da vaidade do mundo e do seu desprezo, e terminou cravando seu coração com a ameaça dos julgamentos de Deus.

O cantor respondeu na mesma hora: "Para que mais palavras? Vamos aos fatos. Tira-me do meio dos homens e devolve-me ao grande imperador!"

No dia seguinte o santo lhe deu o hábito e, porque tinha voltado para a paz do Senhor, chamou-o de Frei Pacífico. Essa conversão teve enorme repercussão, porque seus admiradores eram inúmeros.

Na companhia do bem-aventurado pai, Frei Pacífico começou a ter consolações que nunca tivera. Viu, diversas vezes, coisas que ninguém mais via. Pouco tempo depois, viu São Francisco marcado na fronte com um grande Tau com círculos multicores, bonito como um pavão.

CAPITULO 73
Eficácia de suas palavras e testemunho de um médico

107. Pregador do Evangelho, Francisco costumava falar ao povo simples usando comparações concretas e simples, porque sabia que a virtude é mais importante que as palavras. Mas também era capaz de fazer alocuções profundas e cheias de vida para os que tinham maior aprofundamento espiritual e maior cultura. Sabia di- zer coisas difíceis em poucas palavras e, usando gestos e expressões ardorosos, arrebatava os ouvintes para o céu.

Não usava a técnica das distinções para se preparar, porque não era capaz de apresentar senão o que lhe fosse inspirado. Quem dava a força da virtude à sua voz era o próprio Cristo, que é a verdadeira virtude e a verdadeira sabedoria.

Afirmou certa vez um médico, homem erudito e eloqüente: "Guardo palavra por palavra tudo que os outros pregadores falam, só me escapa o que é dito por São Francisco. Mesmo quando consigo lembrar alguma coisa, já não me parece o mesmo que foi destilado por seus lábios".

CAPITULO 74
Pela virtude de suas palavras, Frei Silvestre espanta demônios de Arezzo

108. As palavras de Francisco não tinham força só quando ele estava presente: mesmo quando eram transmitidas por outros não deixavam de produzir o seu fruto.

Uma vez, chegou a Arezzo e soube que a cidade inteira estava afogada numa luta interna, ameaçada de iminente destruição. Hospedado numa aldeia fora da cidade, o homem de Deus viu, acima daquela terra, demônios exultantes e cidadãos que punham fogo na destruição de seus próprios concidadãos. Chamou Frei Silvestre, um homem de Deus de santa simplicidade, e lhe deu ordem dizendo: "Vai à frente da porta da cidade e, da parte de Deus todo-poderoso, manda aos demônios que saiam de lá quanto antes!"

Piedoso e simples, o frade foi correndo cumprir a ordem, e, encomendando-se a Deus com hinos de louvor, clamou valentemente diante da porta: "Da parte de Deus e por ordem de nosso pai Francisco, ide embora para longe daqui, diabos todos!" A cidade voltou à paz pouco depois e tratou de preservar com grande tranquilidade os direitos dos cidadãos. Mais tarde, dirigindo-se a eles, São Francisco disse, no início da pregação: "Dirijo-me a vós como a homens antes subjugados pelo diabo e prisioneiros dos demônios, mas sei que fostes libertados pelas preces de um certo pobre".

CAPITULO 75
Conversão de Frei Silvestre. Visão com que é agraciado

109. Parece-me oportuno referir aqui como foi a conversão desse Frei Silvestre e como foi levado pelo Espírito Santo a entrar na Ordem.

Silvestre tinha sido um sacerdote diocesano de Assis, de quem o homem de Deus tinha comprado pedras para reparar uma igreja. Quando viu que Frei Bernardo, primeira mudinha da Ordem dos Menores depois do santo de Deus, tinha deixado com perfeição tudo que era seu e o estava dando aos pobres, acendeu-se em voraz cobiça e queixou-se ao homem de Deus de que não tinha pago como devia pelas pedras recebidas. Francisco sorriu, percebendo o veneno da avareza que tinha atacado o padre. Mas, querendo de qualquer jeito dar alívio àquele maldito ardor, encheu-lhe as mãos de dinheiro, sem contar.

O padre Silvestre ficou contente com o que recebera, e mais admirado ainda com a liberalidade de quem o tinha dado. Voltando para casa, pensou muitas vezes no que tinha acontecido e começou a levantar contra si mesmo a feliz acusação de que já estava envelhecendo e amava o mundo, enquanto aquele jovem o espantava por um desprendimento tão grande de todas as coisas. Com isso ficou penetrado do bom perfume do exemplo, e Cristo lhe abriu seu coração cheio de misericórdia.

Mostrou-lhe, através de uma visão, como eram valiosas e eminentes aos seus olhos as obras de Francisco e como enchiam o mundo inteiro. Pois viu, em sonhos, uma cruz de ouro que saía da boca de Francisco, tocava os céus com sua ponta e se abria para os dois lados, abraçando o mundo inteiro.

Tocado pela visão, o sacerdote deixou de lado toda demora perniciosa, abandonou o mundo e se faz um imitador perfeito do homem de Deus. Começou a levar uma vida perfeita na Ordem e, pela graça de Cristo, chegou à mais alta perfeição.

Não admira que Francisco tenha aparecido crucificado, pois sempre esteve unido à cruz. E como teve essa cruz maravilhosa sempre enraizada em seu interior, também não admira que tenha feito desabrochar flores da terra boa e produzido ramos e frutos tão vistosos. Não podia produzir outra coisa esse chão desde o princípio totalmente dominado pela cruz.

Mas vamos continuar agora o nosso assunto.

CAPITULO 76
Um frade libertado do assalto do demônio

110. Havia um frade atormentado continuamente por uma tentação do espírito, que é muito mais sutil e pior que uma tentação da carne. Por fim, foi a São Francisco e se lançou humildemente a seus pés. Banhado em lágrimas muito amargas, não conseguia dizer nada, impedido pelos altos soluços. O pai ficou com pena dele e, vendo que estava sendo molestado por impulsos malignos, disse: "Eu vos mando pela virtude de Deus, ó demônios, que deixeis de atormentar meu irmão, como ousastes fazer até agora".

Dissipou-se imediatamente a escuridão das trevas, o frade se levantou livre e não sentiu mais o tormento, como se nunca o tivesse tido.

CAPITULO 77
A porca malvada que comeu um cordeirinho

111. Já demonstramos, em outros lugares, como sua palavra teve maravilhosa eficácia também com os animais. Mas vou contar um caso que tenho à mão.

Numa noite em que o servo do Excelso se hospedou no mosteiro de São Verecundo, da diocese de Gúbio, uma ovelha deu à luz um cordeirinho. Mas havia ali uma porca muito brava, que não poupou a vida do inocente e o matou com uma cruel mordida.

Quando os homens se levantaram pela manhã, viram o cordeirinho morto e tiveram certeza de que a culpada dessa malvadeza era a porca. Quando soube disso, o piedoso pai ficou muito comovido, lembrando-se de um outro Cordeiro, e chorou o cordeirinho morto, dizendo diante de todos: "Pobre irmão cordeirinho, animal inocente, que sempre nos recordas uma coisa importante para os homens! Amaldiçoada seja a cruel que te matou, e que nem homem nem animal comam de sua carne!"

Incrível! A porca malvada começou logo a ficar doente, passou três dias de tormento e acabou morrendo por castigo. Foi jogada no monturo do mosteiro, onde ficou por muito tempo, seca como uma tábua, sem servir de alimento para nenhum esfomeado.

CONTRA A FAMILIARIDADE COM AS MULHERES

CAPITULO 78
Deve-se evitar a familiaridade com mulheres.
Como conversa com elas

112. Mandava evitar totalmente o mel venenoso que é a familiaridade com as mulheres, que induzem ao erro até os homens santos. Temia que, com isso, o fraco se quebrasse depressa e mesmo o forte ficasse muitas vezes enfraquecido em seu espírito. Achava que só escaparia de seu contágio, conversando com elas, o homem que fosse bem provado, capaz de, conforme a Bíblia, andar no fogo sem queimar os pés.

Para dar testemunho, cuidava ele mesmo de ser exemplo de toda virtude. Pois as mulheres o perturbavam tanto que não se podia dizer que fazia isso por precaução ou para dar exemplo, mas realmente porque tinha medo e ficava horrorizado.

Quando sua importuna loquacidade o assaltava com eu falatório, invocava o silêncio falando com brevidade e humildade e baixando os olhos. Outras vezes voltava os olhos para o céu, parecendo trazer de lá as palavras que respondia às resmungadoras da terra.

Dirigia, entretanto, palavras admiráveis, embora breves, àquelas em quem a devoção tinha feito a morada da sabedoria. Quando conversava com mulheres falava o que tinha a dizer em voz alta, para poder ser ouvido por todos. Uma vez disse a seu companheiro: "Confesso-te a verdade, meu caro, não reconheceria nenhuma pelo rosto, a não ser duas. Conheço a fisionomia desta e daquela, de mais nenhuma".

Ótimo, pai, porque o rosto delas não santifica ninguém! Ótimo, porque o lucro não é zero, mas o prejuízo, mesmo de tempo, é enorme! Elas só servem de estorvo aos que querem seguir o caminho árduo da santidade e contemplar a face de Deus, radiante de beleza.

CAPITULO 79
Parábola contra os olhares para as mulheres

113. Verberava os que não tinham olhos castos com esta parábola:

"Um rei poderoso enviou à rainha, um após outro, dois mensageiros. O primeiro voltou e fez seu relatório com as palavras indispensáveis, porque era sábio e tinha segurado os olhos em sua cabeça, sem saltar para qualquer outra coisa. Voltou também o outro e, depois de fazer breve relatório, teceu um longo elogio à beleza da senhora: 'Na verdade, senhor, vi que é uma mulher belíssima. Feliz de quem pode aproveitar'.

O rei respondeu: 'Servo mau, puseste os teus olhos impuros em minha esposa? É claro que querias comprar o que sorrateiramente estiveste apreciando'.

Mandou chamar o primeiro e disse: 'Que achaste da rainha?' Ele respondeu: 'O melhor possível, porque ouviu em silêncio e respondeu com inteligência'. - 'E não é bonita?' - 'Isso sois vós que deveis olhar, senhor. Minha obrigação era levar o recado'.

Então o rei sentenciou: 'Tu, que és casto de olhos, continuarás a meu serviço, e serás ainda mais casto no corpo! Mas esse outro seja posto para fora, para que não me venha a desonrar o leito!'"

Acrescentava o bem-aventurado pai: "Quem é muito seguro não toma cuidado com o inimigo. E o diabo, se consegue se apoderar de um fio de cabelo, logo o faz crescer como uma trave. E mesmo que fique muitos anos sem poder derrubar aquele a quem está tentando, não se importa de esperar, contanto que acabe caindo em suas mãos. Esse é o seu trabalho, e ele não pensa noutra coisa, dia e noite".

CAPITULO 80
Exemplo do santo contra a familiaridade exagerada

114. Numa ocasião em que São Francisco ia a Bevagna, não conseguiu chegar à cidade porque estava muito fraco de tanto jejuar. O companheiro mandou um recado para uma senhora piedosa, pedindo humildemente pão e vinho para o santo. Quando o recebeu, ela foi correndo ao encontro do santo, acompanhada por uma filha, virgem consagrada a Deus, e levou o que era preciso.

Depois que o santo se refez e se sentiu um pouco mais forte, alimentou por sua vez mãe e filha com a palavra de Deus. E durante a pregação não olhou para o rosto de nenhuma das duas. Quando elas foram embora, o companheiro disse: "Irmão, por que não olhaste para essa moça santa, que veio te acudir com tanta devoção?" E o pai respondeu: "Quem não deve temer olhar para uma esposa de Cristo? E se pregamos com os olhos e com o rosto, ela é que tinha que olhar para mim e não eu para ela".

Muitas vezes, tratando desse assunto, dizia que toda conversa com mulheres era frívola, a não ser no confessionário, ou, se fosse o caso, dando conselhos muito breves. Dizia: "Que tem um frade menor a tratar com uma mulher, a não ser quando pede religiosamente uma santa penitência ou uma orientação para viver melhor?"

TENTAÇÖES POR QUE PASSOU

CAPITULO 81
Tentações do santo e como as supera

115. 'A medida em que aumentavam os méritos de São Francisco, mais graves eram os conflitos com a "antiga serpente". Quanto maiores seus carismas mais sutis eram as tentações e mais pesadas as lutas. Porque, embora o demônio tivesse comprovado muitas vezes que ele era combativo e valoroso, e não abandonava a luta por uma hora sequer, estava sempre procurando a agredir o seu vencedor.

A certa altura de sua vida, o santo pai teve uma gravíssima tentação do espírito, certamente para engrandecimento de sua coroa. Angustiado e sofrendo muito, afligia e macerava o corpo, orava e chorava amargamente. Depois de diversos anos nessa luta, estava um dia rezando em Santa Maria da Porciúncula, quando ouviu em espírito estas palavras: "Francisco, se tiveres fé como um grão de mostarda, dirás a uma montanha para se mudar e ela se mudará".

Respondeu o santo: "Senhor, que montanha haveria eu de mudar?" E ouviu outra vez: "A montanha é a tua tentação". Então ele disse, a chorar: "Faça-se em mim, Senhor, como dissestes". A tentação foi expulsa na mesma hora, ele ficou livre e absolutamente sossegado em seu interior.

CAPITULO 82
O demônio o chama, e o tenta para a luxúria. Como o santo vence

116. No eremitério dos frades em Sarciano, aquele malvado que sempre tem inveja dos aproveitamentos dos filhos de Deus preparou para o santo o que vamos narrar.

Vendo que o santo ainda estava se santificando mais e que não descuidava do lucro de hoje pelo de ontem, numa noite em que estava em oração no seu cubículo, chamou-o três vezes dizendo: "Francisco, Francisco, Francisco!"

Respondeu o santo: "Que queres?"

E o demônio: "Não há pecador nenhum neste mundo a quem o Senhor não perdoe, se se converter. Mas nunca vai obter misericórdia quem se matar por uma dura penitência".

O santo logo conheceu, por uma revelação, a astúcia do inimigo, que estava procurando fazer com que voltasse para uma vida morna. O inimigo não desanimou e partiu para um novo ataque. Vendo que não tinha conseguido esconder-se nessa armadilha, armou outra, uma tentação da carne. Em vão, porém, porque aquele que tinha descoberto a malícia do espírito não pôde ser enganado pela carne. Então o demônio lhe aprontou uma gravíssima tentação de luxúria.

Mas o santo pai, logo que percebeu, tirou a roupa e se açoitou duramente com uma corda, dizendo: "Vamos, irmão asno, é assim que te deves comportar, é assim que tens de ser castigado. Esta é a túnica da ordem e não tens o direito de ser falso. Se estás querendo ir para outro lugar, que te vás!"

117. Quando viu que a tentação não ia embora nem com as chicotadas, apesar de já estar com o corpo todo marcado de sangue, abriu a cela, saiu para o bosque e mergulhou, despido, na neve alta. Depois encheu as mãos e fez sete bonecos de neve. Colocou- os à sua frente e começou a dizer a seu corpo:

- "Essa maior é tua mulher, essas outras quatro são teus dois filhos e duas filhas, as outras duas são o servo e a criada que precisas ter para o teu serviço. Trata de vestir a todos, que estão morrendo de frio. Mas, se te parecer molesto todo esse cuidado por eles, tens que servir só a Deus, decididamente!"

O diabo foi logo embora confundido e o santo voltou para a cela glorificando a Deus. Um frade piedoso, que estava rezando nessa hora, viu tudo isso à luz da lua. Mas o santo ficou muito aborrecido quando soube que o frade o tinha visto de noite, e lhe proibiu que o contasse a quem quer que fosse, enquanto ele vivesse neste mundo.

CAPITULO 83
Livra um frade da tentação. Vantagem da tentação

118. Um frade, que era assediado por uma tentação, disse ao santo, um dia em que estavam a sós: "Reza por mim, meu bom pai, porque eu acho que serei libertado imediatamente de minhas tentações se te dignares rezar por mim. Estou sofrendo acima de minhas forças e sei que isso não te é oculto".

São Francisco respondeu: "Podes crer, filho, que isso me faz acreditar ainda mais que és um servo de Deus. Fica certo de que, quanto mais fores tentado, mais te hei de amar". E acrescentou: "Na verdade, ninguém pode dizer-se servo de Deus enquanto não passar por tentações e tribulações. Uma tentação vencida é como um anel com que o Senhor desposa a alma de seu servo. Há muitos que se comprazemcom os méritos que acumularam durante muitos anos e se alegram por não terem encontrado tentações. É bom que saibam que o Senhor levou em conta a fraqueza de seu espírito, se não, teriam morrido de susto, antes do combate. Só há duros combates onde há virtude perfeita".

SUA LUTA COM DEMONIOS

CAPITULO 84
Assalto dos demônios. As cortes devem ser evitadas

119. Não só foi só com tentações que Satanás o assaltou, porque o santo também teve que lutar com ele corpo a corpo.

Numa ocasião em que o Cardeal Leão de Santa Cruz lhe pediu que fosse passar uns tempos com ele em Roma, escolheu uma torre afastada, que era dividida em nove arcadas formando apartamentos que pareciam celas de eremitério.

Na primeira noite, quando estava para descansar depois de ter feito suas orações, vieram os demônios e travaram ferrenhas batalhas contra o santo de Deus. Bateram nele por muito tempo e duramente, deixando-o quase morto.

