quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Compilação de Assis

ou  “Legenda Perusina” ou “Legenda de Perusa”.

[1]

Por isso declarou que raramente se devia dar preceitos por obediência; e que não se devia lançar logo no começo o dardo, que devia ser o extremo. Dizia: "Não se deve pôr logo a mão na espada". Mas achava que aquele que não se apressava a obedecer o preceito da obediência não temia a Deus nem respeitava o homem. Não há nada mais verdadeiro do que essas coisas. Pois que é a autoridade para mandar em quem manda temerariamente se não uma espada na mão] de um furioso? E que há de mais desesperado que um religioso que despreza a obediência?

[2]

São Francisco dizia: "Tempo virá em que esta Religião amada por Deus vai ser difamada pelos maus exemplos, a ponto de ficar com vergonha de sair em público. Mas os que vierem nesse tempo para receber a ordem serão conduzidos unicamente pela ação do Espírito Santo e carne e sangue não lhes causarão mancha alguma: e serão verdadeiramente abençoados por Deus. E mesmo que não houvesse neles obras meritórias, pelo resfriamento da caridade, que faz os santos agirem com fervor, sobrevirão para eles tentações imensas; e os que nesse tempo se demonstrarem comprovados serão melhores do que seus predecessores. Mas ai daqueles que, aplaudindo-se só pela aparência de comportamento religioso, vão amolecer no ócio e não vão resistir constantemente às tentações que são permitidas para a provação dos eleitos; pois só os que forem provados receberão a coroa da vida: eles serão exercitados nesse meio tempo pela malícia dos réprobos.

[3]

Disse também: "Roguei ao Senhor que se dignasse mostrar-me quando sou seu servo e quando não sou. Pois não quero ser outra coisa, dizia, senão um servor seu. Mas então o próprio Senhor benigníssimo dignou-se responder-me: Saibas que és meu servo de verdade quando pensas, falas e pões em prática coisas santas. Foi por isso que vos chamei, irmãos, pois quero ficar com vergonha diante de vós se alguma vez não fizer nenhuma dessas três coisas".

[4]

Um dia, quando o bem-aventurado Francisco estava doente de cama no palácio do bispado de Assis, um frade espiritual e santo homem disse-lhe, brincando e rindo: ”Por quanto vendes todos os teus trapos ao Senhor? Muitos baldaquins e panos de seda vão ser colocados e vão cobrir esse teu corpo, que agora está vestido de saco”. Pois nesse tempo São Francisco, por causa da doença, tinha um gorro de pele, que estava coberto de saco, como a sua roupa de saco. O bem-aventurado Francisco respondeu - não ele mas o Espírito Santo por ele - dizendo com grande fervor de espírito e alegria: “Tu dizes a verdade, porque vai ser assim mesmo”.

[5]

Vendo o bem-aventurado Francisco que, enquanto estava naquele palácio, sua enfermidade se agravava cada dia mais, fez com que o levassem de maca para a igreja de Santa Maria da Porciúncula, pois não podia andar a cavalo pela gravidade de sua doença.

Quando os que o levavam passaram pela rua perto do hospital, disse-lhes que pusessem a maca no chão. E como quase não podia enxergar por causa da longa e grande enfermidade dos olhos, mandou virar a maca, para ficar com o rosto voltado para a cidade de Assis. Levantando-se um pouco em seu leito, abençoou a cidade de Assis dizendo: “Senhor, como creio que a cidade, no tempo antigo, foi lugar e morada de homens maus e iníquos, de má fama em todas as províncias, também vejo, por tua abundante misericórdia que, no tempo que te foi agradável, manifestaste nela a multidão das tuas bondades, para que fosse lugar e morada de pessoas que te conhecessem e dessem glória ao teu nome, com o odor da boa vida, da doutrina e da boa fama para todo o povo cristão. Por isso eu te rogo, Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias, que não consideres a nossa ingratidão mas te lembres sempre da tua abundante misericórdia, que demonstraste para com ela, para que seja sempre o lugar e morada de pessoas que te conheçam e glorifiquem teu nome bendito e glorioso pelos séculos dos séculos. Amém”. E, tendo dito isso, foi levado para Santa Maria da Porciúncula.

[6]

O bem-aventurado Francisco, desde o tempo de sua conversão até o dia de sua morte sempre foi solícito, na saúde e na doença, por conhecer e seguir a vontade do Senhor.

[7]

Um dia um frade disse ao bem-aventurado Francisco: “Pai, tua vida e comportamento foram e são luz e espelho não só para teus frades mas para toda a Igreja de Deus, e o mesmo vai acontecer com tua morte; pois, embora para os teus frades e para muitos outros tua morte seja uma grande dor e tristeza, para ti será a maior consolação e um gozo infinito, porque passarás de muito trabalho para o maior descanso e de muitas dores e tentações para um gozo infinito, da tua maior pobreza, que sempre amaste e suportaste voluntariamente desde o começo de tua conversão até o dia de tua morte, para as maiores, verdadeiras e infinitas riqeuzas, da morte temporal para a vida sempiterna, onde verás sempre face as face o Senhor teu Deus (cfr. Gn 32,30; 1Cor 13,12), que contemplaste neste século com tanto fervor, desejo e amor”.

Dito isso, falou-lhe claramente: “Pai, saibas na verdade que, se Deus não mandar do céu o seu remédio para o teu corpo, tua doença é incurável e deves viver pouco, como também os médicos já disseram. Mas eu disse isso para confortar o teu espírito, para te alegrares sempre no Senhor interior e exteriormente, e principalmente para que teus frades e outros, que vêm te visitar te encontrem alegre no Senhor (cfr. Fp 4,4), porque sabem e crêem que vais morrer logo, que para eles que estão vendo isso e para os outros que ouvirem depois de tua morte, fique a tua morte como lembrança, como foram para todos tua vida e comportamento”. O bem-aventurado Francisco, mesmo sofrendo muito pelas enfermidades, louvou ao Senhor com grande fervor do espírito e alegria do corpo e da alma, e lhe disse: “Então, se devo morrer logo, chamai-me Frei Ângelo e Frei Leão, para que me cantem sobre a irmã morte”.

 Esses frades se apresentaram diante dele e cantaram com muitas lágrimas o Cântico de Frei Sol e das outras criaturas ao Senhor, que o próprio santo fizera em sua doença para louvar o Senhor e para consolar sua alma e a dos outros, no qual canto colocou antes do último um verso sobre a irmã morte, a saber: Louvado sejas meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal da qual nenhum homem vivo pode escapar. Ai de quem morrer em pecado mortal. Felizes os que ela encontrar em tuas santíssimas vontades, porque a morte segunda não lhes fará mal.

[8]

Um dia o bem-aventurado Francisco chamou seus companheiros: “Vós sabeis como dona Jacoba de Settesoli foi e é para mim e para nossa Religião muito fiel e devota; por isso eu acho que, se a fizerdes saber meu estado, vai ter isso como uma grande graça e consolação; mas de maneira especial fazei saber que vos mande fazenda para uma túnica de pano religioso, que tenha côr de cinza, e é como o pano feito pelos monges cistercienses nos países ultramontanos; também mande daquela comida que fez para mim muitas vezes quando estive em Roma”. A tal comida é chamada pelos romanos de “mortariolum” (mostaciolo), feita de amêndoas e açucar ou mel e outras coisas.

Essa mulher espiritual era uma santa viúva dedicada a Deus, das mais nobres e ricas de toda Roma, que tinha recebido tamanha graça de Deus pelos méritos e pela pregação do bem-aventurado Francisco, que parecia uma outra Madalena, sempre cheia de lágrimas e de devoção por amor de Deus.

Tendo escrito a carta, como dissera o santo pai, um frade estava procurando encontrar um frade que levasse a carta, e de repente bateram à porta; e quando um frade abriu a porta, viu dona Jacoba, que viera depressa de Roma para visitar o bem-aventurado Francisco, e imediatamente o frade foi anunciar ao bem-aventurado Francisco, com a maior alegria, como dona Jacoba com seu filho e muitos outros viera para vistá-lo, e disse: “Que fazemos, pai? Deixamos que entre e venha a ti”? Pois por vontade do bem-aventurado Francisco tinha sido estabelecido naquele lugar, no tempo antigo, que nenhuma mulher devia entrar no recinto, pela honestidade e devoção daquele lugar. E o bem-aventurado Francisco disse: “Não devemos observar esse estatuto com essa senhora, que foi trazida até aqui lá de longe por tão grande fé e devoção”. E assim ela entrou onde estava o bem-aventurado Francisco, derramando diante dele muitas lágrimas. E foi admirável que ela trouxe consigo o pano mortuário, isto é, de côr cinzenta, para a túnica, e tudo que estava escrito na carta que era para mandar. Os frades ficaram muito admirados com isso, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco.

A referida dona Jacoba até disse aos frades: “Irmãos, foi-me dito em espírito, quando estava rezando: Vá visitar teu pai, o bem-aventurado Francisco, depressa, sem tardar, porque se demorares muito não vais encontrá-lo vivo. Além disso, levarás tal pano para sua túncia e tais coisas, para que lhes faças uma comida; do mesmo jeito, leve também bastante cera para as velas e também incenso”.

O bem-aventurado Francisco não tinha mandado falar de incenso na carta; mas o Senhor quis inspirar aquela senhora para mercê e consolação de sua alma e para que nós conheçamos melhor como foi grande a santidade deste santo, que o Pai celeste quis honrar o pobre com tanta honra nos dias de sua morte. Aquele que inspirou os reis para irem com presentes para honrar seu dileto Filho nos dias de seu nascimento e de sua pobreza, quis inspirar aquela senhora nobre, em lugar afastado, para ir com presentes para venerar e honrar o glorioso e santo corpo de seu santo servo, que com tanto amor e fervor amou e seguiu a pobreza de seu dileto Filho na vida e na morte.