Quando foram embora e o santo conseguiu recobrar o alento, chamou o companheiro que dormia num dos cubículos e disse: "Irmão, quero que fiques perto de mim, porque estou com medo de estar sozinho. Os demônios me bateram agora mesmo". O santo tremia e tinha calafrios, como se estivesse com febre muito alta.

120. Passaram a noite inteira sem dormir, e São Francisco disse ao companheiro: "Os demônios são os carrascos de nosso Senhor, a quem ele incumbe de punir os excessos. Mas é um sinal a mais da graça de Deus não deixar impune um servo seu enquanto está vivendo neste mundo".

"Para dizer a verdade, eu não me lembro de nenhuma ofensa que, pela misericórdia de Deus, já não tenha lavado pela penitência, porque a sua bondade paterna sempre me tratou assim, mostrando-me na oração e na meditação o que lhe agradava e o que lhe desagradava. Mas pode ser que tenha permitido a seus carrascos que me atacassem porque não fica bem diante dos outros essa minha permanência na corte dos grandes".

"Os meus irmãos, que moram em lugares pobrezinhos, quando ouvirem dizer que estou com cardeais, na certa vão pensar que estou nadando em delícias. Por isso, irmão, acho melhor que aquele que é posto como exemplo fuja das cortes e também acho que os que padecem privações se fortalecem justamente por isso".

De manhã, foram contar tudo ao cardeal e se despediram dele.

É bom que os frades palacianos conheçam esse fato e saibam que são abortivos tirados do seio de sua mãe. Não condeno os que são mandados por obediência, mas repreendo a ambição, o ócio e os prazeres. E proponho Francisco como modelo para todos os que têm que obedecer. Não devemos fazer nada que desagrade a Deus, mesmo que agrade aos homens.

CAPITULO 85
Um exemplo a propósito

121. Lembro-me de um caso que não pode ser deixado de lado. Certo frade, vendo que outros irmãos moravam em um palácio, levado por não sei que vanglória, quis ser palaciano com eles. Estando cheio de curiosidade pela corte, numa noite viu em sonhos os referidos irmãos postos para fora da casa dos frades e separados de sua companhia. Viu-os também a comer numa vilíssima e imunda gamela de porcos, onde havia grão de bico misturado com esterco humano.

Diante disso, o frade ficou assustadíssimo e, quando se levantou pela manhã, já não queria mais saber de palácios.

CAPITULO 86

122. Chegou uma vez o santo, com um companheiro, a uma igreja situada longe das casas, e desejando orar sozinho, disse ao companheiro: "Irmão, gostaria de ficar sozinho aqui. Vai para o hospital e volta aqui amanhã cedinho!"

Depois de ter passado muito tempo sozinho, fazendo devotíssimas e longas orações ao Senhor, olhou ao redor procurando um lugar para descansar a cabeça e dormir. Mas, de repente, começou a se perturbar, a ter medo e fastio, tremendo no corpo inteiro. Sentia com clareza os ataques diabólicos e ouvia bandos de demônios correndo ruidosamente por cima do telhado.

Levantou-se imediatamente, foi para fora e, fazendo o sinal da cruz na fronte, disse: "Da parte de Deus todo-poderoso eu vos digo, demônios, que façais em meu corpo tudo que vos tenha sido permitido. Suportarei de boa vontade porque, não tendo maior inimigo que meu próprio corpo, vingando-se de mim havereis de vingar-me de meu adversário".

Mas eles tinham vindo para o abalar. Quando viram que possuia um espírito decidido naquele corpo frágil, ficaram envergonhados e logo sumiram.

123. O companheiro voltou ao amanhecer e, vendo o santo prostrado diante do altar, ficou esperando fora do coro e aproveitou o tempo para rezar ele mesmo fervorosamente diante da cruz. Entrou em êxtase e viu, entre muitos outros tronos no céu, um que se destacava, ornado de pedras preciosas e refulgente de toda glória. Admirou-se com o trono e ficou pensando consigo mesmo a quem pertenceria. Ouviu, então, uma voz que lhe dizia: "Este trono pertenceu a um dos que caíram, e agora está reservado para o humilde Francisco".

Quando voltou a si, o frade viu o bem-aventurado Francisco sair da oração e, pouco depois, prostrado com os braços em forma de cruz, falou com ele como se dirigisse a alguém que reinava no céu e não que vivia na terra: "Pai, pede por mim ao Filho de Deus, para que me perdoe os pecados!"

O homem de Deus estendeu a mão para que se levantasse, sabendo que alguma coisa lhe devia ter sido mostrada na oração. Depois, quando iam indo embora, o frade perguntou a São Francisco: "Pai, qual é a tua opinião a respeito de ti mesmo?" Ele respondeu: "Acho que sou o maior dos pecadores porque, se Deus tivesse demonstrado a algum criminoso toda a misericórdia que teve comigo, ele seria dez vezes mais espiritual que eu".

Então o Espírito Santo disse no coração do frade: "Fica certo de que tiveste uma visão verdadeira, porque a humildade vai levar o humilde para o trono que foi perdido pela soberba".

CAPITULO 87
Um frade libertado da tentação

124. Um frade piedoso e antigo na Ordem, atormentado por grande tribulação da carne, parecia ter sido arrebatado à profundidade do desespero. Seu sofrimento era cada dia maior, porque tinha uma consciência mais escrupulosa que discreta, que o forçava a confessar ninharias. Deveríamos confessar-nos diligentemente quando caímos nas tentações, não só porque as tivemos. Além disso, o frade se sentia tão envergonhado, apesar de não ter feito nada, que, com medo de contar tudo a uma só pessoa, dividia as suas preocupações e as contava por partes, a diversos sacerdotes.

Num dia em que estava andando com ele, o santo disse: "Irmão, não deves mais confessar teu problema a ninguém. Não tenhas medo, porque se não estás consentindo no que acontece contigo, isso vai ser contado como proveito e não como culpa. Todas as vezes que te sentires atribulado, rezarás sete pai-nossos, por mi- nha conta".

Muito admirado, sem saber como o santo tivera conhecimento disso, o frade ficou todo contente e, pouco depois, já estava livre de todo o problema.

CAPITULO 88
A alegria espiritual e seu louvor. O mal da tristeza

125. O santo garantia que o remédio mais seguro contra as mil armadilhas e astúcias do inimigo era a alegria espiritual. Costumava dizer: "A maior alegria do diabo é quando pode roubar ao servo de Deus o gozo do espírito. Carrega um pó para jogar nos menores meandros da consciência, para emporcalhar a candura da mente e a pureza de vida. Mas quando os corações estão cheios de alegria espiritual, a serpente derrama à toa o seu veneno mortal. Os demônios não conseguem fazer mal ao servidor de Cristo quando o vêem transbordante de santa alegria. Quem tem o ânimo abatido, desolado e melancólico é facilmente absorvido pela tristeza ou então é dominado pelos falsos prazeres".

Por isso o santo tratava de viver sempre no júbilo do coração, conservando a unção do espírito e o óleo da alegria. Evitava com muito cuidado a horrível doença da tristeza, a tal ponto que, era só sentir fraquejar um pouco, ele já corria a rezar.

Dizia: "Quando o servo de Deus se sente perturbado por qualquer motivo, como pode acontecer, deve levantar-se quanto antes para rezar, e ficar firme diante do Pai supremo até que lhe devolva sua alegria salutar. Porque, se demorar muito na tristeza, fará desenvolver-se esse mal babilônico que, se não for lavado pelas lágrimas, acabará deixando no coração uma ferrugem permanente".

CAPITULO 89
Ouve um anjo tocando cítara

126. Nos dias em que esteve em Rieti tratando dos olhos, chamou um dos companheiros, que tinha sido citarista antes de ser frade, e lhe disse: "Irmão, os filhos deste século não entendem os planos de Deus. A má inclinação dos homens passou a usar os instrumentos de música, destinados antigamente aos louvores divinos, só para agradar os ouvidos. Por isso eu gostaria, meu irmão, que fosses pedir em segredo uma cítara emprestada para tocar alguma canção bonita e dar algum alívio ao irmão corpo cheio de dores". O frade respondeu: "Pai, tenho muita vergonha, porque podem pensar que cedi a uma tentação de leviandade". O santo disse: "Então vamos esquecer isso, irmão. Há muitas coisas que é melhor deixar de fazer para não ferir a boa fama".

Na noite seguinte, estando o santo acordado e a meditar em Deus, soou de repente uma cítara de admirável harmonia e suavíssima melodia. Não se via ninguém, mas dava para perceber pelo ouvido que o citarista estava andando para lá e para cá. Com o espírito arrebatado em Deus, o santo pai sentiu um prazer tão suave com aquela doce música, que parecia ter sido transferido para outro mundo.

Quando se levantou de manhã, o santo chamou o frade de quem falamos acima, contou-lhe tudo direitinho e disse: "O Senhor, que consola os aflitos, nunca me deixou sem consolação. Eu não podia escutar as cítaras dos homens e acabei ouvindo uma outra mais bonita".

CAPITULO 90
Canta em francês quando está entusiasmado

127. Às vezes, acontecia o seguinte: A suavíssima melodia de seu coração se expressava em palavras que ele cantava em francês. E também era em alegres cânticos franceses que ele extravasava o que Deus lhe tinha murmurado furtivamente ao ouvido.

Às vezes - como pude ver com meus próprios olhos - pegava um pedaço de pau no chão, punha-o sobre o braço esquerdo, segurava na direita um arco retesado por um fio, passava-o no pedaço de pau como se fosse um violino e, balançando o corpo com ritmo, cantava ao Senhor em francês.

Freqüentemente essa festa toda acabava em lágrimas, e o júbilo se dissolvia na compaixão para com a paixão de Cristo. Então começava a suspirar sem parar, gemendo muito, e logo, esquecido do que tinha nas mãos, era arrebatado ao céu.

CAPITULO 91
Repreende um frade triste, ensinando-lhe como se comportar

128. Uma vez viu um de seus frades com semblante aborrecido e triste e, sem conseguir suportá-lo, disse: "Um servo de Deus não deve mostrar-se triste ou carrancudo, mas sempre sereno. Resolve teus problemas em tua cela, chora e geme na frente do teu Deus. Quando voltares para junto dos irmãos, deixa de lado o aborrecimento e trata de te comportares como um deles". E acrescentou, um pouco depois: "Os inimigos da salvação humana me odeiam bastante e estão sempre procurando perturbar meus companheiros porque não o conseguem comigo".

Gostava tanto de ver as pessoas cheias de alegria espiritual que em certo capítulo mandou escrever estas palavras de exortação para todos: "Cuidem os frades de nunca se mostrar mal-humorados e hipocritamente tristes. Mostrem-se jubilosos no Senhor, alegres e felizes, simpáticos como convém".

CAPITULO 92
Como tratar o corpo, para que não se queixe

129. Uma vez, o santo também disse: "Devemos cuidar discretamente do irmão corpo, para que não levante a tempestade da tristeza. Para que não se enjoe de vigiar e possa perseverar devotamente em oração, não podemos dar-lhe razões para se queixar: 'Estou morrendo de fome, não agüento o peso de teu sacrifício'. Mas, se vier com essas queixas depois de ter devorado uma ração suficiente, podeis saber que o jumento vagabundo está precisando de esporas, e que o burrinho empacado está esperando chicote".

Só neste ponto o santíssimo pai foi incoerente entre o que disse e o que fez. Porque submeteu seu corpo inocente com pancadas e privações, multiplicando seus ferimentos sem necessidade. Porque o ardor de seu espírito já tinha tornado tão leve seu corpo que, quanto mais sua alma tinha sede de Deus, maior era a mesma sede também em sua carne santificada.

A FALSA ALEGRIA

CAPITULO 93
Contra a hipocrisia e a vaidade

130. Tendo abraçado a alegria do espírito, evitava cuidadosamente a que é falsa, porque sabia que se deve querer com fervor o que aperfeiçoa, e fugir com vigilância ainda maior daquilo que prejudica. Tratava de destruir em seu germe toda vaidade, não deixando sobreviver um só momento qualquer coisa que pudesse ofender os olhos de seu Senhor. Muito freqüentemente, quando o cobriam de elogios, sofria e até gemia, ficando muito triste.

Num dia de inverno em que o santo, para cobrir seu pobre corpo, não tinha mais do que uma túnica remendada com trapos miseráveis, seu guardião, que também era seu companheiro, comprou uma pele de raposa e lha deu, dizendo: "Pai, estás doente do baço e do estômago. Eu te peço por teu amor ao Senhor que me deixes costurar este couro embaixo de tua túnica. Se não o quiseres inteiro, pelo menos permite colocar um pedaço em cima do estômago". São Francisco respondeu: "Se queres que eu agüente isso por baixo da túnica, manda pregar um remendo do mesmo tamanho pelo lado de fora, para mostrar que há uma pele escondida lá dentro".

O irmão não concordou, e ficou insistindo. No fim, o guardião acabou concordando e mandou costurar um remendo por cima do outro, para não mostrar por fora o que não era por dentro.

Sempre puseste em prática o que ensinaste, sempre foste o mesmo por fora e por dentro, sempre foste o mesmo como súdito e como superior! Não apreciavas nenhuma glorificação alheia ou particular, porque te gloriavas no Senhor!

Mas, por favor, quando disse que uma pele foi posta no lugar da outra não quis magoar os que usam peles. Pois sabemos que também aqueles que perderam o estado de inocência precisaram de túnicas de pele.

CAPITULO 94
Confessa-se hipócrita

131. Numa ocasião, ele convidou muita gente para uma pregação no tempo do Natal, e começou dizendo o seguinte: "Credes que sou um santo, e por isso viestes aqui com devoção. Mas eu vos confesso que em toda esta Quaresma minha comida foi feita com banha". E assim se acusava freqüentemente de culpa por concessões que tinha feito devido a sua enfermidade.

CAPITULO 95
Acusa-se de vanglória

132. Com igual fervor, se tinha alguma tentação de vanglória, confessava-o logo com simplicidade diante de todos. Numa ocasião, andando pela cidade de Assis, encontrou-se com uma velhinha que lhe pediu alguma coisa. Não tendo nada a não ser a capa, deu-a com apressada liberalidade. Depois sentiu uma vã satisfação por causa disso e imediatamente se confessou diante de todos dizendo que tinha sido vaidoso.

CAPITULO 96
Palavras contra os que o louvam

133. Esforçava-se para esconder em seu coração os bens do Senhor, não querendo saber de uma glória que podia ser sua ruína. Com muita freqüência, quando era louvado por muita gente, respondia mais ou menos o seguinte: "Ainda posso ter filhos e filhas. Não me louveis como se estivesse seguro! Não se deve louvar ninguém que ainda tem um fim incerto. Se aquele que fez o empréstimo retirar o que deu, sobrarão apenas o corpo e a alma, coisas que até um infiel possui".

Dizia isso aos que o louvavam. A si mesmo dizia: "Francisco, se o Altíssimo tivesse dado tudo isso para um ladrão, ele seria mais agradecido do que tu!"

CAPITULO 97
Palavras aos que se louvam

134. Dizia muitas vezes aos irmãos: "Ninguém deve felicitar-se por coisas que qualquer pecador pode fazer. Um pecador pode jejuar, rezar, chorar, castigar o próprio corpo. Mas não pode ser fiel ao seu Senhor. Disso é que podemos nos gloriar: se prestamos a Deus a glória devida, se o servimos com fidelidade e reconhecemos como seu tudo que nos deu.

O maior inimigo do homem é a carne. Não aprendeu a pensar em nada que cause arrependimento, nem a prever as coisas que deve temer. Sua preocupação é abusar das coisas presentes. E o que é pior: apropria-se e se gloria do que foi dado para a alma, e não para ela. Quer ser elogiada por suas virtudes e granjear o reconhecimento dos outros por suas vigílias e orações. Sem deixar nada para a alma, exige o reconhecimento até das lágrimas".

COMO ESCONDE SUAS CHAGAS

CAPITULO 98
Resposta que dá a uma pergunta sobre os estigmas.
Cuidado com que os cobre

135. Não podemos deixar de contar como encobriu e com que cuidado procurou esconder os gloriosos sinais do Crucificado, dignos de serem venerados até pelos espíritos celestiais. Logo que o verdadeiro amor de Cristo transfigurou em sua própria imagem aquele que o amava, ele se empenhou em dissimular e esconder o tesouro com tanto cuidado, que durante muito tempo nem os que conviviam com ele souberam de nada. Foi a providência divina que não quis que isso ficasse escondido para sempre, sem aparecer aos olhos de seus queridos. Ainda mais que o lugar das chagas não permitia que estivessem sempre encobertas. Quando um de seus companheiros viu os estigmas em seus pés, disse: "Que é isso, meu irmão?" Ele respondeu: "Cuida do que é teu!"

136. Outra ocasião, o mesmo frade pediu sua túnica para lavar. Vendo que estava manchada de sangue, perguntou ao santo, quando a devolveu: "Que sangue é esse, que manchou tua túnica?" O santo apontou para um dos olhos e disse: "Pergunta o que é isto, se não sabes que é um olho".

Raramente lavava as mãos inteiras, limitando-se a molhar os dedos, para que os que estavam por perto não as vissem. Lavava os pés ainda mais rara e mais ocultamente. Quando alguém lhe pedia a mão para beijar, apresentava só os dedos e algumas vezes chegou a apresentar a manga no lugar da mão.

Calçava meias de lã para não mostrar os pés, colocando uma pele em cima das feridas para suavizar a aspereza da lã. Apesar de não conseguir esconder os estigmas das mãos e dos pés aos seus companheiros, o santo pai não gostava quando alguém olhava para eles. Por isso, cheios do espírito da prudência, os próprios confrades desviavam os olhos quando ele precisava descobrir as mãos ou os pés.

CAPITULO 99
Um frade consegue vê-las, enganando-o piedosamente

137. Quando o santo morava em Sena, apareceu por lá um frade de Bréscia, que queria muito ver as chagas do santo pai e pediu insistentemente a Frei Pacífico que lhe desse oportunidade.

Frei Pacífico respondeu: "Quando estiver para sair, vou pedir suas mãos para beijar. Quando ele as apresentar eu te farei um sinal com os olhos e verás".

Prepararam-se para sair, foram ter com o santo, ajoelharam- se e Frei Pacífico disse a São Francisco: "Abençoa-nos, mãe caríssima, e dá-me a mão para beijar". Beijou a mão que não lhe foi estendida de boa vontade, e mostrou-a ao frade. Pediu a outra, beijou-a e também a mostrou.

Quando eles saíram, o pai desconfiou de que tinha caído numa santa armadilha, como de fato acontecera. Julgando irreverente aquela piedosa curiosidade, mandou logo chamar Frei Pacífico e lhe disse: "Que Deus te perdoe, irmão, porque às vezes me dás um grande aborrecimento".

Frei Pacífico se prostrou imediatamente e perguntou com humildade: "Que aborrecimento te causei, mãe caríssima?" São Francisco não respondeu e o incidente acabou por aí.

CAPITULO 100
Um irmão vê a chaga do peito

138. Embora as chagas das mãos e dos pés, colocadas em lugar aberto, tivessem ficado à vista de alguns, só houve uma pessoa que viu a chaga do seu peito enquanto esteve vivo, e uma vez só. Porque todas as vezes que tirava a túnica para limpar, cobria com o braço direito a chaga do lado. Mas um companheiro, quando o estava massageando, escorregou a mão para a ferida e lhe causou uma dor muito grande.

Outro frade, cheio de curiosidade por ver o que estava escondido para os outros, disse um dia ao santo pai: "Pai, quer que te limpe a túnica?" O santo respondeu: "Que o Senhor te recompense, irmão, porque de fato estou precisando". Enquanto ele se despia o frade espiou com olhos atentos e viu a chaga marcada no peito. Foi só esse que a viu durante a vida, e mais nenhum até sua morte.

CAPITULO 101
Ocultamento das virtudes

139. Foi assim que esse homem renunciou a toda glória que não tivesse o sabor de Cristo. Foi assim que lançou um anátema eterno contra todos os favores humanos. Sabia que o preço da fama era o desgaste do segredo da consciência e que era muito mais perigoso abusar das virtudes que não as possuir. Sabia que não era menor virtude defender as conquistas já feitas que conquistar novas.

Ai de nós, que somos levados mais pela vaidade que pela caridade, deixando que o reconhecimento do mundo prevaleça sobre o amor de Cristo. Não discernimos nossas afeições, não provamos o espírito e, levados a agir por vanglória, achamos que agimos por caridade. Quando chegamos a fazer algum bem, por menor que seja, não suportamos o seu peso, deixamos escapar tudo nesta vida e chegamos de mãos vazias à eternidade. Conformamo-nos com a nossa falta de bondade, mas não suportamos que os outros o saibam e não acreditem em nós. Vivemos totalmente para os elogios dos homens, porque não somos nada mais que homens.

A HUMILDADE

CAPITULO 102
Humildade de São Francisco no comportamento, no porte e nos costumes.
Contra o próprio parecer

140. A humildade é garantia e honra de todas as virtudes. O edifício espiritual que não a tem por base caminha para a ruína mesmo quando parece estar crescendo.

Como não podia faltar a um homem ornado de tantos dons, a humildade tinha-o cumulado com a maior fecundidade. A seu entender, não passava de um pecador, embora fosse um deslumbrante exemplar de toda espécie de santidade. Tratou sempre de edificar a si mesmo sobre a humildade, colocando o fundamento que tinha aprendido de Cristo. Esquecido do que já conseguira, só sabia ver os próprios defeitos, olhando mais o que faltava do que o que possuia. Seu único desejo era ser melhor e conquistar novas virtudes sem se contentar com as que já tinha.

Era humilde de presença, mais humilde de sentimento e muito mais humilde no conceito que fazia de si mesmo. Príncipe de Deus, não se destacava pela posição em que tinha sido posto mas unicamente por uma preciosa jóia: conseguira ser o mínimo entre os menores. Essa era a virtude, esse era o título, esse era o único sinal que indicava ser ele o ministro geral. Tinha afastado de sua boca toda grandiosidade, e também toda pompa de seus gestos e todo fausto de suas ações.

Sabia por revelação o sentido de muitas coisas, mas, diante dos outros, deixava que prevalecesse a opinião deles. Achava que as idéias de seus companheiros eram mais seguras e que a opinião dos outros era melhor que a dele. Dizia que não tinha deixado tudo por amor de Deus aquele que ainda segurava a bolsa de seu próprio modo de pensar. Preferia uma crítica a um elogio, porque a crítica o levaria a emendar-se, e o elogio, a tropeçar.

CAPITULO 103
Sua humildade diante do bispo de Terni e diante de um homem rude

141. Numa ocasião em que foi pregar ao povo de Terni, no fim do sermão o bispo da cidade o elogiou deste modo diante de todos: "Nestes últimos tempos, Deus iluminou sua Igreja com este pobrezinho desprezível, simples e ignorante. Temos que louvar sempre o Senhor, pois sabemos que não agiu dessa maneira com todas as nações".

Ouvindo isso, o santo ficou muito contente: o bispo tinha mostrado bem claro como ele era desprezível. Quando entraram na igreja, lançou-se aos pés do bispo dizendo: "Na verdade, senhor bispo, fizeste-me uma grande honra, porque foste o único que conservou o que é meu. Os outros tiram. Tiveste a discrição de separar o que é precioso do que não presta, dando o louvor a Deus e a mim o desprezo".

142. Mas o homem de Deus era humilde tanto diante dos grandes como de seus iguais e dos mais desprezados, pois estava mais preparado para ser admoestado e corrigido que para dar conselhos.

Num dia em que, fraco e doente, não podendo ir a pé, passou montado num burrinho pelo terreno em que estava trabalhando um rude camponês, este foi correndo perguntar se ele era Frei Francisco. O homem de Deus respondeu humildemente que era ele mesmo, e o outro disse: "Trata de ser tão bom como todos dizem, porque são muitos os que confiam em ti. Por isso te aconselho a não seres diferente daquilo que esperam de ti".

Ouvindo isso, Francisco, o homem de Deus, saltou do burro para o chão, prostrou-se diante daquele homem rude e lhe beijou os pés com humildade, agradecido porque se tinha dignado dar-lhe conselhos.

Apesar de ser tão famoso e tido por muita gente como santo, achava-se um miserável diante de Deus e dos homens, e não se ensoberbecia nem com a fama nem com a santidade e nem mesmo com os muitos irmãos e filhos santos que lhe tinham sido dados como começo da recompensa por seus merecimentos.

CAPITULO 104
Durante um capítulo, renuncia a ser superior. Uma oração

143. Para conservar a virtude da santa humildade, poucos anos depois de sua conversão, durante um capítulo, renunciou ao cargo de superior da Ordem diante de todos os frades, dizendo: "Desde agora, estou morto para vós. Aqui está Frei Pedro Cattani, a quem obedeceremos eu e vós todos". Inclinou-se diante dele e lhe prometeu obediência e reverência. Os frades choraram e deram altos gemidos de dor, vendo que tinham ficado órfãos de semelhante pai.

Mas São Francisco se levantou, juntou as mãos, levantou os olhos para o céu e disse: "Senhor, eu te recomendo a família que até agora tinhas entregue a meus cuidados. Agora, por causa das enfermidades que conheces, dulcíssimo Senhor, não podendo mais cuidar dela, passo-a aos ministros. Que eles sejam obrigados a te prestar contas, Senhor, no dia do juizo, se algum de seus frades tiver perecido por negligência, mau exemplo, ou mesmo por excessiva severidade".

Passou a ser súdito até a morte, comportando-se com mais humildade que qualquer outro.

CAPITULO 105
Renuncia até a seus companheiros

144. Noutra ocasião devolveu a seu vigário todos os companheiros, dizendo: "Não quero me destacar por esse privilégio. Que os frades me façam companhia em cada lugar conforme Deus lhes inspirar". E acrescentou: "Já vi um cego que, para guia de seu caminho, tinha uma cadelinha". Para ele a vantagem era renunciar a toda singularidade e toda jactância, para que a virtude de Cristo morasse nele.

CAPITULO 106
Palavras contra os que querem ser superiores.
Descrição do frade menor

145. Vendo que alguns ambicionavam cargos, e achando que só essa vontade de mandar, além do mais, já os tornava indignos, dizia que não eram frades menores, pois tinham perdido o merecimento, esquecidos da vocação recebida. E verberava com muitos argumentos alguns infelizes que recebiam mal a perda dos cargos, porque não estavam querendo a carga mas a honra.

Uma vez, disse a seu companheiro: "Acho que não sou um frade menor se não tiver a disposição que vou descrever. Supõe que sou o superior dos irmãos, vou ao capítulo, prego, admoesto os frades e, no fim, dizem contra mim: 'Não nos convém um iletrado e desprezível, por isso não queremos que reines sobre nós, porque não sabes falar, és simples e idiota'. Afinal, sou vergonhosamente posto para fora, desprezado por todos. Pois eu te digo, se não ouvir essas palavras com a mesma feição, com a mesma alegria interior, com a mesma vontade de ser santo, não sou frade menor".

E acrescentou: "O cargo é um perigo, o louvor é um precipício e a humildade de ser súdito é uma vantagem espiritual. Então, por que vamos preferir os perigos às vantagens, se nos foi dado tempo para tirar proveito?"

CAPITULO 107
Como e porque quer que os frades sejam submissos aos clérigos

146. Embora quisesse que seus filhos estivessem em paz com todos os homens e se apresentassem a todos como pequeninos, ensinou com palavras e comprovou com exemplos que deviam ter a maior humildade diante dos clérigos.

Dizia: "Fomos mandados para ajudar os clérigos na salvação das almas, suprindo a sua deficiência. Cada um vai receber sua recompensa de acordo com o trabalho, não com a autoridade. Sabei, irmãos, que o proveito das almas agrada muito a Deus, e que é mais fácil conseguí-lo pela paz que pela discórdia com os clérigos.

Se eles estiverem servindo de empecilho para a salvação do povo, cabe a Deus o direito de punir e ele há de retribuir-lhes com o tempo. Portanto, sede submissos aos prelados para que, por vossa causa, não surja problema algum. Se fordes filhos da paz, lucrareis para o Senhor o clero e o povo, coisa que o Senhor acha muito mais vantajoso que conquistar o povo escandalizando o clero. Encobri as suas fraquezas, supri as suas muitas falhas e, quando tiverdes feito isso, sede mais humildes ainda".

CAPITULO 108
Respeito que demonstra para com o bispo de Ímola

147. Certa vez, chegando São Francisco a Ímola, cidade da Romanha, apresentou-se ao bispo do lugar, para pedir licença de pregar. O bispo disse: "Irmão, eu mesmo prego a meu povo, e é o quanto basta". São Francisco curvou a cabeça humildemente e saiu.

Mas voltou uma hora depois. O bispo perguntou: "Que desejas, irmão? Que queres, outra vez?" Disse o bem-aventurado Francisco: "Senhor, se um pai põe um filho para fora por uma porta, ele tem que entrar pela outra".

Vencido por essa humildade, o bispo o abraçou com rosto alegre e disse: "Tu e todos os teus frades podeis pregar de agora em diante em minha diocese com uma licença geral de minha parte. Isso foi conseguido pela tua santa humildade".

CAPITULO 109
Humildade e caridade mútuas entre ele e São Domingos

148. Encontraram-se em Roma com o bispo de Óstia, que depois foi Papa, os preclaros luminares do mundo: São Domingos e São Francisco.

Depois de terem conversado coisas muito agradáveis a respeito de Deus, disse-lhes o bispo: "Na Igreja primitiva os pastores da Igreja eram homens pobres e transbordavam de caridade, não de cupidez. Por que não fazemos bispos e prelados os vossos frades que se destacam entre os outros pela doutrina e pelo exemplo?"

Surgiu então entre os dois santos uma porfia, não para ver quem respondia primeiro, mas porque um cedia ao outro a honra e assim queria obrigá-lo a falar antes. Na realidade, superavam-se numa competição de mútua veneração.

Por fim venceu a humildade; em Francisco, porque não tomou a dianteira, e em Domingos porque obedeceu humildemente e respondeu por primeiro.

Disse pois Domingos ao bispo: "Senhor, meus frades já foram promovidos a um bom grau, se o souberem reconhecer, e, se depender de mim, não permitirei que assumam outro tipo de dignidade".

Depois que ele fez esse breve discurso, São Francisco se inclinou diante do bispo e disse: "Senhor, meus frades têm o nome de menores para não desejarem ser maiores. Sua vocação é ficar embaixo, seguindo os passos de Cristo, e dessa maneira, na glorificação dos santos, serão mais exaltados que os outros. Se quereis que produzam fruto na Igreja de Deus, conservai-os no estado de sua vocação. Reduzi-os aos graus inferiores mesmo contrariando suas vontades. Pai, eu vos suplico: para que não sejam tanto mais soberbos quanto mais pobres, nem insolentes com os outros, de maneira alguma permitais que sejam promovidos a prelaturas".

Foi essa a resposta dos santos.

149. Que dizeis disso, filhos dos santos? A presunção e a inveja estão demonstrando que sois degenerados, e a ambição de bens prova que, além disso, sois também bastardos. Vós vos dilacerais e vos devorais mutuamente. Vossas lutas e rivalidades não provêm senão da concupiscência. Há uma batalha contra as trevas, um duro combate contra os exércitos dos demônios, e vós virais a espada uns contra os outros.

Cheios de sabedoria, vossos pais tinham o rosto voltado para o propiciatório e olhavam um para o outro com familiaridade. Os filhos, cheios de inveja, não suportam olhar uns para os outros. Que pode fazer um corpo que tem o coração dividido?

Realmente, o ensino da piedade poderia dar muito mais frutos pelo mundo inteiro se os ministros da palavra de Deus fossem mais fortemente unidos pelo vínculo da caridade. O que falamos e ensinamos torna-se tanto mais suspeito quanto mais se percebe em nós, por sinais evidentes, algum fermento de ódio. Sei que o que estou falando não se aplica a alguns homens bons que existem aqui e ali, mas acho que os maus devem ser extirpados, para não prejudicar os santos.

Que dizer, enfim, dos desejam postos elevados? Que seus pais chegaram ao reino pelo caminho da humildade, não pelo caminho das alturas. Os filhos estão perdidos nas curvas da ambição e não vão encontrar o caminho da cidade em que eles moram. Que podemos esperar? Se não seguimos o seu caminho também não conseguiremos a sua glória.

Longe de nós, Senhor! Fazei-nos discípulos humildes dos mestres humildes. Fazei com que - consangüíneos de espírito - nos queiramos bem e possamos ver os filhos de vossos filhos e a paz sobre Israel.

CAPITULO 110
Como se recomendam um ao outro

150. Quando os servos de Deus deram as respostas que referimos, o bispo de Óstia ficou muito edificado com suas palavras e deu imensas graças a Deus.

Ao saírem, o bem-aventurado Domingos pediu a São Francisco que se dignasse dar-lhe a corda que tinha na cintura. São Francisco custou para fazer isso, negando-se com tanta humildade quanta era a amizade com que o outro fazia o pedido. Mas o pedido devoto acabou vencendo, e ele cingiu a corda com muito respeito embaixo de sua túnica. No fim, deram-se as mãos e fizeram as mais amigáveis recomendações mútuas. Disse um santo ao outro: "Frei Francisco, gostaria que nossas Ordens fossem uma só e vivessem de maneira semelhante na Igreja".

Quando se separaram, São Domingos disse a muitas pessoas que estavam presentes: "Na verdade eu vos digo, os outros religiosos deveriam seguir esse santo homem que é Francisco, pois tão grande é a perfeição de sua santidade".

OBEDIENCIA

CAPITULO 111
Para praticar a verdadeira obediência, quer ter sempre um guardião

151. Como esperto negociante, querendo lucrar de todas as maneiras e aproveitar em merecimentos todo o tempo presente, decidiu viver dentro dos freios da obediência e submeter-se às ordens de outro. Por isso, não só resignou a seu cargo de superior geral, mas, para melhor proveito da obediência, pediu um guardião particular a quem tivesse que respeitar especialmente como superior.

Pois disse a Frei Pedro Cattani, o primeiro a quem prometeu obediência: "Eu te peço, pelo amor de Deus, que encarregues um de meus companheiros de fazer as tuas vezes junto de mim, para que eu lhe obedeça como se fosses tu. Eu sei qual é o proveito da obediência e que não perde nem um pouco de seu tempo quem se submete às ordens de outro".

Conseguiu o que pedia e permaneceu submisso até a morte, obedecendo sempre com reverência ao próprio guardião.

Disse, uma vez, a seus companheiros: "Entre as outras coisas que a bondade de Deus se dignou conceder-me está a graça de ser capaz de obedecer a um noviço de uma hora, se me fosse dado como guardião, tanto quanto ao mais antigo e mais discreto dos frades. O súdito não deve considerar seu superior simplesmente como um homem, mas como aquele a quem se submeteu por amor. Quanto mais desprezível for o que manda, maior deve ser a humildade de quem obedece".