A senhora reparou um dia para o santo pai aquela comida que ele desejava comer; mas ele só comeu um pouquinho, porque a cada dia seu corpo estava definhando pela grave doença e estava ficando mais perto da morte. Da mesma forma, mandou fazer muitas velas, para ficarem ardendo diante de seu santo corpo depois de sua migração; e, com o pano que ela tinha trazido, os frades fizeram-lhe uma túnica, com a qual foi sepultado. E ele mesmo mandou que os frades costurassem saco sobre ela como sinal e exemplo da santíssima humildade e pobreza. E foi feito como agradou a Deus, pois naquela semana em que veio dona Jacoba, o bem-aventurado Francisco migrou para o Senhor.

[9]

O bem-aventurado Francisco, desde o começo de sua conversão, com a colaboração do Senhor, como um sábio colocou o fundamento de si mesmo e de sua casa sobre a pedra firme (cfr. Mt 7,24), isto é, sobre a máxima humildade e pobreza do Filho de Deus, chamando-a de Religião dos Frades Menores.

Sobre a máxima humildade: por isso, desde o começo da Religião, depois que os frades começaram a se multiplicar, quis que os frades permanecessem nos hospitais dos leprosos para servi-los; por isso, naquele tempo em que vinham para a Religião pobres e plebeus, entre outras coisas que lhes eram propostas dizia-se que tinham que servir aos leprosos e ficar em suas casas.

Sobre a máxima pobreza: como se diz na Regra, que os frades como forasteiros e peregrinos (cfr. 1Pd 2,11) fiquem nas casas em que moram, não queiram Ter nada embaixo do céu, a não ser a santa pobreza, pela qual são alimentados pelo Senhor neste século com alimentos corporais e com as virtudes, e no futuro vão conseguir a herança celeste.

Fundamentou a si mesmo sobre a máxima pobreza e humildade: porque, sendo um grande prelado na Igreja de Deus, quis e escolheu ser abjeto não só na Igreja de Deus mas também entre os seus irmãos.

[10]

Certa vez, quando estava pregando ao povo em Terni, na praça na frente do palácio do bispo, estava assistindo a esse sermão o bispo da cidade, homem discreto e espiritual. Daí, quando acabou a pregação, o bispo levantou-se e, entre outras palavras de Deus, também disse: “O Senhor, desde o começo, quando plantou e edificou a sua Igreja (cfr. Mt 16,18) sempre a fez brilhar por santos homens, que a cultivassem pela palavra e pelo exemplo. Mas agora, nesta última hora (cfr. 1Jo 2,18) ilustrou-a com este homem pobrezinho, desprezado e iletrado - apontando com o dedo o bem-aventurado Francisco para todo o povo -e por causa disso tendes que amar e honrar o Senhor, e tomar cuidado com os pecados, pois não fez assim com todas as nações (cfr. Sl 149,20)”.

Quando acabou a pregação, descendo do lugar onde tinha falado, [o senhor] bispo e o bem-aventurado Francisco entraram na igreja do palácio episcopal; então o bem-aventurado Francisco inclinou-se diante do senhor bispo e se prostrou aos seus pés (cfr. Mr 5,22) dizendo: “Na verdade eu te digo, senhor bispo, que homem algum jamais me deu tanto honra neste século quanto me fizeste hoje, porque as outras pessoas dizem: esse homem é santo! atribuindo a glória e a santidade à criatura e não ao Criador. Mas tu separaste o precioso do vil (cfr. Jr 15,19), como um homem discreto”.

Pois, muitas vezes, quando o bem-aventurado Francisco era honrado e diziam que ele era um santo homem, respondia essas palavras dizendo: “Ainda não estou seguro se não vou Ter filhos e filhas”. E dizia: “Pois, em qualquer hora que Deus quisesse me tirar o seu tesouro, que me emprestou, que é que me sobraria a não ser o corpo e alma, que também os infiéis possuem? Até devo crer que, se o Senhor desse a um ladrão e também a um homem infiel tantos bens quantos me deu, eles eriam mais fiéis ao Senhor”. E disse: “Como num quadro do Senhor e da bem-aventurada Virgem honram-se Deus e a bem-aventurada Virgem, e nos lembramos de Deus e da bem-aventurada Virgem: a tábua e a pintura não se atribuem nada, porque são apenas tábua e pintura, assim o servo de Deus é uma espécie de pintura, isto é, uma criatura de Deus, em que Deus é honrado por causa de um seu benefício, mas ele não se deve arrogar nada, como a tábua e pintura, mas só a Deus se deve dar honra e glória (cfr. 1Tm 1,17); a si mesmo vergonha e tribulação, enquanto vive, porque sempre, enquanto vive, a carne é contrária aos benefícios de Deus

[11]

Entre os seus frades, Francisco quis ser humilde e, para conservar a maior humildade, poucos anos depois de sua conversão, em um capítulo em Santa Maria da Porciúncula, resignou ao ofício da prelatura diante de todos os frades, dizendo: “Agora estou morto para vós; mas aqui está Frei Pedro Catani, a quem eu e vós vamos obedecer”. Então todos os frades começaram a deplorar em alta voz e a chorar fortemente. E, inclinando-se diante de Frei Pedro, o bem-aventurado Francisco prometeu obediência e reverência; e desde então até sua morte permaneceu como um súdito, como um dos outros frades. Até mais: não só quis estar submisso ao ministro geral e aos ministros provinciais mas também, em qualquer província em que estivesse morando ou tivesse ido pregar, obedecia ao ministro daquela província, mas também, para maior perfeição e humildade, muito tempo antes de sua morte, disse uma vez ao ministro geral: “Quero que confies tua representação junto a mim a um de meus companheiros, a quem obecerei no teu lugar; porque, por causa do bom exemplo e da virtude da obediência na vida e na morte, quero que permaneças sempre comigo”.

E desde então até a morte sempre teve um de seus companheiros como guardião, a quem obedecia no lugar do ministro geral. Uma vez, até disse aos companheiros: “Entre outras graças, o Senhor me deu esta: que eu obedecesse de tal modo ao noviço, que tivesse entrado hoje na Religião, como àquele que fosse o primeiro e mais antigo na vida e na Religião dos frades. Porque o súdito deve considerar em seu prelado não o homem mas Deus, por cujo amor se fez submisso”. Disse igualmente: “Não há nenhum prelado em todo o mundo que seja tão temido por seus súditos e frades quanto o Senhor me faria ser temido por meus frades, se eu quisesse; mas o próprio Altíssimo me deu esta graça, que eu quero ficar contente com todos, como o menor na Religião”.

E isso nós vimos com nossos olhos (cfr. 1Jo 1,1) muitas vezes, nós que vivemos com ele (cfr. 2Pd 1,18), como ele mesmo testemunha; porque muitas vezes, como alguns frades não o satisfizessem em suas necessidades ou lhe dissessem alguma palavra, das que costumam levar as pessoas ao escândalo, ia logo rezar e quando voltava não queria lembrar-se, dizendo: Tal frade não me satisfez, ou: Disse-me tal palavra. Quanto mais se aproximava da morte, mais era solícito em toda perfeição por considerar como poderia viver e morrer em toda humildade e pobreza.



[12]

No dia em que dona Jacoba preparou aquele prato, o bem-aventurado Francisco recordou-se como um pai de Frei Bernardo, dizendo: “Este prato é bom para Frei Bernardo”. Chamando um de seus companheiros, disse: “Vá dizer a Frei Bernardo para vir logo aqui”.

O frade foi imediatamente e o levou ao bem-aventurado Francisco. Sentando-se na cama em que estava deitado o bem-aventurado Francisco, Frei Bernardo disse: “Pai, peço que me abençoes e me mostres o teu afeto, porque se me mostrares carinho por paternal afeto, creio que o próprio Deus e os outros frades da Religião vão me amar mais”.

O bem-aventurado Francisco não podia enxergá-lo, porque já fazia muitos dias que tinha perdido a luz dos olhos; mas, estendendo a mão direita, colocou-a sobre a cabeça (cfr. Gn 48,14) de Frei Egídio, que foi o tercero dos primeiros frades e estava sentado perto de Frei Bernardo, achando que a estava colocando sobre a cabeça de Frei Bernardo, e tocando a cabeça de Frei Egídio, como um cego, logo percebeu pelo Espírito Santo, dizendo: “Esta não é a cabeça de meu Frei Bernardo”.

Frei Bernardo logo foi para mais perto dele. O bem-aventurado Francisco, pondo a mão sobre sua cabeça, abençoou-o. Além disso, disse a um de seus companheiros: “Escreve, como te digo: O primeiro frade que o Senhor me deu foi Frei Bernardo, e também o primeiro que começou e terminou perfeitíssimamente a perfeição do santo Evangelho, distribuindo todos os seus bens para os pobres; por isso, e por muitas outras prerrogativas, tenho que amá-lo mais do que qualquer outro frade da Religião. Então, quero e mando, quanto posso, que quem quer que for o ministro geral o honre e ame como a mim mesmo, e que também os ministros provinciais e os frades de toda a Religião o tenham como se fosse eu”. Frei Bernardo ficou muito consolado com isso, e os frades que o viram.

Pois certa vez, considerando o bem-aventurado Francisco a enorme perfeição de Frei Bernardo, profetizou sobre ele diante de alguns frades, dizendo: “Eu vos digo que a Frei Bernardo, para prová-lo, foram dados alguns dos demônios maiores e mais espertos, que vão atacá-lo com muitas tribulações e tentações, mas o Senhor misericordioso, perto do seu fim, vai livrá-lo de toda tribulação e tentação interior e exterior, e vai colocar seu espírito e seu corpo em tão grande paz, sossego e consolação que todos os frades, que virem e ouvirem, vão ficar muito admirados com isso e vão achar que é um grande milagre; e nessa paz, sossego e consolação interior e exterior, vai passar deste século para o Senhor”.