CAPITULO 112
Descrição do obediente. As três obediências

152. Noutra ocasião, sentado com seus companheiros, São Francisco suspirou: "É difícil encontrar no mundo inteiro um religioso que obedeça com perfeição a seu superior". Atingidos, os companheiros disseram: "Diz-nos, pai, qual é a maior e mais perfeita obediência?"

Fazendo uma comparação com um corpo morto, ele descreveu o verdadeiro obediente: "Pegai um cadáver. Ponde-o onde quiserdes. Vereis que não se incomodará de ser movimentado, não se queixará do lugar, nem reclamará por o terem largado. Se for colocado numa cátedra, vai olhar para baixo, não para cima. Se for vestido de púrpura, vai ficar duas vezes mais pálido. Esse é o verdadeiro obediente: não fica pensando em por que foi mudado, não se importa com o lugar onde o puseram, não fica pedindo para ser transferido. Se lhe dão um cargo, mantém a humildade costumeira. Quanto mais honrado, mais se acha indigno".

Uma outra vez, falando do mesmo assunto, disse que a licença dada a pedido é uma verdadeira licença, mas a que for oferecida sem ter sido pedida é uma obediência sagrada. Que uma e outra eram boas, mas a segunda, mais garantida. Mas achava que a melhor de todas, em que nem havia nada de "carne e sangue", era a obediência de ir "entre os infiéis por divina inspiração", tanto para o proveito dos outros como pelo desejo do martírio. Achava que pedir essa obediência era coisa muito aceita por Deus.

CAPITULO 113
Não se deve mandar por obediência em coisas leves

153. Achava que raramente se devia mandar por obediência e que não se devia ir atirando logo no começo uma flecha que devia ser a última. "Não se deve pôr logo a mão na espada", dizia. Mas também achava que não temia a Deus nem respeitava os homens aquele que não se apressasse a cumprir um preceito da obediência.

Nada mais verdadeiro. De fato, a autoridade na mão de um superior temerário é como uma espada na mão de um louco. E não há nada pior do que um religioso que despreza a obediência.

CAPITULO 114
Joga no fogo o capuz de um frade, porque tinha vindo sem obediência,
embora trazido pela devoção

154. Uma vez, arrancou o capuz de um frade que tinha vindo sozinho sem obediência e mandou jogá-lo numa fogueira. Com medo do rosto um tanto alterado do santo, ninguém foi pegar o capuz, mas ele mesmo mandou tirá-lo das chamas e não estava nem um pouco estragado.

Isso foi devido aos méritos do santo mas, talvez, também um pouco ao merecimento do frade. Porque tinha sido levado pela devoção de ver o pai santíssimo, embora sem a discrição, que é a guia de todas as virtudes.

BONS E MAUS EXEMPLOS

CAPITULO 115
Exemplo de um bom frade. Costumes dos frades antigos

155. Afirmava que os frades menores tinham sido enviados pelo Senhor nestes últimos tempos, para darem exemplos de luz aos pecadores envolvidos nas trevas. Dizia que se sentia penetrado por suavíssimos perfumes e sentia a força de um precioso ungüento quando ouvia contar os grandes feitos dos santos frades que moravam longe pelo mundo afora.

Uma vez um certo Frei Bárbaro injuriou um outro frade diante de um nobre da ilha de Chipre. Quando viu que o outro tinha ficado magoado com suas palavras, pegou esterco de burro e, para vingar-se de si mesmo, colocou-o na boca dizendo: "Que mastigue esterco essa língua que soltou o veneno da ira em cima do meu irmão".

Vendo isso, o cavaleiro ficou atônito e foi embora muito edificado. Desde então, colocou-se à disposição dos frades, com todos os seus haveres.

Esse era o procedimento inviolável de todos os frades: se alguma vez algum deles perturbava o outro com suas palavras, logo se lançava no chão e beijava os pés do ofendido mesmo contra sua vontade.

O santo ficava exultante quando sabia que seus filhos eram capazes de dar exemplos de santidade, cobrindo com suas melhores bênçãos os que, por palavras ou ações, levavam os pecadores para o amor de Cristo. Transbordante de zelo das almas, queria que seus filhos fossem nesse ponto como ele.

CAPITULO 116
Maldição e sofrimento do santo por causa de alguns de má conduta

156. Da mesma maneira, quem comprometia a Ordem com más ações e maus exemplos incorria na sentença pesada de sua maldição.

Contaram-lhe, um dia, que o bispo de Fondi tinha dito a dois frades que se haviam apresentado com a barba mais comprida a pretexto de melhor desprezarem a si mesmos: "Tomem cuidado para que a beleza da Ordem não se deturpe com novidades desse tipo".

O santo se levantou na mesma hora, ergueu as mãos para o céu e, banhado em lágrimas, prorrompeu nesta oração, ou até melhor, nesta imprecação: "Senhor Jesus Cristo, que escolhestes doze apóstolos. Um deles caiu, mas os outros ficaram unidos a vós e pregaram o Evangelho cheios do mesmo espírito. Senhor, lembrando- vos nesta última hora da antiga misericórdia, plantastes uma Ordem de irmãos, para apoiar a fé e cumprir através deles o mistério de vosso Evangelho. Quem vai poder satisfazer por eles diante de vós, pois não só deixam de dar a todos os exemplos luminosos daquilo para que foram enviados, mas estão até apresentando obras das trevas? Que sejam amaldiçoados por vós, santíssimo Senhor, por toda a corte celestial e também por este vosso pobrezinho, os que por seu mau exemplo confundem e destroem o que por santos irmãos desta Ordem edificastes e de edificar não cessais!"

Onde estão os que se proclamam felizes com sua bênção e se gabam de ter gozado à vontade de sua familiaridade? Que Deus não permita, mas se ficar provado que praticaram as obras das trevas para perigo dos outros, e não se tiverem arrependido, ai deles! ai de sua condenação eterna!

157. Dizia que "os bons frades ficam confusos com as obras dos frades maus e, mesmo não tendo pecado, são postos em julgamento pelo exemplo dos perversos. Por isso me estão atravessando com uma cruel espada, que enterram o dia inteiro em meu coração". Por essa razão, afastava-se o mais que podia da companhia dos frades, para não ter sua dor renovada por ouvir alguma coisa má contada a respeito de algum deles.

E dizia: "Tempo virá em que esta Ordem, amada por Deus, vai ter má fama por causa dos maus exemplos, e os irmãos terão vergonha de sair em público. Mas os que entrarem na Ordem nesse tempo serão trazidos unicamente pela ação do Espírito Santo, sem contaminação da carne e do sangue, e serão verdadeiramente abençoados por Deus. Não realizarão ações de grande mérito, porque haverá um resfriamento da caridade, que é o que dá fervor aos santos, mas terão tentações imensas, e os que forem aprovados nesse tempo serão melhores que seus predecessores. Ai daqueles, porém, que ficam contentes só com a aparência de um comportamento religioso, mas vão se corrompendo na ociosidade e não resistem constantemente às tentações que são permitidas para a provação dos escolhidos: Porque só os que tiverem sido provados vão receber a coroa da vida. Por enquanto, estão sendo exercitados pela maldade dos réprobos".

CAPITULO 117
Revelação divina sobre a situação da Ordem, que nunca há de acabar

158. Mas era consolado abundamente pelas visitas de Deus, que lhe davam a segurança de que as bases de sua Ordem haveriam de permanecer firmes. Recebeu até a promessa de que novos escolhidos haveriam de substituir sempre, garantidamente, os que fossem indo embora.

Numa ocasião em que estava sofrendo por causa dos maus exemplos e se apresentou perturbado na oração, interpelou-o o Senhor: "Por que te perturbas, homenzinho? Será que eu te coloquei como pastor de minha Ordem para desconheceres que o patrono principal sou eu? Foi para isso que eu te escolhi, homem simples, para que os que desejarem sigam as obras que eu fizer em ti e que devem ser imitadas por todos os demais. Eu chamei, guardarei e apascentarei. Para reparar a queda de uns, colocarei outros: se não existirem, eu mesmo os farei nascer. Por isso, não te perturbes, mas cuida de tua salvação porque, mesmo que a Ordem ficasse reduzida a três frades, permaneceria sempre firme pela minha proteção".

Depois disso, ele costumava dizer que a santidade de um só superava a multidão dos imperfeitos, como um só raio de luz basta para dissipar densas trevas.

CONTRA A OCIOSIDADE E OS OCIOSOS

CAPITULO 118
Deus lhe revela quando é seu servo e quando não

159. Desde que este homem começou a se ligar a Deus, desprezando as coisas que passam, não permitiu mais que fosse desperdiçada a menor fração de seu tempo. De fato, apesar de já ter acumulado abundantes méritos nos tesouros do Senhor, estava sempre renovado, cada vez mais disposto para os exercícios espirituais. Achava que já era uma ofensa grave deixar de fazer alguma coisa boa, e que não avançar continuamente era retroceder.

Numa ocasião, em Sena, estando em sua cela, chamou à noite os companheiros que estavam dormindo e lhes disse: "Irmãos, roguei ao Senhor que se dignasse indicar-me quando sou seu servidor e quando não sou. Porque eu não quero ser senão seu servidor. Em sua bondade, Deus me respondeu: 'Podes ter a certeza de que és meu servo quando pensas, falas e executas coisas santas'. Foi por isso que vos chamei, irmãos. Porque quero me envergonhar diante de vós se alguma vez não fizer alguma dessas três coisas".

CAPITULO 119
Penitência contra as palavras ociosas na Porciúncula

160. Outra vez, em Santa Maria da Porciúncula, considerando o homem de Deus que o lucro da oração se perde pelas conversas inúteis depois da oração, indicou o seguinte remédio para se evitar o defeito das palavras ociosas: "Todo frade que disser uma palavra ociosa ou inútil seja obrigado a confessar imediatamente sua culpa e a dizer um pai-nosso por cada uma delas. E quero que diga um pai-nosso por sua própria alma, se for ele mesmo que por primeiro se acusar da própria falta; mas, se for primeiro avisado por outro, aplique-o pela alma dele".

CAPITULO 120
Operosidade do santo e desgosto pelos preguiçosos

161. Dizia que os preguiçosos, que não se ocupam habitualmente com nenhum trabalho, deviam ser logo vomitados da boca de Deus. Nenhum ocioso podia parecer diante dele sem ser asperamente corrigido. Ele mesmo era excelente exemplo de perfeição, estava sempre ocupado e trabalhava com as próprias mãos, sem deixar que se perdesse nada do valioso dom do tempo.

Disse uma vez: "Quero que meus frades trabalhem e estejam sempre ocupados, e os que não tiverem nenhum ofício, que o aprendam". E deu o motivo: "Para sermos menos pesados para as pessoas e para que não fiquem vagando na ociosidade o coração e a língua". Mas não deixava o pagamento ou gratificação pelo trabalho com quem os recebia: tinham que os entregar ao guardião ou à comunidade.

CAPITULO 121
Queixa feita ao santo dos preguiçosos e dos gulosos

162. Seja-me permitido, pai santo, elevar hoje ao céu a minha lamentação por aqueles que se dizem teus. São muitos os que detestam o exercício das virtudes e preferem descansar em vez de trabalhar, provando que não são filhos de Francisco mas de Lúcifer. Temos mais doentes que militantes quando, nascidos para o trabalho, deveriam ver sua vida como um combate. Não gostam de ser úteis pela ação, e pela contemplação não o conseguem. Perturbam a todos com sua singularidade, trabalham mais com a boca que com as mãos, odeiam quem os repreende e não se deixam tocar nem com a ponta dos dedos.

O que mais me escandaliza são aqueles que, como dizia São Francisco, em sua casa só conseguiam viver suando e agora, sem trabalhar, alimentam-se com o suor dos pobres. Mas não são tolos! Não fazem nada mas parecem sempre ocupados. Sabem muito bem as horas das refeições e, quando a fome aperta muito cedo, dizem que o sol é que está atrasado.

Será que posso acreditar, pai bondoso, que as monstruosidades dessas pessoas vão ser dignas de tua glória? Não merecem nem o hábito! Sempre ensinaste que, neste tempo passageiro e fugaz, precisamos nos enriquecer de méritos, para não ter que mendigar no futuro. Mas esses frades, destinados ao exílio, não estão aproveitando nem a pátria. E a doença grassa entre os súditos porque os superiores se omitem, como se fosse possível virem a escapar do suplício desses frades cujos vícios eles sustentam.

OS MINISTROS DA PALAVRA DE DEUS

CAPITULO 122
Como deve ser um pregador

163. Queria que os ministros da palavra de Deus se entregassem totalmente aos estudos espirituais, livres de qualquer outra ocupação. Dizia que tinham sido escolhidos por um grande rei para transmitir aos povos as palavras recebidas de sua boca.

E afirmava: "O pregador tem que haurir primeiro na oração, feita em segredo, aquilo que depois vai derramar em palavras sagradas. Tem que se afervorar primeiro por dentro, para não proferir palavras frias". Afirmava que esse ofício devia ser respeitado e que todos deviam venerar os que o exercem. Dizia: "Eles são a vida do corpo, eles é que combatem os demônios, eles são a luz do mundo".

Achava que os doutores em sagrada teologia mereciam honras ainda maiores. Certa ocasião fez escrever o seguinte, como norma geral: "Devemos honrar e venerar todos os teólogos e os que nos administram as palavras de Deus como aqueles que nos administram espírito e vida". Mandou escrever um dia no cabeçalho de uma carta que ele enviava a Santo Antônio: "A Frei Antônio, meu bispo".

CAPITULO 123
Contra os pregadores ávidos de glória.
Explicação de um texto profético

164. Dizia que devíamos chorar pelos pregadores que muitas vezes vendem o seu ministério por um tostão do vanglória. Curava-lhes às vezes os tumores com este remédio: "Por que vos gloriais dos homens que convertestes, se foram convertidos pelas orações de meus irmãos simples?"

Assim interpretava ele o versículo: "Até a estéril deu à luz muitos filhos". "A estéril é o meu irmão pobrezinho, que não recebeu na Igreja o encargo de gerar filhos. Esse vai ter muitos filhos no dia do juízo, porque então o juiz vai computar na sua glória os que agora converte com suas orações particulares. Mas 'a que tem muitos filhos vai desfalecer' porque o pregador que se rejubila como se tivesse gerado a muitos por sua virtude vai saber então que nada teve de seu nessas pessoas".

Não gostava muito dos que falavam bonito e não de coração, desejando mais a glória de oradores que a de pregadores. E dizia que faziam uma má divisão os que davam tudo para a pregação e nada para a devoção. Louvava ao pregador que, a seu tempo, apreciava e saboreava ele mesmo a palavra de Deus.

CONTEMPLAÇÃO DO CRIADOR NAS CRIATURAS

CAPITULO 124
Amor do santo para com as criaturas sensíveis e insensíveis

165. Embora desejasse sair logo deste mundo como se fosse um desterro onde devia peregrinar, este feliz viajante sabia aproveitar o que há no mundo, e bastante. Usava o mundo como um campo de batalha com os príncipes das trevas, mas também como um espelho claríssimo da bondade de Deus.

Louvava o Criador em todas as suas obras e sabia atribuir os atos a seu Autor.

Exultava em todas as obras das mãos do Senhor e, através dos espetáculos que lhe davam prazer, sabia encontrar aquele que é razão e causa de toda vida. Nas coisas belas reconhecia aquele que é o mais belo, e ouvia todas as coisas boas clamarem: "Quem nos fez é ótimo". Seguia sempre o amado pelos vestígios que deixou nas coisas e fazia de tudo uma escada para chegar ao seu trono.

Abraçava todas as criaturas com afeto e devoção jamais vistos, e falava com elas sobre o Senhor, convidando-as a louvá-lo. Poupava os candeeiros, lâmpadas e velas, porque não queria apagar com sua mão o fulgor que era um sinal da luz eterna. Andava com respeito por cima das pedras, pensando naquele que foi chamado de Pedra. Quando usavam o versículo: "Vós me exaltastes sobre a pedra", para dizer alguma coisa mais reverente, exclamava: "Vós me exaltastes aos pés da Pedra".

Aos frades que cortavam lenha proibia arrancar a árvore inteira, para que tivesse esperança de brotar outra vez. Mandou que o hortelão deixasse sem cavar o terreno ao redor da horta, para que a seu tempo o verde das ervas e a beleza das flores pudessem apregoar o formoso Pai de todas as coisas. Mandou reservar um canteiro na horta para as ervas aromáticas e para as flores, para lembrarem a suavidade eterna aos que as olhassem.

Recolhia do caminho os vermezinhos, para que não fossem pisados, e mandava dar mel e o melhor vinho às abelhas, para não morrerem de fome no frio do inverno. Chamava de irmãos todos os animais, embora tivesse preferência pelos mais mansos.

Quem poderia contar tudo? Toda aquela Fonte de bondade, que vai ser tudo para todos, já iluminava tudo em tudo para este santo.

CAPITULO 125
As criaturas lhe retribuem o amor. O fogo que não o queima

166. Todas as criaturas procuravam retribuir o amor do santo e recompensá-lo à altura, com gratidão. Sorriam quando as acariciava, atendiam quando chamava e obedeciam quando mandava. Vamos contar alguns casos.

Quando esteve doente dos olhos e teve que permitir que o tratassem, chamaram um médico. Ele veio com um ferro de cauterizar e mandou colocá-lo no fogo até ficar em brasa. O bem-aventurado pai, animando o corpo já abalado pelo medo, assim falou com o fogo: "Meu irmão fogo, o Altíssimo te fez forte, bonito e útil, para emulares a beleza das outras coisas. Sê amigo meu nesta hora, sê delicado, porque eu sempre te amei no Senhor. Rogo ao grande Senhor que te criou, para que abrande um pouco o teu calor, para que queime com suavidade e eu possa agüentar".