Os frades que ouviram isso do bem-aventurado Francisco ficaram muito admirados, porque foi verdade à letra, ponto por ponto, o que predissera sobre ele pelo Espírito Santo. Pois Frei Bernardo, na doença da morte, estava em tamanha paz e sossego do espírito que não queria ficar deitado; e, se ficava deitado, ficava meio sentado, para que nem a menor fumaça dos humores, subindo à sua cabeça levassem-no à imaginação e ao sonho a não ser ao que dizia respeito ao que pensava de Deus; E se isso acontecia alguma vez, levantava-se na mesma hora e se sacudia dizendo: “Que foi isso? Por que pensei assim?”. Até quando levava de boa vontade água de rosas ao nariz para seu conforto, quando chegou mais perto da morte, não queria pôr por causa da contínua meditação de Deus. Por isso, dizia quem a oferecia: “Não me atrapalhes”.

E para isso, para que pudesse morrer mais livre, pacificamente em em sossego, desapropriou-se dos ofícios do corpo nas mãos de um frade, que era médico e o ajudava, dizendo: “Não quero ter nenhuma preocupação de comer ou beber, mas deixo por tua conta; se me deres, receberei; se não, não”. Mas desde que começou a ficar doente quis sempre ter junto de si um frade sacerdote até a hora da morte. E quando lhe vinha alguma coisa à mente, de que a consciência o repreendesse, logo se confessava e dizia a sua culpa.

Depois da morte ficou claro, com a carne mole, e parecia estar rindo; por isso parecia que estava mais bonito depois da morte do que antes; e os que olhavam para ele gostavam mais de vê-lo do que quando estava vivo, porque parecia um santo sorrindo.



[13]

Naquela semana em que o bem-aventurado Franciscou migrou, dona Clara, primeira muda da Ordem das Irmãs, abadessa das irmãs pobres do mosteiro de São Damião de Assis, emuladora de São Francisco para observar sempre a pobreza do Filho de Deus, como estava então muito doente e temia morrer antes do bem-aventurado Francisco, chorava amargamente e não podia ser consolada, porque não podia ver antes de sua morte o seu único pai depois de Deus, isto é, o bem-aventurado Francisco, consolador de sua vida interior e exterior e também seu primeiro fundador na graça de Deus.

E fez o bem-aventurado Francisco saber disso por um frade. Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco, como amava a ela e a suas irmãs com afeto paternal por causa de seu santo comportamento, movido pela piedade, principalmente porque ela foi convertida para o Senhor por seus conselhos poucos anos depois que tinha começado a ter irmãos, pela cooperação do Senhor; e sua conversão foi de grande edificação não só para a Religião dos frades mas para toda a Igreja de Deus.

Mas o bem-aventurado Francisco, considerando que o que ela desejava, isto é, vê-lo, então não era possível, porque os dois estavam gravemente enfermos, para consolá-la escreveu-lhe a sua bênção por uma carta, e também absolveu-a de todo defeito, se tivesse algum, em suas ordens e vontades como também nas ordens e vontades de Deus. Além disso, para que deixasse toda tristeza e fosse consolada no Senhor, não ele mas o Espírito de Deus falou nele estas palavras, dizendo ao mesmo frade que ela enviara: “Vá e leve esta carta para dona Clara, e lhe dirás que deixe toda dor e tristeza, porque agora não pode me ver; mas sabia em verdade que, antes de sua morte, tanto ela como suas irmãs me verão e terão a maior consolação”.

Mas aconteceu que, como pouco depois o bem-aventurado Francisco migrou de noite, quando chegou a manhã todo o povo de homens e mulheres da cidade de Assis, com todo o clero, tomando o santo corpo do lugar onde tinha morrido, com hinos de louvor pegaram todos ramos de árvores por vontade do Senhor para levá-lo a São Damião, para que se cumprisse a palavra que o Senhor tinha dito em seu santo para consolar suas filhas e servas.

Removendo a grade de ferro da janela pela qual as servas de Cristo costumam comungar e ouvir às vezes a palavra de Deus, os frades tiraram o santo corpo da maca e o seguraram em seus braços junto da janela por uma boa hora, até que dona Clara e suas irmãs tiveram dele a maior consolação, mesmo estando cheias de muitas lágrimas e aflitas de dores, porque depois de Deus ele era sua única consolação neste século.



[14]

Na tarde do sábado depois das Vésperas, antes da noite em que o bem-aventurado Francisco migrou para o Senhor, muitos pássaros, que são chamados cotovias, ficaram voando não muito alto acima do telhado da casa em que jazia o bem-aventurado Francisco, dando voltas em círculo e cantando.

Mas nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco, que escrevemos isto sobre ele, damos testemunho de que muitas vezes o ouvimos dizer: “Se eu falar com o imperador, vou suplicar que, pelo amor de Deus e pela intervenção de minhas preces, faça um decreto por escrito, para que ninguém capture as irmãs cotovias nem lhes faça nada de mau. De maneira semelhante, que todos os “podestás” das cidades e os senhores dos castelos e das vilas, no Natal do Senhor, todos os anos, tenham que levar as pessoas a jogar trigo e outros grãos pelas estradas fora das cidades e dos castelos, para que principalmente as irmãs cotovias e outras aves tenham o que comer num dia de tão grande solenidade. E que por reverência ao Filho de Deus, que sua Virgem Mãe reclinou no presépio entre o boi e o burro nessa noite, toda pessoa, na mesma noite tenha que dar bastante ração para os irmãos bois e burros; de maneira semelhante, que no Natal do Senhor, todos os pobres tenham que ser saciados pelos ricos”.

Pois o bem-aventurado Francisco tinha mais reverência pelo Natal do Senhor que por nenhuma outra solenidade do Senhor, porque, embora em suas outras solenidades o Senhor tenha atuado pela nossa salvação, foi desde que nasceu por nós - como dizia o bem-aventurado Francisco - que teve a oportunidade de nos salvar. Por isso queria que nesse dia todo cristão exultasse no Senhor e por seu amor, pois se entregou por nós, e todas as pessoas fossem generosas com alegria não só com os pobres mas também com os animais e as aves. Sobre a cotovia, o bem-aventurado Francisco dizia: “A irmã cotovia tem um capuz como os religiosos, e é uma ave humilde, que faz de boa vontade o seu caminho para encontrar alguma comida, e mesmo que a encontre no meio do esterco dos animais, tira-a e come. Voando louva o Senhor, como os bons religiosos desprezando as coisas da terra vivem sempre nos céus. Além disso, sua roupa, isto é, suas penas, parece terra, dando exemplo aos religiosos, que não devem usar roupas delicadas e coloridas, mas parecida com a terra, como se fosse morta”. Era por isso, porque o bem-aventurado Francisco considerava essas coisas nas irmãs cotovias, que as amava muito e gostava de vê-las.



[15]

O bem-aventurado Francisco dizia freqüentemente estas coisas aos frades: “Nunca fui ladrão de esmolas, que são a herança dos pobres, sempre recebi menos do que me cabia, para que os outros pobres não fossem defraudados em sua sorte, porque fazer o contrário seria furto”.



[16]

Quando os frades ministros lhe sugeriram que concedesse alguma coisa, pelo menos em comum, para que tamanha multidão tivesse ao que recorrer, São Francisco invocou Cristo na oração e o consultou a respeito. Ele respondeu imediatamente que tirasse todas as coisas, tanto em particular como em comum, dizendo esta é a sua família, que estava sempre pronto para prove-la, por mais que crescesse, e que sempre a ajudaria, enquanto esperasse nele.



[17]

Quando o bem-aventurado Francisco estava em certo monte com Frei Leão de Assis e Frei Bonício de Bolonha para fazer a Regra - porque a primeira, que tinha mandado escrever ouvindo Cristo - muitos ministros se reuniram com Frei Elias, que era o vigário do bem-aventurado Francisco, e lhe disseram: “Ouvimos que esse Frei Francisco está fazendo uma regra nova; tememos que a faça tão áspera que não a possamos observar. Queremos que te apresentes a ele e lhe digas que nós não queremos ser obrigados a essa Regra; faça-a para ele, não para nós”.

Frei Elias respondeu-lhes que não queria ir, pois temia a repreensão de Frei Francisco. Como eles insistiam para que fosse, disse que não iria sem eles. Então, foram todos. Quando Frei Elias estava com esses ministros perto do lugar onde estava o bem-aventurado Francisco, chamou-o; quando o bem-aventurado Francisco respondeu e viu os referidos ministros, disse: “O que querem esses frades?” Frei Elias respondeu: “Estes são ministros, que, ouvindo dizer que fazes uma nova Regra, e temendo que a faças áspera demais, dizem e protestam que não querem ser obrigados a ela. Que a faças para ti, e não para eles”.

Então o bem-aventurado Francisco voltou sua face para o céu e assim falou com Cristo: “Senhor, eu não disse que não creriam em ti?” Então se ouviu no ar a voz de Cristo que respondia: “Francisco, não há nada de teu na Regra; tudo que está lá é meu”. E quero que a regra seja observada à letra, à letra, à letra, e sem glosa, sem glosa, sem glosa”. E acrescentou: “Eu sei do que é capaz a fraqueza humana e quanto quero ajudá-los. Os que não quiserem observá-la, que saiam da Ordem”. Então o bem-aventurado Francisco voltou-se para aqueles frades e lhes disse: “Ouvistes? Ouvistes? Querem que os faça ouvir outra vez?”. Então aqueles ministros, confundidos e reconhecendo sua culpa, foram embora.



[18]

Quando o bem-aventurado Francisco estava no capítulo geral em Santa Maria dos Anjos, que foi chamado capítulo das esteiras, e estavam presentes cinco mil frades, muitos irmãos sábios e doutos por sua ciência disseram ao senhor Cardeal, que depois foi Papa Gregório IX, que estava presente no capítulo, que convencesse o bem-aventurado Francisco, a seguir os conselhos dos referidos frades sábios e deixasse que eles o guiassem de vez em quando, alegando a Regra do bem-aventurado Bento, do bem-aventurado Agostinho e do bem-aventurado Bernardo, que ensinam assim e assim aviver ordenadamente.

Então o bem-aventurado Francisco, ouvindo a palavra do Cardeal sobre isso, tomou-o pela mão e o levou onde os frades estavam reunidos em capítulo e assim falou aos irmãos: “Irmãos meus, irmãos meus, Deus me chamou pelo caminho da humildade e me mostrou o caminho da simplicidade: não quero que me falem de nenhuma Regra, nem de Santo Agostinho, nem de São Bernardo, nem de São Bento. O senhor me disse que queria que eu fosse um “moço doido” no mundo; e Deus não quis conduzir-nos por outro caminho mas por esta ciência; mas por vossa ciência e sabedoria Deus vai confundir-vos. Mas eu confio nos esbirros do Senhor, que vai punir-vos através deles, e ainda voltareis ao vosso estado, ao vosso vitupério, queirais ou não”. Então o Cardeal ficou estupefato e não respondeu nada. Todos os frades ficaram com medo.



[19]

Embora o bem-aventurado Francisco quisesse que seus filhos vivessem em paz com todas as pessoas e que a todos se apresentassem como pequeninos, ensinou pela palavra e mostrou pelo exemplo que deviam ter a maior humildade diante dos clérigos. Pois dizia: “Fomos enviados para ajudar os clérigos para a salvação das almas, para que o que houver de menos neles seja suprido por nós. Cada um recebe o prêmio não segundo a autoridade mas segundo o trabalho.

Sabei, irmãos, que é agradabilíssimo para Deus o lucro ou o fruto das almas, e que se pode consegui-lo mais com a paz do que com a discórdia dos clérigos. Se eles estiverem impedindo a salvação dos povos, a vingança cabe a Deus e Ele há de retribuí-los no seu tempo. Por isso, sede submissos aos prelados, para não suscitar ciúmes no que depender de vós. Se fordes filhos da paz, lucrareis para Deus o clero e o povo, o que Deus acha mais aceitável do que lucrar só o povo, escandalizando o clero. Encobri, disse, as suas quedas, supri suas múltiplas deficiências; e quando fizerdes essas coisas, sede mais humildes”.



[20]

Uma vez alguns frades disseram ao bem-aventurado Francisco: “Pai, será que não vês que às vezes os bispos não nos permitem pregar, e nos fazem ficar muitos dias ociosos em algum lugar, antes de podermos pregar ao povo? Seria melhor que pedisses que os frades tivessem um privilégio do senhor papa, e fosses a salvação das almas”.

Respondeu-lhes com uma grande repreensão, dizendo: “Vós, Frades menores, não conheceis a vontade de Deus, e não me permitis converter todo o mundo, como Deus quer. Porque eu quero converter primeiro os prelados, pela humildade e a reverência, e quando eles virem vossa vida santa e a reverência que tendes para com eles, vão rogar eles mesmos que vós pregueis e convertais o povo. E vão convoca-lo para vós melhor do que os privilégios que quereis, que vos levarão à soberba. Se fordes alheios a toda avareza e inculcardes ao povo para que entreguem às igrejas os seus direitos, eles mesmos vão rogar que escuteis a confissão do seu povo; ainda que não devais pensar nisso, porque, se se converterem, vão saber encontrar confessores. Eu quero para mim este privilégio do Senhor: não ter nenhum privilégio que venha dos homens, a não ser prestar reverência a todos e pela obediência da santa Regra converter a todos mais pelo exemplo do que pela palavra”.



[21]

Certa vez, nosso Senhor Jesus Cristo disse a Frei Leão, companheiro do bem-aventurado Francisco: “Eu me lamento dos frades”. Frei Leão respondeu: “Por que, Senhor?”. O Senhor disse: “Por três coisas: porque não reconhecem meus benefícios que, como sabes, lhes dou abundantemente todos os dias, porque não semeiam nem colhem. E porque ficam o dia inteiro murmurando e sem fazer nada; e muitas vezes provocam uns aos outros para a ira, não se reconciliam e não perdoam a injúria que receberam”.



[22]

Uma noite, o bem-aventurado Francisco foi tão afligido pelas dores das doenças que quase não pôde descansar nem dormir naquela noite. De manhã, como a dor tivesse diminuído um pouquinho, mandou chamar todos os frades que havia no lugar e, quando se sentaram à sua frente, olhou para eles considerando-os representantes de todos os frades. E começando por um frade, abençoou a todos, pondo a mão direita na cabeça de cada um; abençoou a todos os que estavam na Religião e deveriam vir até o fim do mundo; e parece que se compadecia de si mesmo porque não tinha podido ver seus filhos e frades antes de sua morte.

Depois mandou que trouxessem pães para diante dele e os abençôou; e como não podia parti-los por causa da enfermidade, fez que um frade os partisse em muitos pedacinhos. Tomando-os, deu um pedacinho a cada um dos frades, mandando que o comesse inteiro. Pois, como o Senhor quis comer com os apóstolos na quinta feira, antes de sua morte, assim de algum modo pareceu àqueles frades que o bem-aventurado Francisco quis abençoa-los antes de sua morte e, neles, a todos os outros frades, e que comessem aquele pão abençoado como se de alguma forma estivessem comendo com os outros seus frades.

 Creio que podemos ver isso claramente, porque, como não era uma quinta-feira, ele disse aos frades que achava que era uma quinta-feita. Um daqueles frades guardou um pedacinho daquele pão. E, depois da morte do bem-aventurado Francisco, alguns, que provaram dele em suas doenças, foram imediatamente libertados.



[23]

Ensinava seus frades a construir habitações pobrezinhas, de madeira e não de pedra, e lebantando essas casinhas num estilo vil. Não queria que os frades morassem em nenhum lugarzinho se não houvesse certeza do dono que retinha a propriedade. Pois sempre buscou em seus filhos a lei dos peregrinos (cfr. Ex 12,49).



[24]

Este homem não só detestava arrogância das casas como tinha horror a utensílios numerosos e muito rebuscados. Não gostava de nada que, nas mesas e nas panelas, recordasse o mundo, para que tudo cantasse a peregrinação, cantasse o exílio.



[25]

Ensinava a buscar nos livros o testemunho do Senhor e não o preço, a edificação e não a beleza. Queria ter poucos, e adequados às necessidades dos frades indigentes.



[26]

Finalmente, nos enxergões e camas sobrava uma abundante pobreza, e quem tinha alguns trapos meio conservados por cima das palhas, achava que tinha um leito de luxo.



[27]

Na verdade o amigo de Deus desprezava enormemente tudo que é do mundo, mas execrava acima de tudo o dinheiro. Por isso foi a coisa que mais desprezou desde o princípio de sua conversão, e sempre insinuou aos que o seguiam que deviam fugir dele como dia diabo. Esta era a advertência que dava aos seus: que deviam gostar de dinehiro e de esterco como se divessem o mesmo preço. Aconteceu, assim, certo dia, que um secular entrou na igreja de Santa Maria da Porciúncula para rezar e, para fazer uma oferta, colocou dinheiro junto da cruz.

Quando ele foi embora, um frade pegou simplesmente com sua mão e o jogou na janela. Chegou ao sanato o que o frade tinha feito; vendo-se descoberto, ele correu para pedir perdão, proostrou-se no chão e se submeteu ao castigo. O santo o questionou e increpou com muita dureza por ter tocado o dinheiro. Mandou que pegasse o dinheiro da janela com a própria boca e o levasse para fora da cerca do lugar para colocá-lo com a boca sobre esterco de asnos. Então o frade cumpriu a ordem com alegria e o termor encheu os corações ouvintes dos outros. Todos passaram a desprezar mais o que assim era comparado ao esterco, e cada dia eram animados por novos exemplos a desprezá-lo.



[28]

Este homem, revestido de virtude, aquecia-se mais interiormente pelo fogo divino do que por fora com uma coberta material.



[29]

Execrava os que se vestiam com roupas triplicadas e quem, fora da necessidade, usava panos macios na Ordem. Mas afirmava que a necessidade que demonstra volupptuosidade e não razão é sinal de um espírito extinto. “Quando o espírito está morno e se esfriando aos poucos na graça, faz-se necessário que a carne e o sangue busquem o que é seu. Pois, dizia, se a alma não encontrar suas delícias, que resta senão que a carne se volte para as suas? Então o apetite animal inventa algo necessário, e o sentido da carne forma a consci6encia”. E acrescentava:



[30]

“Se meu irmão tiver uma verdadeira necessidade, que sofra a falta de alguma coisa: se correr para satisfaze-la e lançá-la para longe de si, que recompensa receberá? Pois houve uma ocasião de mérito, mas ele provou cuidadosamente que não tinha gostado”. Com essas palavras e outras semelhantes, atacava os que queriam escapar das necessidades, pois não suporta-las com paciência não é outra coisa senão voltar ao Egito.

Finalmente, não queria em ocasião nenhuma que os frades tivessem mais do que duas túnicas, mas peermitia que as consertassem com remendos costurados. Mandavam que abominassem os panos rebuscados e mordia com força, diante de todos, os que faziam o contrário. E para confundi-los com seu exemplo, costurou sobre sua túnica um pedaço de saco. Mesmo na morte, pediu para ser coberto com uma túnico de saco vil. Mas permitia aos frades apertados pela doença ou outra necessidade que usassem um pano mole, por baixo, junto da carne, mas de forma que por fora fosse observada a aspereza e vileza do hábito. Pois dizia: “O rigor ainda vai ficar tão relaxado, com o domínio da tibieza, que os filhos do pobre pai também não vão se envergonhar de usar panos escarlates, mudando só a cor”.