Depois da oração, fez o sinal da cruz e ficou esperando intrepidamente. Quando o médico segurou o ferro em brasa, os frades fugiram por respeito, mas o santo se apresentou ao ferro alegre e sorridente.

O instrumento penetrou crepitando na carne delicada e a cauterização se estendeu desde a orelha até o supercílio. As palavras do santo testemunham melhor a dor que ele mesmo sentiu. Quando os frades, que tinham fugido, voltaram, ele disse sorrindo: "Covardes e fracos de coração, por que fugistes? Na verdade eu vos digo que não senti nem o ardor do fogo nem dor alguma em minha carne". E para o médico: "Se ainda não queimou bem, aplica outra vez!"

Percebendo a diferença daquele caso, o médico exaltou o milagre: "Eu vos digo, irmãos, que hoje vi uma coisa admirável". Acho que tinha recuperado a inocência primitiva esse homem que amansava, quando queria, o que por si não é manso.

CAPITULO 126
Um passarinho pousa em sua mão

167. São Francisco ia atravessando de barca o lago de Rieti, a caminho do eremitério de Gréccio. Um pescador ofereceu-lhe um passarinho aquático, para que se alegrasse no Senhor.

O bem-aventurado pai recebeu-o com alegria, abriu as mãos e o convidou delicadamente a ir embora. O passarinho não quis ir, mas se aninhou em suas mãos. O santo levantou os olhos e se pôs a orar. Depois de um bom tempo, como se estivesse voltando a si de um outro mundo, ordenou com bondade à ave que voltasse sem medo para sua primitiva liberdade.

Recebendo a licença, e a sua bênção, o passarinho demonstrou sua alegria com um movimento do corpo e voou.

CAPITULO 127
O falcão

168. Uma vez, São Francisco tinha se retirado para um eremitério, como era seu costume, para escapar da vista e da companhia dos homens. Um falcão que por lá tinha o seu ninho fez com ele um grande pacto de amizade. Sempre cantava para acordar o santo e indicar a hora em que costumava levantar-se para os santos louvores. O santo de Deus gostava muito disso, porque toda essa atenção que o pássaro demonstrava para com ele impedia todo atrazo por preguiça.

Quando o santo estava um pouco mais doente que de costume, o falcão o poupava e não vinha dar os sinais das horas de vigília. Como se fosse instruído por Deus, tocava ao amanhecer a campainha de sua voz. Nem é para admirar que as outras criaturas venerassem tanto aquele que mais amou seu Criador.

CAPITULO 128
As abelhas

169. Construíram certa vez em uma montanha uma cabana em que o servo de Deus fez quarenta dias de rígida penitência. Quando terminou o tempo e ele saiu, a cela ficou abandonada e desocupada. Lá ficou largado o pequeno vaso de barro em que o santo tomava água.

Quando algumas pessoas foram àquele lugar para reverenciar o santo, encontraram o vaso cheio de abelhas. Nele tinham construído seus admiráveis favos, simbolizando a doçura da contemplação que o santo de Deus tinha bebido nesse lugar.

CAPITULO 129
O faisão

170. Um nobre do condado de Sena mandou levar um faisão a São Francisco, que estava doente. Este o recebeu alegremente, não pela vontade de comê-lo mas pela alegria que sempre o levava nessas ocasiões ao amor do Criador, e disse ao faisão: "Louvado seja o nosso Criador, irmão faisão!" Depois voltou-se para os frades: "Vamos ver, irmãos, se o irmão faisão prefere morar conosco ou ir para os lugares de costume, que são mais convenientes para ele".

Por ordem do santo, um frade foi levá-lo bem longe, deixando-o em uma vinha. Ele voltou imediatamente para a cela do santo. Este mandou que o levassem mais longe ainda. O pássaro, com a maior teimosia, voltou para a porta da cela e, mesmo tendo que fazer força por entre os hábitos dos frades que estavam na porta, entrou. Então o santo mandou que cuidassem de alimentá-lo, abraçando-o e conversando carinhosamente com ele.

Um médico que era devoto do santo de Deus, quando viu isso, pediu o faisão aos frades, não para come-lo, mas desejando criá-lo por reverência ao santo. Levou-o para casa, mas o faisão, como que ofendido por ter sido afastado do santo, não quis saber de comer enquanto não gozou de sua presença. Maravilhado, o médico levou o faisão de volta ao santo e contou tudo que tinha acontecido. Logo que foi posto no chão, ele olhou para o pai, esqueceu a tristeza e começou a comer com satisfação.

CAPITULO 130
A cigarra

171. Havia na Porciúncula, ao lado da cela do santo, uma figueira onde uma cigarra costumava cantar com suavidade. Uma vez, o bem-aventurado pai lhe estendeu a mão e a chamou bondosamente dizendo: "Cigarra, minha irmã, vem cá!" Como se tivesse razão, ela foi logo para sua mão. E ele: "Canta, minha irmã cigarra, louva com júbilo o Senhor Criador!"

Ela obedeceu depressa, começou a cantar e não parou enquanto o santo, juntando seus louvores ao cântico, não a mandou de volta para o seu lugar. Lá ficou por oito dias, como se estivesse presa. Quando o santo descia de sua cela, tocava-a com as mãos e mandava que cantasse. Ela estava sempre pronta para obedecer-lhe.

Disse o santo a seus companheiros: "Vamos despedir nossa irmã cigarra, que já nos alegrou bastante aqui com o seu louvor, para que isso não seja causa de vanglória para nós". Com sua permissão, ela foi embora, e não apareceu mais.

Os frades ficavam admiradíssimos, vendo tudo isso.

A CARIDADE

CAPITULO 131
Caridade de São Francisco.
Apresenta-se como um modelo de perfeição na salvação das almas

172. Já que a força do amor tinha feito dele um irmão das outras criaturas, não nos admiraremos de que a caridade de Cristo tenha feito dele um irmão ainda maior daqueles que foram distinguidos pela semelhança com o Criador.

Dizia que não havia coisa mais importante que a salvação das almas e o provava com freqüência ainda maior lembrando que o Unigênito de Deus dignou-se ser crucificado pelas almas. Daí seu esforço na oração, sua pregação constante e seu excesso nos exemplos que dava.

Achava que não seria amigo de Cristo se não amasse as almas que Cristo amava. Essa era a principal causa de sua veneração pelos mestres de teologia, que eram auxiliares de Cristo e exerciam com ele o mesmo ofício.

Mas amava de maneira especial, profunda, de todo o coração, os próprios irmãos, por conviverem da mesma fé e partilharem da herança eterna.

173. Todas as vezes que lhe chamavam a atenção pelo rigor da vida que levava, respondia que tinha sido dado à Ordem como modelo, para ser como uma águia, animando seus filhotes a voar. Por isso, embora sua carne inocente já se submetesse espontaneamente ao espírito, sem precisar de nenhum castigo por causa de ofensas, ele a cumulava de sacrifícios para dar exemplo, mantendo-se no caminho duro só para animar os outros.

E com razão, porque costumamos olhar mais para as ações que para as palavras dos superiores. E era com as obras, pai, que discursavas mais suavemente, persuadias com mais facilidade e provavas com certeza maior.

Se os superiores falarem as línguas dos homens e dos anjos mas não derem exemplo de caridade, para mim valem pouco, e para si mesmos não valem nada. Mas, onde o que repreende não é temido e o capricho substituiu a razão, será que os selos da autoridade vão ser suficientes para salvar?

De qualquer jeito, devemos fazer o que mandam, para que a água chegue ao canteiro ainda que seja por um canal ressecado. Enquanto isso, vamos colhendo rosas no meio dos espinhos, de maneira que os maiores sirvam os menores.

CAPITULO 132
Solicitude com os súditos

174. Quem é que já teve a solicitude de São Francisco pelos súditos? Levantava sempre as mãos ao céu pelos verdadeiros israelitas e, esquecendo de si mesmo, pensava primeiro na salvação dos irmãos. Lançava-se aos pés da majestade de Deus, oferecia um sacrifício espiritual pelos seus filhos, forçava Deus a beneficiá- los. Tinha todo amor pelo pequeno rebanho que arrastara após si, cuidando que, depois de ter deixado o mundo, não viessem a perder também o céu.

Achava que não seria admitido à glória do céu se não fizesse gloriosos em sua companhia aqueles que lhe tinham sido confiados, pois os estava dando à luz do espírito muito mais trabalhosamente do que as suas mães os tinham posto no mundo.

CAPITULO 133
Compaixão para com os enfermos

175. Tinha muita compaixão para com os doentes e muita solicitude pelas suas necessidades. Quando seculares piedosos lhe mandavam fortificantes, dava-os aos outros doentes, embora precisasse mais que todos. Assumia os sofrimentos de todos os que padeciam, dizendo-lhes palavras de compaixão quando não podia ajudar de outra maneira.

Chegava até a comer nos dias de jejum, para que os doentes não ficassem com vergonha de comer. E não se envergonhava de pedir carne publicamente, pela cidade, para dar a um irmão doente.

Mas exortava os doentes a sofrerem as privações com paciência e a não se escandalizarem quando não eram satisfeitos em tudo. Por isso fez escrever estas palavras numa de suas regras: "Rogo a todos os meus irmãos doentes que em suas enfermidades não fiquem irados ou perturbados contra Deus ou contra os irmãos. Não peçam remédios com muita insistência e não tenham muito desejo de livrar a carne que logo vai morrer e que é inimiga da alma. Saibam ser agradecidos por tudo, desejando ser aquilo que Deus também deseja deles. Porque Deus instrui com os sofrimentos dos castigos e das doenças aqueles que predestinou para a vida eterna, como ele mesmo disse: 'Eu corrijo e castigo aqueles a quem amo'".

176. Uma vez levou para a vinha um doente que sabia estar com vontade de chupar uvas. Sentando-se embaixo da parreira, começou ele mesmo a comer, para dar coragem ao outro.

CAPITULO 134
Compaixão para com os doentes do espírito.
Os que fazem o contrário

177. Mas tinha maior clemência e suportava com mais paciência os doentes que sabia serem como meninos atirados dum lado para outro, agitados pelas tentações e enfraquecidos no espírito. Por isso evitava as correções ásperas e, onde não via perigo, poupava a vara para poupar a alma. Dizia que era próprio do superior, que é um pai e não um tirano, evitar as ocasiões de erros e não permitir que viesse a cair aquele que, uma vez no chão, teria dificuldade para se levantar.

Como decaímos em nosso tempo! Não só deixamos de levantar ou de segurar os que estão fracos mas, às vezes, até os empurramos para caírem. Não nos importamos de tirar do pastor supremo uma ovelhinha pela qual clamou fortemente entre lágrimas na cruz. Tu eras diferente, pai santo, que preferias corrigir e não perder os que erravam.

Mas sabemos que, em alguns, as doenças da vontade própria estão profundamente arraigadas e precisam de fogo e não de pomadas. É claro que para muitos é mais saudável quebrar com uma verga de ferro que acariciar com as mãos. Mas tudo tem seu tempo: o óleo e o vinho, a vara e o cajado, o zelo e a piedade, a queimadura e a unção, o cárcere e o colo. O Pai das misericórdias e o Deus das vinganças quer tudo isso, mas deseja mais a misericórdia que o sacrifício.

CAPITULO 135
Os frades espanhóis

178. Às vezes, quando o bom odor de seus filhos chegava até ele, este homem santíssimo sentia-se maravilhosamente arrebatado em Deus e se rejubilava em espírito.

Um clérigo espanhol, devotado a Deus, teve uma vez a alegria de fazer uma visita e de conversar com São Francisco. Contou uma porção de coisas sobre os frades que estavam na Espanha e, entre outras, alegrou-o com esta narração:

"Em nossa terra, os teus frades moram em um eremitério pobrezinho e organizaram a vida de maneira que metade deles cuida dos trabalhos domésticos e metade se entrega à contemplação. Cada semana os que estavam na atividade passam para a contemplação, e os contemplativos substituem o recolhimento pelos trabalhos".

"Certo dia, posta a mesa e dado o sinal para chamar os ausentes, compareceram todos menos um, que era dos contemplativos. Depois de esperar um pouquinho, foram à sua cela chamá-lo para comer, apesar de estar sendo servido pelo Senhor numa mesa muito mais rica".

"Encontraram-no prostrado com o rosto em terra, estendido em forma de cruz, sem demonstrar movimento nenhum, nem respiração. Duas velas ardiam a seus pés e junto da cabeça, iluminando admiravelmente a cela".

"Deixaram-no em paz para não perturbar sua unção, 'para não acordar a esposa enquanto ela não quisesse'. Os frades ficaram espiando pelos buracos da cela, 'ficando atrás da parede e olhando pela fechadura'. Enfim, enquanto 'os amigos auscultavam aquela que morava nos jardins', a luz desapareceu de repente e o frade voltou a si. Levantou-se depressa, foi à mesa e deu sua culpa por causa do atraso".

"Isso aconteceu em nossa terra", disse o espanhol.

São Francisco não se agüentava de alegria, inebriado com o perfume de seus filhos. Levantou-se imediatamente para louvar a Deus e, como se sua única glória fosse essa de ouvir coisas boas sobre os frades, falou do fundo de seu coração: "Dou-vos graças, Senhor, que sois o santificador e o guia dos pobres, que me alegrastes por esta notícia a respeito de meus irmãos! Eu vos peço que abençoeis com a maior bênção aqueles frades e que santifiqueis com um dom especial todos os que valorizam sua profissão pelos bons exemplos!"

CAPITULO 136
Contra os que vivem mal nos eremitérios.
Quer que tudo seja comum

179. Embora tenhamos visto até agora como a caridade do santo se alegrava com os sucessos de seus amados irmãos, sabemos que não deixou de corrigir com energia os que, nos eremitérios, não viviam de acordo.

Porque há muitos que transformam o lugar da contemplação em lugar de ociosidade, fazendo do modo de vida eremítico, inventado para aperfeiçoar as almas, uma sentina de seus maus desejos. A lei para esses anacoretas de nosso tempo é cada um viver como quer.

Isso não vale para todos: sabemos que há santos que vivem hoje nos eremitérios observando as leis da melhor forma possível. Sabemos também que os pais que nos precederam foram flores da solidão. Que não decaiam os eremitas de nosso tempo daquela primitiva beleza, cujo merecido louvor permanece para sempre!

180. Aconselhando todos a serem caridosos, São Francisco também mandava que demonstrassem afabilidade e um tratamento familiar: "Quero que meus frades mostrem que são filhos da mesma mãe. Que cada um dê com liberalidade ao outro o hábito, o cordão, qualquer coisa que ele pedir. Ponham em comum os livros e tudo que possam desejar, insistindo até com os outros a que tomem o que precisam".

E era sempre o primeiro a fazer tudo isso, para que também nessas coisas não viesse a dizer o que já não tivesse sido realizado nele mesmo por Cristo.

CAPITULO 137
Dá a túnica a dois frades franceses

181. Dois frades franceses, homens de grande santidade, encontraram-se com São Francisco. Tiveram uma alegria enorme, duplicada pelo fato de se terem esforçado para isso havia muito tempo. Depois de uma carinhosa acolhida e de uma agradável conversação, sua ardente devoção os levou a pedir a São Francisco que lhes desse a túnica. O santo tirou-a na mesma hora, ficando seminu, e lha entregou piedosamente. Recebeu em troca uma outra mais pobre de um deles, e a vestiu.

Estava disposto não só a dar coisas dessas mas até a si mesmo, e entregava com muita alegria tudo que lhe pedissem.

A DETRAÇÃO

CAPITULO 138
Punição para os detratores

182. Como o coração cheio de caridade detesta o que é detestável aos olhos de Deus, essa era a atitude de São Francisco. Execrava os detratores com horror, e dizia que tinham veneno na língua e envenenavam os outros. Por isso evitava encontrar-se com os maldizentes, pulgas que picam quando falam, e desviava os ouvidos para não manchá-los, como nós mesmos vimos.

Certa vez ouviu um frade denegrindo a fama de outro. Virou- se para Frei Pedro Cattani, seu vigário, e proferiu este terrível juízo: "A Ordem corre grande perigo, se não neutralizar os difamadores. Bem depressa o perfume suavíssimo de muitos vai começar a cheirar mal se não for fechada a boca fétida dessa gente. Levanta-te, levanta-te, faz uma inquisição severa e, se descobrires que o frade acusado é inocente, inflige um castigo tão duro no acusador que os outros nunca mais se esqueçam. Se tu mesmo não o puderes punir, entrega-o nas mãos do atleta florentino!" (Chamava de lutador Frei João de Florença, homem grande e muito forte). "Quero que tenhas o maior cuidado, tu e todos os ministros, para que essa peste não se alastre".

Disse diversas vezes que aquele que despojasse seu irmão da boa fama devia ser despojado de seu hábito e não poderia levantar os olhos para Deus enquanto não devolvesse o que tinha tirado. Foi por isso que os frades daquele tempo abominaram esse vício de maneira especial e estabeleceram firmemente que haveriam de evitar com todo cuidado qualquer coisa que diminuísse a honra dos outros ou que soasse a desprezo.

Ótima solução! Que é o detrator senão o fel dos homens, o fermento da maldade, a desonra do mundo? Que é o falador senão o escândalo da Ordem, o veneno do claustro, a quebra da unidade?