[31]

Aconteceu em Celano, no tempo do inverno, que São Francisco tinha um pano dobrado na forma de um manto, que um amigo dos frades lhe havia emprestado. E como estava no palácio do bispo de Marsi, foi-lhe ao encontro uma velhinha pedindo esmola. Tirou na mesma hora o pano do pescoço e, embora fosse de outro, deu-o à velhinha pobre, dizendo: “Vai fazer uma túnica para você, porque está precisando bastante”. A velhinha riu espantada, não sei se de medo ou alegria, e pegou o pano de suas mãos. Correu rapidamente e passou-lhe a tesoura, com medo de que a demora trouxesse o perigo de ter que devolver. Mas quando descobriu que o pano cortado não ;ao ia bastar para a túnica, aproveitando a primeira parte da bondade, voltou ao santo mostrando a falta de pano. O santo voltou os olhos para o companheiro, que levava outro tanto de pano nas costas, e disse: “Estás ouvindo, irmão, o que essa pobrezinha está dizendo? Vamos suportar o frio por amor do Senhor. Dá o pano para a pobrezinha completar a túnica”. Ele tinha dado, o companheiro também deu, ficaram os dois despidos para que a velhinha se vestisse.



[32]

Em outra ocasião, quando voltava de Sena, encontrou um pobre e disse ao companheiro: “Temos que devolver a capa ao pobrezinho a quem pertence. Nós a recebemos emprestada até acontecer de encontrar alguém mais pobre”. O companheiro, considerando a necessidade do piedoso pai, resistia teimosamente para que não cuidasse do outro esquecendo de si mesmo. Respondeu o santo: “Não quero sere ladrão. Se não déssemos ao que tem mais necessidade, isso nos seria imputado como furto”. O outro desistiu, e ele deu a capa.



[33]

Coisa semelhante aconteceu perto da Cella de Cortona. O bem-aventurado Francisco levava uma capa nova, que os frades tinha conseguido para ele com muito esforço. Chegou ao lugar um pobre, chorando a mulher que tinha morrido e a família pobrezinha que tinha sobrado. O santo disse-lhe: “Eu te dou esta capa por amor do Filho de deus, contanto que não a d6es a ninguém se não te comprar pagando bem”. Os frades acorreram depressa para pegarem a capa e impedirem que fosse doada. Mas o pobre, criando coragem pela cara do santo pai, defendia-a como sua com unhas e dentes. Por fim, os frades recompraram a capa e o pobre foi embora recebendo o preço.



[34]

Certa vez, em Colle, no condado de Perusa, São Francisco encontrou um pobrezinho que já tinha conhecido no século. Disse-lhe: “Irmão, como vais?”. Mas ele se animou e começou a amontoar maldições sobre o seu patrão, que tirara tudo que era dele: “Graças ao meu patrão, que Deus Onipotente o amaldiçoe, só estou passando mal. Com mais pena de sua alma que de seu corpo, pois persistia num ódio mortal, disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Irmão, perdoa o teu patrão por amor de Deus, para libertares tua alma. Pode ser que ele te devolva o que tirou. Se não, além de perder tuas coisas, vais perder também a alma”. E ele disse; “Não posso absolutamente perdoar, se primeiro ele não me devolver o que tirou”. Como tinha uma capa nas costas, o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Olha, eu te dou esta capa, e peço que perdoes teu patrão por amor do Senhor Deus”. Amansado e provocado pelo benefício, ele pegou o presente e perdoou as injúrias.



[35]

Quando ele estava em Sena, aconteceu que lá chegou um homem muito espiritual da ordem dos Pregadores, doutor em sagrada teologia. Tendo visitado o bem-aventurado Francisco, ele e o santo gozaram longamente de uma agradabilíssima conversa sobre as palavras do Senhor.



[36]

Mas o referido mestre interrogou sobre aquela palavra de Ezequiel: Se não avisares o ímpio de sua impiedade, vou pedir de tua mão a alma dele. Pois disse: “Bom pai, eu mesmo conheço muitos que sei que estão em pecado mortal, mas nem sempre lhes falo sobre sua impiedade. Será que vão ser exigidas de minha mão as almas dessas pessoas? Dizendo-lhe o bem-aventurado Francisco que era um idiota e por isso precisava mais ser ensinado por ele que responder sobre a sentença da escritura, o mestre acrescentou humilde: “Irmão, embora eu tenha ouvido de alguns sábios a exposição dessa passagem, vou acolher de boa vontade o que pensas sobre isso”. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Se a passagem deve ser entendida de maneira universal, eu acho que o servo de Deus deve arder tanto pela vida e santidade que repreenda a todos os ímpios pela luz do exemplo e pela língua do comportamento. Eu diria que, assim, o esplendor de sua vida e o odor da fma vai anunciar a todos as suas iniqüidades”. E assim, saindo muito edificado, aquele homem disse aos companheiros do bem-aventurado Francisco: “Meus irmãos, a teologia desse homem, alicerçada na pureza e na contemplação, é uma águia que voa; mas a nossa ciência arrasta o ventre na terra.



[37]

Costumava atacar com este enigma os que não tinham óculos castos: “Um rei piedoso e poderoso mandou sucessivamente dois mensageiros à rainha. O primeiro voltou e se limitou a referir palavra por palavra. Dessa maneira, os olhos do sábio tinha ficado na cabeça, sem cair para lugar nenhum. O outro voltou, e depois de ter contado as poucas palavras, narrou uma longa história sobre a beleza da senhora: Na verdade, senhor, vi uma mulher belíssima. Feliz que quem pode aproveitar. Ele disse: Tu, servo mau, lançaste os olhos impudicos sobre minha esposa? É claro que estavas querendo comprar sutilmente o que admirastes. Mandou chamar de novo o primeiro e disse: “O que achaste da rainha?”. Ele: Ótima, porque ouviu de boa vontade e respondeu sagazmente. E não há nela nenhuma formosura? Senhor meu, isso cabe a ti olhar; eu tinha que referir as palavras. O rei deu a sentença: Tu, casto de olhos, ficareis na camera com o corpo ainda mais casto. Mas esse outro saia da casa, para não poluir meu leito”. Pois dizia: “Quem não deveria temer olhar a esposa de Cristo?”.



[38]

De vez em quando fazia estas coisas. Fervendo interiormente pela dulcíssima melodia do espírito, soltava exteriormente a voz em francês, e a veia do divino sussurro, que recebia furtivamente nos ouvidos, transbordava em júbilo francês. Algumas vezes, como vi com meus olhos, pegava um pau do chão, colocando-o em cima do braço esquerdo e segurando um arquinho na direita, passando-o pela madeira como se fosse uma viola e, fazendo os gestos adequados, cantava a Deus em francês. Todos esses tripúdios acabavam freqüentemente em lágrimas, e o júbilo se dissolvia na compaixão pela paixão de Cristo. Por isso esse santo vivia suspirando, e com repetidos gemidos, esquecido do que trazia de inferior em suas mãos, elevava-se ao céu.



[39]

Para guardar a virtude da santa humildade, depois de poucos anos, após a sua conversão, em um capítulo, diante de todos os frades da Religião, resignou ao ofício da prelatura dizendo: “Agora estou morto para vós. Mas eis Frei Pedro Cattani, a quem eu e vós todos obedeceremos”. E inclinando-se profundamente diante dele, prometeu-lhe obediência e reverência. Por isso, os frades choravam, e a dor arrancava altos gemidos, quando viam que iam ficar de certa forma órfãos de tão grande pai. Levantando-se, o bem-aventurado Francisco juntou as mãos, voltou os olhos para o céu e disse: “Senhor, eu te recomendo a família que até agora entregaste a mim. E agora, por causa das enfermidades que conheces, dulcíssimo Senhor, não podendo cuidar dela, recomendo-a aos ministros. Que eles tenham que prestar contas diante de ti no dia do juízo, Senhor, se algum dos frades por sua negligência ou mau exemplo , ou também por áspera correção, vier a perecer”. A partir daí permaneceu súdito até a morte, agindo mais humildemente que qualquer um dos outros.



[40]

Em outra ocasião entregou ao seu vigário todos os seus companheiros, dizendo: “Não quero parecer singular por essa prerrogativa, mas que os frades se juntem a mim em cada lugar, como o Senhor lhes inspirar”. E acrescentou: “Já vi um cego que tinha um cachorrinho para guiá-lo pelo caminho”. Essa era, portanto, a sua glória, de forma que, afastada toda espécie de singularidade e jactância, habitasse nele a virtude de Cristo.



[41]

Afirmava que os frades menores tinham sido enviados pelo Senhor nos últimos tempos para darem exemplos de luz aos que estavam envolvidos pela escuridão dos pecados. Dizia que se enchia de suavíssimos odores e pela virtude de preciosos ungüentos quando ouvia contar os feitos dos santos frades espalhados pelo mundo. Aconteceu que certo frade, uma vez, diante de um senhor nobre da ilha de Chipre, lançou uma palavra de injúria contra um outro frade. O qual, quando viu que o irmão estava um tanto ferido pela ferida da palavra, pegou esterco de asno e, aceso pela vingança de si mesmo, enfiou-o na própria boca para mastigá-lo, dizendo: ”Mastigue esterco a língua que derramou o veneno da ira sobre o meu irmão”. Vendo isso, aquele homem, atônito, foi embora muito edificado, e a partir daí ofereceu a si e suas coisas à vontade dos frades. Isso todos os frades observavam infalivelmente por costume: se algum deles lançasse sobre o outro uma palavra de perturbação, prostrava-se por terra para acariciar com beijos o pé do ofendido, mesmo que não quisesse. O santo exultava com essas coisas quando ouvia que seus filhos davam exemplos de santidade por si mesmos, acumulando de bênçãos digníssimas por todos os títulos esses frades que por palavra ou obra levavam os pecadores ao amor de Cristo. Pelo zelo das almas, de que estava perfeitamente repleto, queria que seus filhos correspondessem a ele por verdadeira semelhança.



[42]

Perto do fim de sua vocação para o Senhor, disse-lhe um frade: “Pai, tu vais passar, e a família que te seguiu vai ser deixada no vale das lágrimas. Indica alguém, se o conheceres na Ordem, em quem teu espírito repouse, a quem se possa impor com segurança a carga do ministério geral”. São Francisco respondeu, vestindo todas as palavras com suspiros: “Filho, não vejo um comandante para um exército tão variado, nenhum pastor para tão amplo rebanho. Mas quero descrever para vós um em que reluza como deva ser o pai desta família”. “Deve ser um homem, disse, de vida gravíssima, de grande discrição, de fama louvável. Um homem que não tenha amizades particulares, para não causar escândalo no todo enquanto gosta mais de uma parte. Um homem que seja amigo do esforço da santa oração, que reserve certas horas para a alma e outras para o rebanho que lhe foi confiado. Pois logo cedinho deve começar com os sacramentos da missa e, numa longa oração, encomendar a si mesmo e o rebanho à proteção divina. Mas depois da oração ponha-se em público para ser depilado por todos, para responder a todos, para prover a todos com mansidão. Um homem que, por acepção de pessoas, não tenha um ângulo sórdido, diante de quem não valha menos o cuidado dos menores e dos simples que o dos sábios e maiores. Um homem a que, se lhe tiver sido dado o dom de se destacar pelo dom da literatura, carregue ainda mais em seus costumes a imagem da piedosa simplicidade, e fomente a virtude. Um homem que execre o dinheiro, principal corrupção da nossa profissão e perfeição, e que, como cabeça de nossa religião, apresentando-se aos outros para ser imitado, jamais abuse de pecúlio algum”.



[43]

“Para ele deveria bastar, dizia, ter para si o hábito e o caderninho, e para os frades um porta-penas e o selo. Não seja amontoador de livros, nem muito entregue à leitura, para não tirar do seu encargo e que privilegia para o estudo. Um homem que console os aflitos, por ser o último refúgio dos atribulados, para que não venha a prevalecer nos enfermos a doença do desespero se faltarem junto dele os remédios para a saúde. Para dobrar à mansidão os atrevidos, prosterne-se, ceda alguma coisa a que tem direito para lucrar a alma para Cristo. Não feche as entranhas da piedade para os egressos da Ordem, como para ovelhas que pereceram, sabendo que as tentações são muito fortes, e podem levar a uma queda tão grande”. “Quisera que ele fosse por todos honrado no lugar de Cristo, e que em tudo lhe provessem com a benevolência de Cristo. Na verdade, convém que não se alegre com as honras, nem se deleite mais com os favores que com as injúrias. Se alguma vez precisar comer mais, assuma-o em lugares públicos e não nos escondidos, para que os outros não fiquem com vergonha de cuidar de seus corpos. Cabe principalmente a ele distinguir as consciências escondidas e fazer brotar a verdade dos veios mais ocultos. Não falhe de maneira alguma na forma viril de justiça, Virilem formam iustitie nullatenus labefactet, pois sinta tão grande cargo mais como um pêso que como uma honra. Entretanto, não nasça a moleza da mansidão supérflua, nem a dissolução da disciplina de uma indulgência relaxada, de modo que, com amor por todos, não deixe de ser terror para os que fazem o mal”. “Quero que eles tenham companheiros dotados de honestidade, que a ele e entre si dessem exemplo de todos os bens; firmes diante das angústias, afáveis como é conveniente, e que recebessem com jovialidade todos os que chegassem.. Eis, disse, como deveria ser o ministro geral”.



[44]

Interrogado uma vez por que tinha assim rejeitado todos os frades do seu cuidado, entregando-os a outras mãos, como se não lhes pertencessem, respondeu: “Filho, amo os frades como posso; mas, se seguissem meus vestígios, certamente os amaria mais e não ficaria alheio a eles. Pois há alguns entre os prelados que os arrastam para outras coisas, propondo-lhes exemplos dos antigos e fazendo pouco dos meu avisos. Mas no fim vai ser visto o que estão fazendo”. Pouco depois, quando foi oprimido por doença demasiada, em sua cama dirigiu com veemência de espírito dizendo: “Quem são esses que arrebataram de minhas mãos a minha religião e os meus irmãos? Se eu for ao capítulo geral, vou lhes mostrar qual é minha vontade”.



[45]

O bem-aventurado Francisco não se envergonhava de pedir carne para um frade doente nos lugares públicos das cidades. Mas admoestavam o que se sentiam mal a sofrer com paciência as privações, e a não criarem escândalo se não fizessem tudo que queriam. Por isso fez escrever estas palavras numa das Regras: “Rodo a todos os meus irmãos doentes que, em suas doenças, não se irem ou perturbem contra o Senhor ou contra os frades, Não peçam remédios com muita insistência; nem desejem demasiadamente libertar a carne, que logo vai morrer, e que é inimiga da alma. Dêem graças por tudo, e desejem ser como Deus quer que sejam. Pois Deus ensina com os estímulos dos flagelos e das doenças aqueles que Ele preordenou para a vida eterna, como Ele mesmo disse: repreendo e castigo os que amo (cfr. Heb 12,6; Apoc 3,19)”.



[46]

Zelava com muito ardor pela profissão da Regra comum, e deu uma bênção especial aos que eram zelosos por ela. Pois dizia aos seus que ela era o livro da vida, a esperança da salvação, a medula do Evangelho, o caminho da perfeição, a chave do paraíso, o pacto da eterna aliança. Queria que todos a tivessem, que todas a soubessem e, em toda parte servisse para conversar com o homem interior como um impulso na indolência e lembrança do juramento feito. Ensinou a tê-la sempre diante dos olhos para recordar como deviam agir e, o que é mais, que deviam morrer com ela. Houve um irmão leigo que não se esqueceu dessa recomendação, e que nós cremos que deve ser venerado entre os mártires, pois conseguiu a palma da vitória gloriosa. Pois quando os sarracenos o levaram para o martírio, segurou a Regra nas mãos levantadas, dobrou humildemente os joelhos e disse ao companheiro: ”Irmão querido, eu me proclamo culpado diante dos olhos da majestade e diante de ti por todas as coisas que fiz contra esta Regra”. À breve confissão seguiu-se a espada, pelo qual terminou a vida terminou em martírio, ficando conhecido mais tarde pelos sinais e prodígios. Tinha entrado tão jovem na ordem que mal podia suportar o jejum regular. No entanto, apesar de quase criança, levava um cilício sobre a carne. Feliz menino, que começou bem para terminar ainda melhor.



[47]

Aborrecia-se muito o bem-aventurado pai quando a ciência era procurada com desprezo da virtude, principalmente quando cada um não persistia na vocação em que tinha sido chamado desde o começo. Dizia: “Os meus irmãos que se deixam arrastar pela curiosidade da ciência vão se encontrar de mãos vazias no dia da tribulação”. Gostaria que se reforçassem mais com virtudes para que, quando encontrarem tempos de tribulação, na angústia tenham o Senhor. Pois virá, disse, uma tribulação em que os livros, não prestando para nada, vão ser jogados nas janelas e nos desvãos”. Não dizia isso porque não gostasse dos estudos das escrituras, mas para afastar a todos do cuidado supérfluo de aprender, pois preferia que fossem bons pela caridade e não sabidos pela curiosidade. Pressentia que não custariam a chegar tempos em que sabia que a ciência seria ocasião de ruína. A um de seus companheiros que estava ocupado com pregações apareceu uma vez depois de sua morte, proibiu e mandou que trilhasse o caminho da simplicidade.



[48]

Dizia que os tíbios, que não se ocupam habitualmente com nenhum trabalho, deviam ser logo vomitados da boca de Deus. Nenhum ocioso podia parecer diante dele sem que o corrigisse com dente mordaz. Assim, ele todo, um exemplo de perfeição, trabalhava e agia com as próprias mãos, não permitindo que se perdesse nada do ótimo dom do tempo. Pois uma vez disse: “Quer o que todos os meus frades trabalhem e estejam ocupados, e que os que não sabem aprendam algum ofício, para sermos menos onerosos para as pessoas e para a língua e o coração não fiquem vagando no ócio”. Mas não confiava o lucro ou pagamento do trabalho a quem o ganhava, mas ao guardião ou à família.



[49]

Encontraram-se em Roma com o bispo de Óstia, que depois foi papa, os preclaros luminares do mundo, São Francisco e São Domingos. Depois de terem conversado coisas muito agradáveis a respeito de Deus, disse-lhes o bispo: -- “Na Igreja primitiva os pastores eram homens pobres, fervorosos de caridade e não de cobiça. Por que não fazemos de seus frades bispos e prelados, para liderarem os outros pela doutrina e pelo exemplo? Surgiu, então, entre os dois santos, uma porfia, não para passar na frente mas para estimular e até obrigar a responder. Na verdade, cada um queria ser o primeiro na devoção ao outro. Finalmente a humildade venceu Francisco para que não se pusesse à frente, e também venceu Domingos, para que, respondendo primeiro, obedecesse humildemente. Domingos respondeu ao bispo: -- “Senhor, meus frades já foram promovidos a um bom grau, se o souberem reconhecer, e, se depender de mim, não permitirei que assumam outro tipo de dignidade”. Depois que ele fez esse breve discurso, o bem-aventurado Francisco se inclinou diante do bispo e disse: -- “Senhor, meus frades são chamados de menores para que não presumam ser maiores”. Sua vocação ensina-os a ficar no chão e a seguir os vestígios da humildade de Cristo, de modo que, afinal, na recompensa dos santos, sejam mais exaltados do que os outros. Se queres que produzam fruto na Igreja, mantém-nos e conserva-os no estado de sua vocação, e faze-os voltar ao chão mesmo que não queiram. E não permitas de maneira alguma que subam a uma prelatura”. Essa foi a resposta dos bem-aventurados. No fim das respostas, muito edificado com as palavras dos dois, o senhor de Óstia deu muitas graças a Deus. Quando saíram de lá, o bem-aventurado Domingos pediu a São Francisco que se dignasse dar-lhe a corda com que se cingia. O bem-aventurado Francisco custou para fazer isso, com tanta humildade quanta era a caridade com que o outro lhe pedia. Mas a devoção do feliz pedinte venceu, e ele a cingiu com muita devoção sob a túnica inferior. No fim deram-se as mãos e fizeram mútuas recomendações com muito carinho. Disse um santo ao outro: -- “Gostaria, Frei Francisco, que a tua e a minha religião fossem uma só e vivessem de forma semelhante na Igreja”. Quando foram embora para casa, o bem-aventurado Domingos disse muitos que estavam presentes: -- “Na verdade vos digo que os outros religiosos deveriam seguir o santo varão Francisco, tanta é a perfeição de sua santidade”.