Infelizmente a superfície da terra está cheia de animais venenosos, e não se pode esperar que algum dos homens de valor escape das mordidas dos invejosos. Oferecem prêmios aos delatores e às vezes se derruba a inocência para dar a palma à falsidade. Quando alguém não consegue viver com sua honradez, ganha comida e roupas devastando a honradez dos outros.

183. A esse respeito, dizia muitas vezes São Francisco: "Isto é o que pensa o murmurador: 'Minha vida não é perfeita, não tenho ciência nem algum outro dom particular, e por isso não estou bem nem com Deus nem com os homens. Já sei o que vou fazer: porei defeito nos escolhidos, e assim conseguirei o favor dos importantes. Sei que meu superior é também um homem, que já agiu comigo do mesmo jeito, por isso basta cortar os cedros que o meu arbusto há de se destacar na floresta. Vamos, miserável, alimenta-te de carne humana e, como não podes viver de outra maneira, rói as entranhas dos irmãos!'"

"Pessoas assim esforçam-se por parecer, não por ser boas. Acusam os vícios, mas não os corrigem em si mesmas. Só louvam uma pessoa quando querem ser favorecidas por sua autoridade, mas calam os louvores que acham que não vão chegar aos ouvidos dos interessados. Em troca de elogios funestos, vendem a palidez de suas faces macilentas, para parecerem espirituais, com direito de julgarem os outros sem serem julgados por ninguém. Querem ser chamados de santos, sem o ser, e gostam de ter o nome dos anjos, mas sem a sua virtude".

DESCRIÇÃO DO MINISTRO GERAL E DOS OUTROS MINISTROS

CAPITULO 139
Como deve agir com os companheiros

184. Estando já o santo próximo de seu fim e aguardando o chamado do Senhor, um frade que sempre se interessava muito pelas coisas de Deus, levado por sua devoção para com a Ordem, disse- lhe o seguinte: "Pai, tu vais passar, e a família que te seguiu vai ser deixada no vale de lágrimas. Indica alguém que conheças na Ordem, em quem teu espírito possa descansar e a quem possas confiar com segurança a responsabilidade do serviço geral da Ordem".

São Francisco respondeu, entremeando suas palavras de suspiros: "Filho, não vejo ninguém que seja suficientemente capaz de ser o comandante de um exército tão numeroso, pastor de um rebanho tão grande. Mas vou tentar descrever ou, como se diz, fazer para vós o retrato de como deve ser o pai desta família".

185. "Deve ser um homem - prosseguiu - de vida austeríssima, de grande discrição, de fama intocável. Um homem que não tenha amizades particulares, para que não tenha mais amor por uma parte, gerando um escândalo no conjunto. Um homem amigo do esforço pela oração, que reserve algumas horas para sua alma e outras para o rebanho que lhe foi confiado. Deve começar logo de manhã com a missa, recomendando à proteção divina a si mesmo e o rebanho, em longa oração. Depois da oração, deve colocar-se em público à disposição de todos para ser 'depenado', para responder a todos, para atender a todos com mansidão".

"Deve ser um homem que não olhe as coisas pelo ângulo sórdido do favoristismo, que se preocupe tanto com os menores e os simples quanto com os instruídos e os maiores. Um homem que, mesmo que se distinga pelo dom da cultura, se destaque mais ainda pela simplicidade, e que cultive a virtude. Um homem que deteste o dinheiro, que é o que mais prejudica nossa profissão de perfeição, e que, chefe de uma Ordem pobre, possa ser imitado por todos, sem jamais abusar da bolsa".

"Para si mesmo deve contentar-se com o hábito e um livrinho de notas; para o serviço dos frades, com a caixa de penas e o carimbo. Não seja colecionador de livros, nem muito entregue às leituras, para não roubar de seu encargo o que dá aos estudos. Deve ser um homem que console os aflitos, porque é o último refúgio dos atribulados; para que, se não tiver os remédios para a saúde, os enfermos não acabem se desesperando. Para amansar os atrevidos, humilhe-se, ceda alguma coisa de seus direitos, para ganhar sua alma para Cristo. Não feche as entranhas de sua misericórdia para os egressos da Ordem, pobres ovelhas tresmalhadas, sabendo que são muito fortes as tentações que podem levar a essa queda extrema".

186. "Quisera que todos o respeitassem por fazer as vezes de Cristo, e que o atendessem com bondade em tudo que for necessário. Mas também seria oportuno que ele não se alegrasse com as honras e não tivesse maior prazer com os favores que com as injúrias. Quando precisasse comer por estar enfraquecido ou cansado, que preferisse fazê-lo em público e não às escondidas, para que os outros também não fiquem envergonhados de alimentar seus corpos enfraquecidos".

"Cabe principalmente a ele distinguir as consciências escondidas, descobrir a verdade em seus veios mais profundos e guardar seus ouvidos dos falatórios. Enfim, deve ser tal que jamais macule a beleza austera da justiça pelo desejo de preservar a própria honra, e veja em seu alto ofício mais uma carga que um cargo. Mas, para que a excessiva mansidão não favoreça a moleza e para que a indulgência demasiada não acabe com a disciplina, ame a to- dos mas saiba também ser temido pelos que praticam o mal".

"Gostaria que tivesse companheiros cheios de virtude, que, como ele, dessem exemplo de todas as coisas boas: austeros consigo mesmos, fortes diante das angústias, mas também devidamente afáveis, para receberem com santa alegria todos os que chegarem".

"Assim deveria ser o ministro geral da Ordem", concluiu.

CAPITULO 140
Os ministros provinciais

187.O feliz pai queria que todos os ministros provinciais tivessem essas mesmas qualidades, embora devam brilhar de maneira especial no ministro geral. Queria que fossem afáveis com os menores e tão bondosos que os delinqüentes não temessem entregar-se à sua clemência. Queria que fossem moderados nos preceitos, compassivos nas ofensas, mais dispostos a suportar que a devolver injúrias, inimigos dos pecados e médicos dos pecadores. Numa palavra, queria que sua vida fosse para os outros um espelho da disciplina. Mas também queria que todos os respeitassem e amassem, porque carregam o peso das solicitudes e dos trabalhos.

E afirmava que seriam dignos dos maiores prêmios diante de Deus os que governassem as almas a eles confiadas dessa forma e de acordo com essas normas.

CAPITULO 141
Resposta do santo sobre os ministros

188. A um frade que lhe perguntou, uma vez, por que tinha deixado o cuidado de todos os irmãos entregando-os a outrem, como se nada tivessem a ver com ele, disse: "Filho, amo os frades como posso. Mas haveria de amá-los mais ainda se seguissem meus passos, e não me alhearia deles. Porque há alguns superiores que os conduzem por outros caminhos, propondo-lhes exemplos dos antigos e fazendo pouco de meus avisos. Mas depois vão aparecer os resultados do que estão fazendo".

Pouco depois, muito doente, endireitou-se na cama pela veemência do espírito e disse: "Quem são esses que arrebataram de minhas mãos a Ordem que é minha e dos frades? Se eu for ao capítulo geral, vou mostrar-lhes qual é a minha vontade".

O frade a quem nos referimos perguntou: "Não vais mudar os ministros provinciais que há tanto tempo abusam da liberdade?" Gemendo, o pai deu esta terrível resposta: "Vivam como quiserem: é preferível o mal de poucos que a perdição de muitos!"

Não se referia a todos mas a alguns, que estavam havia tanto tempo como superiores que parecia terem o cargo como uma propriedade.

O que mais recomendava aos superiores regulares era isto: não mudar os costumes a não ser para melhor, não se comprometer com favores, não exercer um poder mas cumprir um encargo.

A SANTA SIMPLICIDADE

CAPITULO 142
O que é a verdadeira simplicidade

189. A santa simplicidade, filha da graça, irmã da sabedoria, mãe da justiça, era o ideal a que desejava chegar o santo e a virtude que mais apreciava nos outros. Mas não aprovava qualquer simplicidade: apenas aquela que, contente com o seu Deus, despreza todas as outras coisas.

É aquela que se gloria no temor de Deus, que não sabe fazer nem dizer mal. Aquela que examina a si mesma e não condena ninguém, que entrega o devido comando ao melhor e não deseja mandar em ninguém. Aquela que não acha que as melhores glórias são as da cultura e por isso prefere fazer e não aprender ou ensinar. Aquela que, em todas as leis divinas, deixa para os que vão perecer toda verbosidade, ostentação e preciosidade, enfeites e curiosidades, e vai atrás da medula e não das casca, do conteúdo e não do invólucro, não das muitas coisas mas daquele bem que é o grande, o maior, o estável.

O pai santíssimo exigia essa simplicidade tanto nos frades letrados como nos sem cultura, achando que não era adversária mas irmã da sabedoria, ainda que os pobres de ciência tenham mais facilidade para a adquirir e pôr em prática. Por isso, disse nos Louvores das Virtudes: "Salve, rainha sabedoria! Deus te salve, com tua irmã a pura e santa simplicidade!"

CAPITULO 143
Frei João, o simples

190. Passando São Francisco por uma povoado perto de Assis, um certo João, homem muito simples, que estava arando o campo, foi ao seu encontro e disse: "Quero que me faças frade, porque há muito tempo desejo servir a Deus". O santo ficou muito contente ao ver a simplicidade do homem, e lhe respondeu: "Irmão, se queres ser nosso companheiro, dá aos pobres o que podes ter e, quando não tiveres mais nada, eu te receberei".

Ele soltou os bois na mesma hora e ofereceu um a São Francisco, dizendo: "É justo que demos um aos pobres! Porque essa é a parte que me cabe dos bens de meu pai".

O santo sorriu e gostou dessa prova de simplicidade. Mas os pais e irmãos mais moços, quando souberam disso, apareceram chorando, mais pesarosos de perder o boi que o homem. Disse-lhes o santo: "Não se assustem, eu devolvo o boi e fico com o irmão". E levou o homem consigo, vestiu-o com o hábito da Ordem e o escolheu como companheiro especial por causa da simplicidade.

Quando São Francisco se punha a rezar em algum lugar, o simples João imitava todos os seus gestos e expressões. Cuspia quando ele cuspia, tossia quando tossia, acompanhava-o quando suspirava e quando chorava. Se o santo levantava os braços para o céu, ele também levantava, olhando-o atentamente como um modelo e imitando-o em tudo.

O santo percebeu isso e perguntou, uma vez, por que o fazia. Ele respondeu: "Prometi fazer tudo que fazes: não posso deixar escapar nada". O santo se alegrou com ele por essa simplicidade pura, mas proibiu com brandura que continuasse daí em diante.

O homem simples viveu pouco tempo nessa pureza, e foi para junto do Senhor. O santo propunha freqüentemente sua vida como um modelo e tinha gosto de chamá-lo não de Frei João mas de São João.

Observemos que é próprio da piedosa simplicidade viver de acordo com as leis dos antigos e se apoiar sempre nos exemplos e nos costumes dos santos. Tomara que os sábios deste mundo seguissem São Francisco, agora que reina no céu, com o mesmo empenho que teve esse irmão piedoso e simples para conformar-se a ele na terra! Finalmente, tendo seguido o santo em vida, precedeu-o na glória.

CAPITULO 144
Encoraja a união entre seus filhos.
Uma parábola sobre este assunto

191. Sempre manteve um desejo constante e um esforço vigilante para preservar entre seus filhos o vínculo da união, para que fossem formados pacificamente no seio da mesma mãe aqueles que tinham sido atraídos pelo mesmo espírito e gerados pelo mesmo pai. Queria que os grandes se unissem aos pequenos, que os sábios e os simples vivessem em comunhão fraterna e que os que se encontrassem longe sentissem que estavam ligados pelo amor.

Uma vez, contou esta parábola, rica de ensinamentos: "Vamos supor que todos os religiosos da Igreja se reuniram em um só capítulo geral! Estando presentes letrados e analfabetos, sábios e os que sabem agradar a Deus mesmo sem sabedoria, encomendaram um sermão a um dos sábios e a um dos simples".

"O sábio, por ser sábio, calculou consigo mesmo: 'isto aqui não é lugar de demonstrar conhecimentos, porque estão presentes homens perfeitos na ciência, e não convém que eu me faça notar pela afetação, dizendo coisas sutis diante de pessoas mais sutis. Talvez seja mais proveitoso falar com simplicidade'".

"Amanheceu o dia combinado, reuniram-se as congregações de santos, sequiosas de ouvir o sermão. O sábio se apresentou vestido de saco, com a cabeça coberta de cinza e, diante da admiração de todos, pregando mais com o exemplo, foi breve nas palavras. Disse: 'Prometemos grandes coisas, maiores são as que nos foram prometidas. Observemos as primeiras e suspiremos pelas segundas. O prazer é breve, o castigo é perpétuo, o sofrimento é pequeno, a glória não tem fim. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos, todos terão a sua retribuição"'.

"Os ouvintes romperam em lágrimas com o coração compungido e veneraram aquele verdadeiro sábio como um santo.

"'Vejam só, disse o simples em seu coração. O sábio me tirou tudo que eu ia fazer e dizer. Mas já sei o que farei. Conheço alguns versículos de salmos: vou agir como um sábio, já que ele agiu como um simples'".

"Chegou a sessão do dia seguinte, o simples se levantou, propôs um Salmo como tema. Inspirado pelo Espírito Santo, falou com tanto fervor, com tanta sutileza, com tanta doçura, por um dom que só podia vir de Deus, que todos ficaram muito admirados e disseram: 'Deus fala com os simples'".

192. Depois o homem de Deus dava esta explicação para a parábola que tinha contado: "Nossa Ordem é uma assembléia muito grande, um verdadeiro capítulo geral, que se reuniu de todas as partes do mundo para viver de uma maneira comum. Nela os sábios aproveitam o que é dos simples, vendo que os ignorantes buscam as coisas do céu com inflamado vigor e que os não instruídos pelos homens aprenderam com o Espírito as coisas espirituais.

Nela também os simples aproveitam o que é dos sábios, porque vêem que nela convivem com eles homens preclaros, que poderiam gozar de grande conceito no mundo. É isso que faz brilhar a beleza desta bem-aventurada família, cuja variedade tanto agrada ao Pai de família".

CAPITULO 145
Como deseja que cortem o cabelo

193. Quando cortava o cabelo, muitas vezes São Francisco dizia ao barbeiro: "Cuidado para não me fazeres uma coroa grande! Quero que meus irmãos simples tenham uma parte em minha cabeça". Queria, justamente, que a Ordem fosse a mesma tanto para os pobres e os iletrados como para os ricos e os sábios. Dizia: "Diante de Deus não há acepção de pessoas, e o ministro geral da Ordem, que é o Espírito Santo, pousa do mesmo jeito sobre o pobre e o simples". Quis pôr essas palavras na Regra, mas não pôde porque já estava bulada.

CAPITULO 146
Como quer que se despojem os homens cultos que entram na Ordem

194. Certa vez, disse que um homem de grande cultura deveria resignar, de certa forma, até à ciência, quando entrava na Ordem, para que, despojado dessa posse, se lançasse despido aos braços do Crucificado.

"A ciência - dizia - torna muitas pessoas indóceis, fazendo com que alguma coisa rígida nelas resista aos ensinamentos humildes. Por isso gostaria que o homem letrado começasse por me dizer esta prece: 'Irmão, vivi muito tempo no mundo e não conheci de verdade o meu Deus. Peço que me concedas um lugar afastado do barulho do mundo, para que possa rever meus anos na dor, para que recorde as dispersões de meu coração e me reforme para o que é melhor'. Que pensais que vai acontecer com quem começar desse jeito? Como um leão solto, sairá com força para tudo, e a boa seiva que hauriu no começo continuará a se desenvolver para o seu proveito. Este é que seria o mais indicado para o verdadeiro ministério da palavra, porque haveria de derramar do que estivesse fervendo dentro dele".

De fato, é um ensinamento sublime! Que mais precisa quem vem do mundo das dissimulações que limpar e enxugar com exercícios de humildade os afetos seculares que andou ajuntando e arraigando em si mesmo durante tanto tempo? Quem quer que entre nessa escola de perfeição bem depressa alcançará a santidade.

CAPITULO 147
Como deseja que estudem.
Aparição a um companheiro ocupado com pregações

195. Sofria quando a ciência era procurada com desprezo da virtude, principalmente se a pessoa não permanecia na vocação que tinha recebido desde o começo. Dizia: "Os meus irmãos que se deixam arrastar pela curiosidade da ciência vão se encontrar de mãos vazias no dia da retribuição. Gostaria que se reforçassem mais com virtudes para que, vindo os tempos de tribulação, tivessem o Senhor consigo na hora da angústia. Porque virá uma tribulação em que os livros não vão servir para nada, e serão jogados nas janelas e nos desvãos".

Não dizia isso porque não gostasse dos estudos das Escrituras, mas para afastar a todos dos estudos supérfluos, pois preferia que fossem bons pela caridade e não sabidos por curiosidade.

Pressentia que não tardariam a vir tempos em que a ciência seria ocasião de ruína, enquanto o espírito seria uma base sólida para a vida espiritual.

A um irmão leigo que foi pedir sua licença para ter um saltério deu cinza em vez do livro. A um de seus companheiros que estava ocupado com pregações apareceu uma vez depois de sua morte, proibiu que continuasse nesse caminho e mandou que seguisse o da simplicidade. Deus é testemunha de que, depois dessa visão, o frade gozou de tal consolação que, por muitos dias, teve a impressão de que as palavras do pai ainda estavam em seus ouvidos como um orvalho penetrante.