[50]

Em certa ocasião, no começo, isto é quando o bem-aventurado Francisco começou a ter irmãos, permanecia com eles em Rivotorto. Uma noite, lá pela metade, quando todos estavam descansando em suas enxergas, um dos frades exclamou dizendo: “Estou morrendo, estou morrendo!”. Assustados e atemorizados, todos ao frades acordaram.

Levantando-se, o bem-aventurado Francisco disse: “Levantai-vos, irmãos, e acendei a luz”. Quando se acendeu a luz, o bem-aventurado Francisco disse: -- “Quem foi que disse: “Estou morrendo”. Aquele frade respondeu: “Sou eu”. E o bem-aventurado Francisco lhe disse: -- “O que tens, irmão? Como estás morrendo?”. E ele: “Estou morrendo de fome”. O bem-aventurado Francisco, homem cheio de caridade e discrição, para que aquele frade não ficasse com vergonha de comer sozinho, mandou logo pôr a mesa e todos comeram juntos com ele. Pois ele e outros tinham sido convertidos havia pouco tempo para o Senhor, e afligiam demais os seus corpos.

Depois da refeição, o bem-aventurado Francisco disse aos outros frades: “Irmãos meus, assim vos digo que cada um leve em conta sua natureza; porque, ainda que algum de vós possa sustentar-se com menos comida que outro, não quero que o que necessita de mais comida tente imitá-lo nisso; mas considerando sua natureza, dê a seu corpo o que lhe é necessário. Pois assim como temos que evitar o exagero no comer, que faz mal ao corpo e à alma, , assim temos que evitar a abstinência demasiada, tanto mais que o Senhor quer a misericórdia e não o sacrifício”.

 E disse: “Queridos irmãos, isso que eu fiz, isto é que por caridade com nosso irmãos comemos com ele, para que não ficasse com vergonha de comer sozinho, fui obrigado a fazê-lo pela grande necessidade e a caridade. Mas eu vos digo que, nas outras coisas, não quero fazer assim, porque não seria religioso nem honesto. Mas quero e vos ordeno que cada um, segundo nossa pobreza satisfaça ao seu corpo, como for necessário”.

Pois os primeiros frades, e outros que vieram depois deles durante muito tempo, afligiam seus corpos não só com uma excessiva abstinência na comida e bebida, mas também em vigílias, frio e trabalho de suas mãos. Para isso levavam sobre a carne cinturões de ferro e as cotas de malha que podiam ter e fortíssimos cilícios, como também o mais que podiam ter. Por isso o santo pai, achando que os frades podiam ficar doentes por causa disso, e alguns já tinham adoecido em pouco tempo, proibiu em um capítulo que algum frade usasse por baixo, junto da carne, a não ser a túnica.

Nós, porém, que estivemos com ele, damos testemunho de que, embora fosse discreto com os frades desde o tempo em que começou a receber irmãos e também durante todo o tempo de sua vida, procurou entretanto que se guardassem sempre, que em questão de comidas e de coisas, a pobreza e a honestidade requeridas por nossa Religião e que eram usadas pelos frades antigos. Mas ele mesmo, ainda antes de ter irmãos, desde o começo de sua conversão e durante todo o tempo de sua vida, foi austero com o seu corpo, apesar de ter sido um homem frágil em sua juventude e de natureza fraca, e no século não podia viver a não ser delicadamente.

Certa ocasião, achando que os frades já tinham exagerado o modo da pobreza e da honestidade na comida e nas coisas, numa pregação que fez, disse a todos os frades, dirigindo-se pessoalmente a alguns deles: “Será que os frades não acreditam que meu corpo precisa de comidas especiais? Mas como convém que eu seja a forma e o exemplo de todos os frades, quero usar e ficar contente com comidas e coisas pobrezinhas, não delicadas”.



[51]

Quando o bem-aventurado Francisco começou a ter irmãos, ficava tão contente com a conversão deles e porque o Senhor lhe dera boa companhia, e os amava e venerava tanto que não lhes dizia para irem pedir esmola e principalmente porque lhe parecia que ficariam envergonhados de ir. Para poupar-lhes essa vergonha, ia todos os dias sozinho pedir esmolas. Seu corpo ficava muito cansado com isso, principalmente por ter sido homem delicado no século e débil por natureza e por causa da excessiva abstinência e aflição que suportara, e tinha ficado mais fraco desde o dia em que saíra do século. Por isso, considerando que não poderia agüentar tanto trabalho, e que eles tinham sido chamados a essa vocação, mesmo que ficassem com vergonha, e ainda não tinham pleno conhecimento, nem eram tão discretos para dizer-lhe: “Nós queremos ir pedir esmolas”, disse-lhes: “Meus queridos irmãos e filhinhos, não fiqueis com vergonha de ir pedir esmolas, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo; por isso, a seu exemplo e de sua santíssima mãe, escolhemos o caminho da pobreza verdadeira.

Esta é a nossa herança, que pelo Senhor Jesus Cristo foi adquirida e deixada para nós e para todos que, a seu exemplo, querem viver na santa pobreza”. E lhes disse: “Na verdade vos digo que muitos dos mais nobres e sábios desde século virão a esta congregação e terão como grande honra ir pedir esmolas. Por isso, ide com confiança e ânimo alegre pedir esmolas com a bênção do Senhor Deus. Deveis ir pedir esmolas com mais liberdade e alegria que alguém que oferecesse cem dinheiros por um, pois vós ofereceis a quem pedis esmolas o amor de Deus, dizendo-lhes: Dai-nos esmolas por amor de Deus, pois em comparação com Ele, o céu e a terra não são nada”.

E como ainda eram poucos, não podia mandá-los dois a dois, mas mandou cada um sozinho por aqueles castelos e vilas. E aconteceu que, quando voltaram, cada um mostrava ao bem-aventurado Francisco as esmolas que tinha conseguido, dizendo um ao outro: “Eu consegui esmola maior que tu”. E o bem-aventurado Francisco se alegrou de vê-los tão contentes e felizes. Desde então cada um pedia com mais boa vontade para ir pedir esmolas.



[52]

Nesse mesmo tempo, quando o bem-aventurado Francisco vivia com os seus irmãos que tinha então, tinha uma pureza tão grande que, desde a hora em que o Senhor lhe revelou que ele e seus irmãos deviam viver segundo a forma do santo Evangelho, quis observar isso à letra durante todo o tempo de sua vida. Por isso proibiu ao frade que fazia a cozinha para os irmãos que, se quisesse dar legumes para os irmãos comerem, não os pusesse de véspera na água quente, para o dia seguinte, como se costuma, para que os frades observassem aquela passagem do santo Evangelho: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã”. Por isso, o referido frade punha-os para amolecer só depois que os frades tinham rezado matinas. Pela mesma razão, durante muito tempo, muitos frades, em muitos lugares em que moravam por conta própria, e principalmente nas cidades, observaram isso, não querendo adquirir ou receber esmolas a não ser as que lhes fossem suficientes para um dia.



[53]

Certa ocasião, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo lugar, havia aí um frade, homem espiritual e antigo na religião, que estava muito debilitado e enfermo. Pensando nele, o bem-aventurado Francisco se comoveu de piedade para com ele. 3Entretanto, como naquele tempo os frades doentes e sadios, com alegria e paciência tomavam a pobreza como abundância e em suas doenças não usavam remédios, antes, com muito mais boa vontade, faziam o que era mais contrário ao corpo, o bem-aventurado Francisco disse consigo mesmo: “Se esse irmão comesse uvas maduras bem de manhã, acho que ia fazer bem para ele”. Por isso, levantou-se um dia bem cedo, em segredo, chamou o frade e o levou para uma vinha que ficava perto da mesma igreja. Escolheu uma videira em que havia uvas boas e sadias para comer. E sentando-se com o frade junto da videira, colheu uvas para comer, para que não ficasse envergonhado de comer sozinho. Enquanto eles comiam, o frade louvou o Senhor Deus. E, durante todo o tempo que viveu, recordou-se entre os irmãos muitas vezes, com grande devoção e derramando lágrimas, daquela misericórdia que o santo pai fez por ele.



[54]

Numa ocasião, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo lugar, ficava em oração numa cela que estava atrás da casa. Estava nela um dia, quando veio o bispo de Assis para visitá-lo. E aconteceu que, quando entrou na casa, bateu na porta para entrar onde estava o bem-aventurado Francisco. E abrindo a porta para si, foi entrando na cela, dentro da qual tinha sido feita uma outra celazinha de esteiras, onde estava o bem-aventurado Francisco. Como sabia que o santo pai lhe demonstrava familiaridade a afeto, foi com liberdade e abriu a esteira da pequena cela, para vê-lo. Mas logo que pôs a cabeça dentro da cela, de repente, querendo ou não, foi jogado à força para fora por vontade do Senhor, porque não era digno de vê-lo, e voltou de costas. Saiu imediatamente da cela, tremendo e assustado, e disse sua culpa diante dos frades, e que naquele dia arrependera-se de ter ido lá.