DEVOÇÕES PARTICULARES DO SANTO

CAPITULO 148
Como se comove ao lhe falarem do amor de Deus

196. Acho que vale a pena e pode ser interessante falar um pouco das devoções particulares de Francisco. Apesar de ser um homem devoto em todos os pontos, pois gozava da unção do Espírito, tinha especial inclinação por algumas formas de piedade.

Entre outras expressões usadas nas conversas comuns, não podia ouvir falar em "amor de Deus" sem se comover profundamente. Logo que ouvia falar em amor de Deus ficava fora de si, comovido, inflamado, como se suas cordas mais íntimas vibrassem com esse som exterior.

Dizia que era uma prodigalidade de nobres pagar as esmolas com o amor de Deus, e que eram pessoas muito tolas as que davam maior valor ao dinheiro. Ele mesmo observou sem nenhuma falha, até a morte, o propósito que tinha feito quando ainda estava no mundo, de jamais rejeitar um pobre que pedisse por amor de Deus.

Uma vez um pobre lhe pediu por amor de Deus e ele não tinha nada. Pegou escondido uma tesoura e ia dar-lhe um pedaço da própria roupa. Não chegou a fazer isso porque foi surpreendido pelos frades, mas fez com que dessem outra coisa ao pobre. Disse: "Temos que amar muito o amor daquele que tanto nos amou".

CAPITULO 149
Devoção aos anjos.
O que faz por devoção a São Miguel

197. Tinha a maior veneração pelos anjos, que estão conosco no combate e caminham ao nosso lado por entre as sombras da morte. Dizia que esses companheiros devem ser reverenciados em toda parte e que devemos invocá-los como nossos guardas. Ensinava a não ofender sua presença, e que não se devia ousar fazer diante deles o que não se faria diante dos homens. Considerando que, no coro, salmodiamos diante dos anjos, queria que todos que pudessem comparecessem ao oratório, e que aí salmodiassem com devoção.

Mas muitas vezes dizia que devemos honrar de maneira toda especial São Miguel, porque é o encarregado de apresentar as almas ao julgamento. Em honra de São Miguel, fazia uma quaresma de jejuns desde a festa da Assunção até o seu dia. E dizia que, "em honra de tão importante príncipe, dever-se-ia oferecer a Deus algum louvor ou algum dom especial".

CAPITULO 150
Devoção a Nossa Senhora, a quem consagra particularmente a Ordem

198. Tinha um amor indizível à Mãe de Jesus, porque fez nosso irmão o Senhor da majestade. Consagrava-lhe louvores especiais, orações, afetos, tantos e tais que uma língua humana nem pode contar. Mas o que mais nos alegra é que a constituiu Advogada da Ordem, e à sua proteção e guia confiou até o fim os filhos que ia deixar.

O' advogada dos pobres, cumpre conosco o teu ofício protetor por todo o tempo que foi predeterminado pelo Pai!

CAPITULO 151
Devoção ao Natal do Senhor. Como quer que atendam a todos nesse dia

199. Celebrava com incrível alegria, mais que todas as outras solenidades, o Natal do Menino Jesus, pois afirmava que era a festa das festas, em que Deus, feito um menino pobrezinho, dependeu de peitos humanos. Beijava como um esfomeado as imagens dessa criança, e a derretida compaixão que tinha no coração pelo Menino fazia até com que balbuciasse doces palavras como uma criancinha. Para ele, esse nome era como um favo de mel na boca.

Certa vez em que os frades discutiam se podiam comer carne porque era uma sexta-feira, disse a Frei Morico: "Irmão, cometes um pecado chamando de sexta-feira o dia em que o Menino nasceu para nós. Quero que nesse dia até as paredes comam carne. Se não podem, pelo menos sejam esfregadas com carne!"

200. Queria que, nesse dia, os pobres e os esfomeados fossem saciados pelos ricos, e que se concedesse uma ração maior e mais feno para os bois e os burros. Até disse: "Se eu pudesse falar com o imperador, pediria que promulgasse esta lei geral: que todos que puderem joguem pelas ruas trigo e outros cereais, para que nesse dia tão solene tenham abundância até os passarinhos, e principalmente as irmãs cotovias".

Não podia recordar sem chorar toda a penúria de que esteve cercada nesse dia a pobrezinha da Virgem. Num dia em que estava sentado a almoçar, um dos frades lembrou a pobreza da Virgem bem- aventurada e as privações de Cristo seu Filho. Ele se levantou imediatamente da mesa, soltou dolorosos soluços e comeu o resto de pão no chão nu, banhado em lágrimas.

Dizia que a pobreza era uma virtude real, pois brilhava de maneira tão significativa no Rei e na Rainha.

Quando os frades lhe perguntaram, em uma reunião, que virtude mais faz de alguém um amigo de Cristo, respondeu, como quem contava um segredo de seu coração: "Ficai sabendo, filhos, que a pobreza é o caminho especial da salvação, que seu fruto é enorme mas são muito poucos os que o conhecem".

CAPITULO 152
Devoção ao Corpo do Senhor

201. Ardia com o fervor do mais profundo de todo o seu ser para com o sacramento do Corpo do Senhor, pois ficava absolutamente estupefato diante de tão amável condescendência e de tão digna caridade. Achava que era um desprezo muito grande não assistir pelo menos a uma missa cada dia, se pudesse. Comungava com freqüência e com tamanha devoção que tornava devotos também os outros. Como tinha toda reverência para com aquilo que se deve reverenciar, oferecia o sacrifício de toda a sua pessoa e, ao receber o Cordeiro imolado, imolava o seu espírito com aquele fogo que sempre ardia no altar de seu coração.

Amava a França por ser devota do Corpo do Senhor, e nela de- sejava morrer por seu amor aos sagrados mistérios.

Certa ocasião quis mandar os frades pelo mundo com preciosas âmbulas para guardarem o preço de nossa redenção no melhor lugar, onde quer que o encontrassem guardado de maneira menos digna.

Queria que se tivesse a maior reverência para com as mãos sacerdotais, pelo poder divino que lhes foi conferido para a confecção do santo sacramento. Dizia freqüentemente: "Se e acontecesse de encontrar ao mesmo tempo um santo descido do céu e um sacerdote pobrezinho, saudaria primeiro o presbítero, e me apressaria a beijar as suas mãos. Até diria: 'Espera, São Lourenço, porque as mãos deste homem tocam a Palavra da vida e têm algo de sobre-humano'"..

CAPITULO 153
Devoção para com as santas relíquias

202. Mostrava-se devotíssimo do culto divino este homem amado por Deus, e não deixava sem a devida honra coisa alguma que com ele se relacionasse.

Quando estava em Monte Casale, na província de Massa, mandou que os frades transportassem com toda reverência para sua casa as relíquias de uma igreja abandonada. Ficava aborrecido por saber que havia tanto tempo estavam sem o culto que lhes era devido. Mas teve que se ausentar por motivos urgentes e os filhos, esquecidos da ordem do pai, deixaram de tomar em consideração o mérito da obediência.

Certo dia, quando os frades levantaram a coberta do altar para celebrar a missa, encontraram uns ossos muitos bonitos e perfumados. Ficaram muito espantados, pois nunca tinham visto nada semelhante.

Pouco depois, o santo voltou e perguntou se tinham cumprido o que mandara a respeito das relíquias. Os frades confessaram humildemente que tinham deixado de obedecer e receberam tanto a penitência como o perdão. O santo disse: "Bendito seja o Senhor meu Deus, que cumpriu por si mesmo o que vós deveríeis ter feito!"

Consideremos a devoção de Francisco, admiremos o cuidado de Deus com o pó que somos, exaltemos o louvor da santa obediência. Os homens não atenderam à sua voz, mas Deus obedeceu a suas preces.

CAPITULO 154
Devoção para com a cruz. Um mistério oculto

203. Finalmente, quem pode contar, quem pode entender até que ponto ele "não queria gloriar-se a não ser na cruz do Senhor?" Só pode compreender quem pôde experimentar.

De fato, ainda que pudéssemos experimentar de alguma forma em nós mesmos essas coisas, nossas palavras não seriam capazes de expressar tantas maravilhas, maculadas que estão pelo uso vil de todos os dias. Talvez seja por isso que o mistério teve que se manifestar em sua carne: com palavras não daria para explicar.

Que o silêncio fale onde a palavra falta, porque até as coisas significadas clamam quando falta uma expressão à altura. Anunciemos apenas aos ouvidos humanos esse mistério que até agora ainda não se sabe com clareza por que foi manifestado no santo. Pelo que ele revelou, só tem explicação e sentido no futuro. Será tido por veraz e digno de fé quem tiver por testemunhas a natureza, a lei e a graça.

AS SENHORAS POBRES

CAPITULO 155
Como queria que os frades tratassem com elas

204. Não podemos deixar de lembrar aquele edifício espiritual que o bem-aventurado pai, levado pelo Espírito Santo, construiu para o desenvolvimento da cidade eterna, muito mais nobre do que a reparação de uma igreja material, e colocado no mesmo lugar.

Não podemos acreditar que Cristo tenha falado da cruz, de maneira tão estupenda que incutiu temor e dor aos que souberam, só para se referir àquela obra perecível que estava em ruínas. Como tinha sido predito pelo Espírito Santo noutra ocasião, ali deveria ser fundada uma Ordem de santas virgens, como uma reserva selecionada de pedras vivas, a serem transferidas depois para a restauração da casa lá do céu.

De fato, depois que começaram a se reunir naquele lugar as virgens de Cristo, vindas de diversas regiões do mundo, professando a maior perfeição pela observância da mais alta pobreza e pelo decoro de todas as virtudes, o santo pai foi diminuindo aos poucos sua presença corporal, mas redobrou seu afeto no Espírito Santo para cuidar delas.

Sabendo o santo que tinham passado por numerosas provas da maior perfeição e que estavam preparadas para suportar por Cristo qualquer dificuldade e a enfrentar qualquer trabalho, e que não queriam jamais se afastar do que lhes tinha sido mandado, prometeu com firmeza, a elas e às outras que viessem a professar essa vida, que lhes haveria de dar sempre auxílio e conselho, por si mesmo e por seus frades. Enquanto viveu cumpriu tudo isso diligentemente e, quando viu que estava para morrer, não descuidou de mandar que o fizessem sempre. Pois afirmava que um só e o mesmo Espírito tinha tirado deste mundo tanto os frades como aquelas senhoras pobrezinhas.

205. Algumas vezes em que os frades se admiraram de que não fosse visitar mais vezes tão santas servas de Deus, ele disse: "Não penseis, caríssimos, que não as ame com perfeição. Se fosse pecado ajudá-las em Cristo, não seria um pecado maior tê-las unido a Cristo? Não as haver chamado não seria mal nenhum, mas não cuidar delas agora que foram chamadas seria a maior maldade. O que eu quero é dar bom exemplo, para que façais como eu faço. Não quero que ninguém se ofereça para ir visitá-las, mas ordeno que só sejam destinados a atendê-las homens espirituais, provados por um comportamento digno e longo, contra sua vontade e só quando resistirem bastante".

CAPITULO 156
Repreensão para alguns que gostam de ir aos mosteiros

206. Certo frade tinha no mosteiro duas filhas de vida exemplar e, uma vez, disse que levaria com prazer um presentinho muito pobre da parte do santo. Este o repreendeu duramente com palavras que não me atrevo a repetir. E mandou o presente por outro frade que não queria ir, ainda que não tenha resistido obstinadamente.

Um outro frade, em tempo de inverno, foi por motivo de compaixão a um mosteiro, ignorando assim a vontade do santo, que não queria que fosse. Quando o santo ficou sabendo, fez com que caminhasse despido por muitos quilômetros no pior frio das nevadas.

CAPITULO 157
A pregação feita mais pelo exemplo que pelas palavras

207. Numa ocasião em que se encontrava em São Damião, o santo pai foi muito instado por seu vigário a propor a palavra de Deus a suas filhas, e acabou concordando.

As senhoras se reuniram como de costume, para ouvir a palavra de Deus, mas com desejo não menor de ver o pai. Ele levantou os olhos para o céu, onde sempre tinha o coração, e começou a rezar a Cristo. Depois mandou buscar cinza e fez um círculo ao seu redor no chão, jogando o resto sobre a própria cabeça.

Vendo o bem-aventurado pai manter silêncio dentro do círculo de cinzas, sentiram não pequeno estupor em seu coração. De repente o santo se levantou e, diante das irmãs atônitas, recitou o salmo 'Miserere mei Deus' em vez de fazer um sermão. Quando acabou, foi embora bem depressa.

As servas de Deus ficaram tão contritas com a força significativa desse episódio que choraram muito e tiveram que se conter para não tirar vingança de si mesmas. Ensinou-as pelo exemplo a se julgarem cinza, e que nada chegava a seu coração a respeito delas que não fosse digno dessa reputação.

Era essa a sua maneira de tratar com as santas mulheres. Fazia-lhes visitas muito proveitosas mas por obrigação e raramente. Dessa maneira queria que as servissem os seus frades, por amor de Cristo de quem eram servidores, mas sempre como aves que tomam cuidado com as armadilhas colocadas por onde passam.

RECOMENDAÇÃO DA REGRA DOS IRMÃOS

CAPITULO 158
Recomendação da Regra de São Francisco.
Um frade que a leva consigo

208. Tinha um zelo ardente pela profissão e pela Regra, e deixou uma bênção especial para os que eram zelosos por ela.

Pois dizia aos seus que a Regra era o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, o caminho da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da aliança eterna. Queria que todos a possuíssem e que todos a conhecessem, para que fosse tema de seu diálogo com o homem interior, servindo para lembrar-lhe o juramento feito. Ensinou que se devia ter sempre a Regra diante dos olhos para dirigir a vida e, até mais, que com ela se deveria morrer.

Houve um irmão leigo que não se esqueceu dessa recomendação, conseguindo assima palma de uma vitória gloriosa, e creio que deve ser venerado entre os mártires. Quando os sarracenos o levavam para o martírio, levantando a Regra nas mãos e humildemente ajoelhado, ele disse ao companheiro: "Irmão caríssimo, diante dos olhos da Majestade e diante de ti, declaro-me culpado de tudo que fiz contra esta santa Regra".

A essa breve confissão sobreveio a espada, e assim morreu martirizado, ficando célebre depois por sinais e prodígios. Tinha entrado na Ordem quase criança, a ponto de mal aguentar o jejum regular. No entanto, apesar de tão jovem, cingia-se de cilício. Feliz menino, que começou bem para terminar ainda melhor.

CAPITULO 159
Uma visão que recomenda a Regra

209. Certa vez o santíssimo pai teve uma visão de um oráculo celeste a respeito da Regra. Foram coisas mostradas em sonhos ao santo, no tempo em que os frades estavam discutindo sobre a confirmação da Regra. Viu-se recolhendo do chão migalhinhas muito pequenas de pão e dando de comer a muitos frades esfomeados que estavam ao seu redor. Ficou com medo de distribuir migalhinhas tão pequenas, achando que iam se desfazer em pó nos seus dedos, mas ouviu uma voz do alto: "Francisco, faz com todas essas migalhas uma única hóstia e dá-a aos que querem comer". Ele obedeceu. Todos os que não recebiam com devoção, ou que desprezavam o dom recebido, ficavam logo cobertos de lepra.

Pela manhã o santo contou tudo isso aos companheiros, lamentando-se por não ter entendido o significado da visão. Pouco depois, enquanto vigiava em oração, recebeu do céu este esclarecimento: "Francisco, as migalhas da noite passada são as palavras do Evangelho, a hóstia é a Regra, a lepra é a iniquidade".

Os frades daquele tempo não achavam duro ou áspero o que tinham prometido e estavam sempre prontos a fazer ainda mais. Porque não existem moleza ou preguiça quando o aguilhão do amor es- tá sempre estimulando para coisas maiores.

AS DOENÇAS DE SÃO FRANCISCO

CAPITULO 160
Conversa com um frade sobre como tratar o corpo

210. Francisco, pregoeiro de Deus, seguiu os passos de Cristo no meio de trabalhos sem conta e de fortes sofrimentos, e não arredou o pé enquanto não terminou com maior perfeição o que soubera começar tão bem.

Mesmo quando estava cansado e com o corpo todo alquebrado, nunca abandonou seu caminho de perfeição e nunca se permitiu uma quebra no rigor da disciplina. Não conseguia ajudar o corpo exausto nem um pouquinho sem ter escrúpulos.

Por isso quando, contra a sua vontade, foi preciso aliviar com remédios os incômodos de seu corpo que já eram maiores que suas forças, voltou-se confiante a um dos irmãos, na certeza de que lhe daria um bom conselho:

"Que pensas, meu irmão, dessas reclamações constantes de minha consciência pelos cuidados com o corpo? Ela tem medo de que eu seja muito condescendente com o enfermo e lhe faça regalos desnecessários. Mas não é porque esse corpo já alquebrado pela longa doença possa receber alguma coisa com prazer: ele já perdeu toda vontade de se satisfazer".

211. O filho respondeu ao pai na mesma hora, certo de que o Senhor era quem o inspirava: "Dize-me, por favor, pai, por acaso não foi com diligência que teu corpo obedeceu a tuas ordens, enquanto lhe foi possível?"

O santo respondeu: "Filho, posso testemunhar que sempre foi obediente, nunca poupou a si mesmo e até se precipitava para obedecer ao que eu queria. Não fugiu de trabalho nenhum, não escapou de nenhum incômodo, só quis cumprir o que eu mandava. Neste ponto estamos completamente de acordo, eu e ele: servimos ao Senhor Cristo sem nenhuma repugnância".

Disse o frade: "Então, pai, onde estão a tua generosidade, a tua piedade, a tua grande discrição? Será que é assim que se tratam os amigos fiéis: com boa vontade na hora de receber o benefício mas sem saber retribuir quando é o outro que precisa? Que serviço pudeste prestar até agora a Cristo teu Senhor sem a colaboração de teu corpo? Não foi para isso que ele se entregou a to- dos os perigos, como tu mesmo estás confessando?"

O pai respondeu: "Meu filho, confesso que essa é a verdade".

E o filho: "E seria conveniente que, na hora da necessidade, faltasses para com tão grande amigo, que por ti se entregou à própria morte com tudo que possuía? Longe de ti, pai! Longe de ti, que és auxílio e apôio dos aflitos, cometer esse pecado diante do Senhor!"

O santo respondeu: "Bendito sejas tu também, meu filho, que com sabedoria puseste remédios tão salutares nas minhas dúvidas!" E, sorrindo, disse ao próprio corpo: "Alegra-te, irmão corpo, e me perdoa, porque agora vou tratar de cumprir com gosto tuas vontades, vou me apressar a atender tuas reclamações!"

Mas o que poderia agradar àquele pobre corpo acabado? O que poderia soerguê-lo, agora que já estava todo derreado? Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração.

CAPITULO 161
Promessa do Senhor em recompensa de suas enfermidades

212. Derrubado por sofrimentos de todos os lados, causa admiração que tivesse força para suportá-los. Mas chamava essas suas dores de irmãs e não de penas.

E é fora de dúvida que elas provinham de muitas causas. De fato, para aumentar os seus triunfos, o Altíssimo não lhe proporcionou coisas difíceis só enquanto era simples recruta: deu-lhe ocasião de triunfar mesmo depois que já era um soldado experimentado.

Isto também é um exemplo para seus seguidores: nem a idade conseguiu diminuir o seu fervor nem a doença a sua austeridade. Também não foi sem razão que sua purificação foi tão plena neste vale de lágrimas. Ele pagou suas dívidas nesta terra até o último vintém, se é que sobrou algum resto de impureza que devesse passar pelo fogo, para que sua alma, completamente purificada, pudesse voar diretamente para o céu.

Mas eu acho que a razão principal de seus tormentos foi, como ele mesmo afirmava a respeito de outros, a grande recompensa que se tem em suportá-los.

213. Certa noite, atormentado mais que de costume por uma porção de sofrimentos graves de suas doenças, começou a ter profunda compaixão de si mesmo. Mas, para que seu espírito, sempre pronto, não condescendesse com a carne em coisa nenhuma por uma hora sequer, invocou a Cristo e segurou firme o escudo da paciência. Durante essa oração agoniada, recebeu do Senhor a promessa da vida eterna, desta maneira:

"Se a terra e o universo inteiro fossem de ouro puríssimo e soubesses que, livre de toda dor, haverias de receber como prêmio por teus duros sofrimentos um tesouro tão glorioso que, diante dele, todo aquele ouro seria um nada e nem mereceria ser mencionado, não te sentirias feliz de suportá-los de boa vontade por mais alguns momentos?"

O santo respondeu: "É claro que me alegraria, seria o máximo da alegria".

"Podes exultar, então", disse-lhe o Senhor, "porque tua doença é uma garantia de meu reino e, pelos merecimentos da paciência, podes ter a segurança e a certeza que terás essa herança!"

Que alegria imensa terá sentido o homem feliz que recebeu essa promessa! Com quanta paciência, mas também com quanto amor, acolheu os sofrimentos do corpo! Só ele sabe disso, agora, com perfeição, mas naquele tempo não foi capaz de contá-lo. Disse alguma coisa aos irmãos, o que pôde. Nessa ocasião, compôs os Louvores das Criaturas, convidando-as a louvar sempre o Criador.

PASSAMENTO DO SANTO PAI

CAPITULO 162
Exortação e bênção final aos frades

214. Na morte do homem - diz o Sábio - suas obras serão postas às claras. Neste santo vemos que isso se realizou por completo, e gloriosamente. Ele percorreu com alegria interior o caminho dos mandamentos de Deus, chegou ao alto passando pelos degraus de todas as virtudes e atingiu o fim como uma obra amoldável, aperfeiçoada pelo martelo das múltiplas tribulações.

Quando partiu livre para os céus, pisando as glórias desta vida mortal, resplandeceram mais as suas obras admiráveis, e ficou provado que tudo que tinha vivido era de Deus. Achou que viver para o mundo era um opróbrio, amou os seus até o fim e recebeu a morte cantando.

Sentindo já próximos seus últimos dias, em que a luz perpétua substituiria a luz que se acaba, demonstrou pelo exemplo de sua virtude que não tinha nada em comum com o mundo. Prostrado pela doença grave que encerrou todos os seus sofrimentos, fez com que o colocassem nu sobre a terra nua, para que, naquela hora extrema em que ainda podia enraivecer o inimigo, estar preparado para lutar nu contra o adversário nu.

Esperava intrepidamente o triunfo e já apertava em suas mãos a coroa da justiça. Posto no chão, sem a sua roupa de saco, voltou o rosto para o céu como costumava e, todo concentrado naquela glória, cobriu a chaga do lado direito com a mão esquerda, para que não a vissem. E disse aos frades: "Eu cumpri a minha missão. Que Cristo vos ensine a cumprir a vossa!"

215. Vendo isso, os filhos sucumbiram à dor imensa da compaixão, em meio a intensas lágrimas e dando suspiros profundos.

O guardião, contendo os soluços e adivinhando por inspiração divina o que o santo queria, levantou-se, foi correndo buscar uma calça, o hábito de saco e o capuz, e disse ao pai: "Fica sabendo que te empresto, em virtude da obediência, este hábito, as calças e o capuz! Para saberes que não tens nenhum direito de propriedade, tiro-te o poder de dá-los a quem quer que seja".

O santo gostou e se rejubilou de alegria interior, vendo que tinha mantido a fidelidade para com a Senhora Pobreza até o fim. Fizera tudo isso por zelo da pobreza, a ponto de não querer ter no fim nem o hábito emprestado. Usara na cabeça o capuz de saco para esconder as cicatrizes da doença dos olhos, quando teria necessidade de um gorro de lã cara, que fosse bem macio.

216. Depois disso, o santo levantou as mãos para o céu e louvou a Cristo porque, livre de tudo, já estava indo ao seu encontro.

Mas, para demonstrar que era um verdadeiro imitador do Cristo, seu Deus, em todas as coisas, amou até o fim os frades seus filhos, a quem amara desde o começo. Pois fez chamar todos os irmãos presentes e, consolando-os de sua morte, exortou-os com afeto de pai ao amor de Deus. Falou também sobre a observância da paciência e da pobreza, dizendo que o santo Evangelho era mais importante do que todas as normas. Estando todos os frades sentados ao seu redor, estendeu sobre eles a mão e, começando por seu vigário, a impôs sobre a cabeça de cada um.

E disse: "Filhos todos, adeus no temor do Senhor! Permanecei sempre nele! A tentação e a tribulação estão para chegar. Felizes os que perseverarem no que começaram. Eu vou para Deus, a cuja graça recomendo-vos todos". Nos que estavam presentes, abençoou a todos os frades que estavam por todo o mundo e os que haveriam de vir depois deles, até o fim dos tempos.

Que ninguém usurpe para si mesmo essa bênção que, nos presentes, deu aos ausentes. Assim como se acha parece ter em vista uma pessoa particular, mas isso é um desvirtuamento.

CAPITULO 163
Sua morte e o que faz antes de morrer

217. Enquanto os frades choravam amargamente e se lamentavam inconsoláveis, o pai santo mandou trazer um pão. Abençoou-o, partiu-o e deu um pedacinho para cada um comer. Também mandou trazer um livro dos Evangelhos e pediu que lessem o Evangelho de São João a partir do trecho que começa: "Antes do dia da festa da Páscoa", etc. Lembrava-se daquela sagrada ceia que foi a última celebrada pelo Senhor com seus discípulos. Fez tudo isso para celebrar sua lembrança, demonstrando todo o amor que tinha para com seus frades.

Passou em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte, ensinando seus filhos muito amados a louvar Cristo em sua companhia. Ele mesmo, quanto lhe permitiam suas forças, entoou o Salmo: "Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro o Senhor", etc. Convidou também todas as criaturas ao louvor de Deus e, usando uma composição que tinha feito em outros tempos, exortou-as ao amor de Deus. Chegou a exortar para o louvor até a própria morte, que todos temem e abominam, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a com hospitalidade: "Bem-vinda seja a minha irmã morte!"

Ao médico disse: "Irmão médico, diga com coragem que minha morte está próxima, para mim ela é a porta da vida!" E aos frades: "Quando perceberdes que cheguei ao fim, do jeito que me vistes despido anteontem, assim me colocai no chão, e lá me deixai ficar mesmo depois de morto, pelo tempo que alguém levaria para caminhar sem pressa uma milha".

E assim chegou a hora. Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus.

Um frade vê a alma do santo pai em seu passamento

217a. Um frade seu discípulo, muito famoso, viu a alma do santíssimo pai como uma estrela, com o tamanho da lua e a claridade do sol, sobrevoando o abismo das águas, levada em cima de uma nuvenzinha branca e subindo direto para o céu.

Houve por isso um grande ajuntamento de povo, louvando e glorificando o nome do Senhor. A cidade de Assis veio em peso, e a região inteira se apressou para ver as grandezas de Deus, que o Senhor tinha demonstrado em seu servo. Lamentavam-se os filhos privados de tão excelente pai e demonstravam com lágrimas e suspiros o piedoso afeto de seu coração.

Mas a novidade do milagre transformou o pranto em júbilo e o luto em comemoração. Viam o corpo do bem-aventurado pai ornado com os estigmas. No meio das mãos e dos pés estavam não os buracos dos cravos mas os próprios cravos, feitos com sua carne e até unidos à sua carne, embora pretos como ferro. O lado direito parecia rubro de sangue. Sua pele, antes escura por natureza, mostrava agora a alvura brilhante que prometia os prêmios da ressurreição. Seus membros podiam dobrar-se, não tinham a rigidez cadavérica, parecendo de um menino.

CAPITULO 164
Visão de Frei Agostinho em sua morte

218. Frei Agostinho era, nesse tempo, ministro dos frades na Terra do Labor. Estava para morrer e já tinha perdido a fala bastante tempo antes, mas de repente todos os que estavam presentes o ouviram clamar dizendo: "Espera-me, pai, espera-me! Já vou contigo."

Os frades ficaram muito admirados e perguntaram com quem estava falando. Ele respondeu com firmeza: "Não estais vendo nosso pai Francisco que vai indo para o céu?" E, na mesma hora, sua santa alma, livre do corpo, seguiu o santíssimo pai.

CAPITULO 165
Aparição do santo pai a um frade, depois de sua morte

219. A um outro frade de vida muito louvável, suspenso em oração naquela noite e naquela hora, o glorioso pai apareceu vestido com uma dalmática de cor púrpura, acompanhado por uma multidão de pessoas.

Muitos, que saíam dessa multidão, disseram ao frade: "Irmão, será que esse é o Cristo?" Ele respondia: "É ele mesmo". Mas outros também perguntavam: "Mas não é São Francisco?"

O frade também dizia que era ele mesmo. E, de fato, tanto para o frade como para todo aquele povo, dava a impressão de que Cristo e São Francisco eram uma só pessoa. Os que sabem entender bem não vão achar temerária essa afirmação, porque aquele que adere a Deus torna-se um só espírito com ele, e o próprio Deus vai ser um só em todos no futuro.

Finalmente o bem-aventurado pai chegou, com aquela admirável multidão, a lugares agradabilíssimos, muito verdes pelo viço de todas as gramíneas irrigadas por água muito límpida, em plena primavera de flores e repletos de árvores de todas as espécies deliciosas. Levantava-se aí um palácio de tamanho admirável e de beleza ímpar, em que o novo habitante do céu entrou alegremente, indo encontrar lá dentro muitos frades. E começou a se banquetear gostosamente com os seus numa mesa esplendidamente preparada e cheia das mais variadas iguarias.

CAPITULO 166
Visão do bispo de Assis na morte do santo pai

220. O bispo de Assis tinha ido nesse tempo em peregrinação à igreja de São Miguel. Estava hospedado em Benevento, na volta, quando o pai São Francisco lhe apareceu em visão na noite de sua morte e lhe disse: "Pai, estou deixando o mundo e vou para Cristo".

Levantando-se, de manhã, o bispo contou a seus companheiros o que tinha visto e mandou chamar um secretário para tomar nota do dia e da hora do passamento. Ficou muito triste e chorou bastante pela dor de ter perdido o melhor dos pais. De volta a sua terra, referiu tudo que tinha acontecido e deu graças sem fim ao Senhor por seus benefícios.

Canonização e translação de São Francisco

220a. Em nome do Senhor Jesus. Amém. No ano 1226 de sua Encarnação, no dia 3 de outubro, dia que tinha predito, passados vinte anos desde que tinha aderido com perfeição a Cristo seguindo a vida e os passos dos apóstolos, o homem apostólico que foi São Francisco, solto das amarras da vida mortal, partiu felizmente para Cristo. Sepultado na cidade de Assis, começou a brilhar por toda parte por tantos e tão admiráveis milagres que, em breve, tinha arrastado grande parte do mundo para essa admiração dos novos tempos.

Quando já estava famoso em diversas regiões pela novidade dos milagres, acorrendo de toda parte pessoas que se alegravam por ter sido liberadas de males por seu benefício, o Senhor Papa Gregório, estando em Perúsia com todos os cardeais e outros prelados das igrejas, começou a tratar de sua canonização. Todos concordaram, demonstrando ser do mesmo parecer. Leram e aprovaram os milagres que o Senhor operou por intermédio de seu servo, e exaltaram a vida e o comportamento do bem-aventurado pai com os maiores elogios.

Foram convocados em primeiro lugar, para tão grande festa, os príncipes da terra, e toda a multidão de prelados, com um povo inumerável e, no dia marcado, entraram com o Santo Papa na cidade de Assis, para aí celebrar a canonização do santo, para sua maior glorificação.

Chegando todos ao lugar preparado para tão solene convênio, pregou em primeiro lugar a todo o povo o Papa Gregório, e anunciou as grandezas de Deus com doce afeto. Louvou também o santo pai Francisco em nobilíssimo sermão e, proclamando a pureza de sua vida, banhou-se em lágrimas.

Portanto, terminado o sermão, estendendo as mãos para o céu, o Papa Gregório clamou em voz alta e sonora...

ORAÇÃO DOS COMPANHEIROS DO SANTO

CAPITULO 167

221. Aqui estão, bem-aventurado pai nosso, os esforços da simplicidade com que procuramos louvar de alguma maneira teus feitos magníficos, e contar pelo menos um pouco de tuas inumeráveis virtudes de santidade, para tua glória. Temos consciência de que nossas palavras tiraram muito do esplendor de teus feios, pois se demonstraram incapazes de manifestar tão grande perfeição. Pedimos, a ti e aos leitores, que pensem tanto em nosso afeto quanto em nosso esforço, alegrando-se porque as alturas de tua santidade superaram nossa pena humana.

Quem poderia, ó egrégio entre os santos, conceber em si mesmo o ardor de teu espírito ou imprimi-lo nos outros? Quem poderia ter os afetos inefáveis que de ti fluíam constantemente para Deus? Mas escrevemos estas coisas deleitados em tua doce lembrança, que procuraremos transmitir aos outros enquanto vivermos, mesmo que seja balbuciando.

Tu, que passaste fome, já te alimentas com a flor do trigo; tu que eras um sedento, já bebes na torrente do prazer. Mas não acreditamos que estejas a tal ponto inebriado com a fartura da casa de Deus, que tenhas esquecido teus filhos, pois até aquele a quem bebes lembra-se de nós. Arrasta-nos, pois, para ti, pai digno, para corrermos no odor de teus perfumes, nós que, de fato, vês mornos pela falta de vontade, lânguidos de preguiça, apenas meio vivos pela negligência! O pequeno rebanho já te segue com passo inseguro. Nossos pobres olhos ofuscados não suportam os raios de tua perfeição. Renova nossos dias, como no começo, ó espelho exemplar dos perfeitos, e não permitas que tenham vida diferente da tua os que são conformes a ti pela profissão!

222. Pedimos agora humildemente, diante da clemência da Majestade eterna, pelo servo de Cristo, nosso ministro, sucessor de tua santa humildade, êmulo verdadeiro da pobreza, que tem o solícito cuidado de tuas ovelhas com doce afeto por amor do teu Cristo. Pedimos, ó santo, que o ajudes e ampares, para que siga sempre os teus passos e consiga para sempre o louvor e a glória que já conquistaste.

223. Também suplicamos com todo afeto do coração, pai bondosíssimo, por aquele teu filho que escreveu com carinho os teus louvores, já uma vez no passado e também agora. Conosco ele te oferece e dedica este opúsculo que coligiu com todo o seu esforço, mesmo que não seja digno por seus méritos. Digna-te conservá-lo e livrá-lo de todo mal, fazendo crescer seus santos merecimentos e agregando-o para sempre ao consórcio dos santos por tuas preces.

224. Lembra-te, pai, de todos os teus filhos, pois tu que és santo sabes quanto andam afastados de teus passos, no meio de intrincados perigos. Dá forças para que possam resistir. Purifica-os para que resplandeçam. Alegra-os para que sejam felizes. Pede que seja infundido sobre eles o espírito da graça e da oração, para terem a verdadeira humildade que tiveste, para observarem a pobreza que tiveste, para merecerem o amor com que sempre amaste o Cristo crucificado. Que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

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