[55]

Certo frade era um homem espiritual, antigo na Religião e foi familiar do bem-aventurado Francisco. Mas aconteceu que, em certo tempo, sofreu por muitos dias de gravíssimas e muito cruéis sugestões do diabo, de modo que quase foi levado, na ocasião, ao mais profundo desespero, e era tão atormentado todos os dias que ficava com vergonha de se confessar todas as vezes. Por isso, afligia-se demais com abstinência, vigílias, lágrimas e disciplinas. Estando atribulado todos os dias, e por muitos dias, eis que pela graça de Deus veio ao lugar o bem-aventurado Francisco. E como certo dia, não muito longe daquele lugar, o bem-aventurado Francisco estivesse andando com um frade e com ele, que estava tão atribulado, o bem-aventurado Francisco se afastou um pouco do outro frade e se juntou ao que estava sendo assim tentado, e lhe disse: “Querido irmão, quero e te digo que de agora em diante não tenhas mais que confessar a ninguém as tentações e investidas do diabo, e não tenhas medo, porque não fizeram nenhum mal a tua alma. Mas, por minha licença, vais rezar sete Pai-nossos todas as vezes que fores atormentado por essas sugestões”.

 O frade ficou muito contente com o que ele lhe disse, que não tinha que confessá-las, principalmente porque, como precisava confessar-se todos os dias, ficava muito confuso; e isso era a causa de sua maior dor. E o frade ficou admirado da santidade do santo pai, de como conheceu suas tentações pelo espírito Santo, pois ele não tinha confessado a mais ninguém se não aos sacerdotes. E também mudava sempre de sacerdote por causa da vergonha, pois se envergonhava de um sacerdote conhecesse toda sua enfermidade e tentação. E imediatamente, desde aquela hora em que o bem-aventurado Francisco falou com ele, ficou livre daquela grande tribulação, por dentro e por fora, quem tinha agüentado durante tanto tempo. E pela graça de Deus , pelos méritos do bem-aventurado Francisco, foi colocado numa grande calma e paz da alma e do corpo.



[56]

Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor queria multiplicar o número de irmãos, disse-lhes: “”Queridos irmãos e filhinhos meus, vejo que o Senhor quer nos multiplicar; por isso acho coisa boa e religiosa adquirir do bispo ou dos cônegos de São Rufino, ou do abade do mosteiro de São Bento, alguma igreja pequena e pobrezinha onde os frades possam dizer suas Horas, e ter, junto dela, só alguma casa pequena e pobrezinha, construída de barro e ramos, onde os frades possam descansar e cuidar de trabalhos conforme as suas necessidades; porque este lugar não é adequado e esta casa é muito pequena para os frades permanecerem, uma vez que é vontade do Senhor atualiza-los, e principalmente porque não temos aqui uma igreja onde os frades possam dizer suas Horas, e se alguém morresse não seria adequado sepultá-lo aqui nem numa igreja dos clérigos seculares”.

E essas palavras agradaram aos outros irmãos. Então o bem-aventurado Francisco levantou-se e foi ao bispo de Assis, e propôs ao bispo as mesmas palavras que tinha proposta aos frades. O bispo respondeu-lhe: Ïrmão, não tenho nenhuma igreja que possa dar-te”. Ele foi aos cônegos de São Rufino e disse palavras semelhantes; mas eles responderam como o bispo.

 Então foi ao mosteiro de São Bento do monte Subásio e disse ao abade as mesmas palavras que tinha dito ao bispo e aos cônegos; e também contou como o bispo e os cônegos tinham respondido. O abade ficou com pena, fez uma reunião sobre o assunto com seus irmãos e, como foi da vontade de Deus, concederam ao bem-aventurado Francisco e aos seus frades a igreja de Santa Maria da Porciúncula, a mais pobre que tinham. Também era a mais pobrezinha do que qualquer outra que havia nos arredores de Assis; o que fazia tempo que o bem-aventurado Francisco desejava. Disse o abade ao bem-aventurado Francisco: “Irmãos, nós atendemos o que pediste; mas queremos que, se vossa congregação se multiplicar, este lugar seja a cabeça de todos vós”. Isso agradou ao bem-aventurado Francisco e a seus irmãos.

O bem-aventurado Francisco ficou muito contente com o lugar concedido aos irmãos e principalmente porque a igreja tinha o nome da Mãe de Cristo, era uma igreja tão pobrezinha, e também pelo apelido que tinha. Pois era chamada de Porciúncula, nome que prefigurava que devia ser a mãe e cabeça dos pobres frades menores. Chamava-se Porciúncula por causa da região onde a igreja tinha sido construída, que desde antigamente era conhecida como Porciúncula. Pois o bem-aventurado Francisco dizia: “O Senhor quis que nenhuma outra igreja fosse concedida aos frades e que primeiros frades não construíssem, então, uma igreja nova nem tivessem outra senão aquela porque isso foi uma certa profecia, que se cumpriu com a vinda dos frades menores”.

E embora fosse pobrezinha e já quase destruída por ter muito tempo, as pessoas de Assis e da região sempre tiveram muita devoção por aquela igreja, e a tem maior ainda até hoje. Por isso, imediatamente depois que os frades foram para lá para ficar, quase todos os dias o Senhor multiplicava seu número e a notícia e a fama disso espalhou-se do por todo vale de Espoleto. Antigamente era chamada de Santa Maria dos Anjos, e a província chama-se Santa Maria da Porciúncula. Por isso, depois que os frades começaram a restaura-la, diziam os homens e mulheres daquela província: “Vamos a Santa Maria dos Anjos”.

E embora o abade e os monges tivessem concedido livremente ao bem-aventurado Francisco e a seus frades aquela igreja sem nenhuma exigência ou pagamento anual, todavia o bem-aventurado Francisco, como um bom e experimentado mestre que quis edificar sua casa sobre a pedra firme, isto é, a sua congregação sobre a grande pobreza, mandava todos os anos ele mesmo um cestinho cheio de peixinhos chamados lascas como sinal da maior humildade e pobreza, para que os frades não tivessem nenhum lugar próprio nem permanecessem am algum outro lugar que não estivesse sob o domínio de alguém, de forma que os frades nunca tivessem de modo algum o poder de vender ou alienar. E quando os frades levavam todos os anos os peixinhos para os monges, eles, por causa da humildade do bem-aventurado Francisco, que fazia aquilo por que queria, davam a ele e a seus irmãos uma vasilha cheia de azeite.

Mas nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco damos testemunho de que ele dizia sobre aquela igreja, e confirmando a palavra, que, por causa das muitas prerrogativas que o Senhor aí mostrou e lhe foi revelado nesse lugar, que a Bem-aventurada Virgem ama esta igreja mais do que todas as outras igrejas desde mundo que ela ama. Por isso, teve por ela a maior reverência e devoção durante todo o tempo de sua vida; e para que os frades tivessem sempre uma recordação em seus corações, perto de sua morte quis escrever em seu Testamento que os frades fizessem o mesmo.

Pois, próximo a sua morte, disse ao ministro geral e aos outros frades: “Quero ordenar e deixar em testamento o lugar de Santa Maria da Porciúncula, para que sempre seja tido pelos frades com a maior reverência e devoção. O que também nossos antigos frades fizeram: pois ainda que aquele lugar seja santo, eles mantinham a sua santidade com oração contínua, de dia e de noite, e contínuo silêncio. E se alguma vez falavam depois do termo determinado para o silêncio, tratavam com a maior devoção e honestidade das coisas que diziam respeito ao louvor de Deus e à salvação das almas. E se acontecesse, o que era raro, que alguém começasse a dizer algumas palavras inúteis ou ociosas, era imediatamente corrigido por outro. Portanto, maceravam a carne não só pelo jejum, mas por muitas vigílias, frio, nudez e trabalho de suas mãos. Pois muitas vezes, para não estarem ociosos, iam ajudar as pessoas pobres em seus campos, e elas às vezes lhes davam pão por amor de Deus”.

“Com essas e outras virtudes santificavam a si mesmos e ao lugar, e os outros que vieram depois deles por muito tempo vieram de maneira semelhante, embora não tanto”. “Mais tarde, entretanto, pela vinda de muitos frades e de outros que se reuniam naquele lugar, mais do que tinha sido costume, principalmente porque era bom que todos os frades da religião fossem lá, e o mesmo acontecia com os que queriam entrar na Religião. Também porque os frades são mais frígidos na oração e nas outras boas obras, e mais dissolutas para proferirem palavras ociosas e inúteis e comunicar notícias desde século, aquele lugar não é tido pelos irmãos que ali moram e pelos outros religiosos com tanta reverência e devoção como convém e como eu gostaria”.

“Pois quero que sempre esteja sob o poder do ministro geral e por isso ele tenha maior cuidado e solicitude de providenciar por ele, especialmente para colocar aí uma boa e santa família. Os clérigos sejam escolhidos entre os frades mais santos e mais honestos, e que saibam dizer melhor o ofício em toda a religião, para que não só as outras pessoas mas também os frades os ouçam de boa vontade com grande devoção. Escolham-se frades e leigos santos, homens honestos e discretos, que os sirvam. “Também quero que nenhum frade ou outra pessoa entre naquele lugar a não ser o ministro geral e os frades que ali servem. E eles não conversem com nenhuma pessoa a não ser com os frades que os servem e com o ministro, quando os visitar.

“Quero igualmente que os frades leigos que os servem sejam obrigados a não lhes referir nenhuma palavra ou notícia deste mundo que tiverem ouvido e que não fossem úteis para a alma. E por isso quero especialmente que ninguém entre naquele lugar, para que eles conservem melhor sua pureza e santidade, e que naquele lugar não se profiram palavras vãs e inúteis para a alma, mas se conserve e mantenha todo puro e santo em hinos e louvores do Senhor. E quando algum desses irmãos migrar, onde quer que houver outro frade santo, faça o ministro geral com que ele venha para cá, no lugar do que tiver morrido. Porque, se em algum tempo os frades e os lugares onde moram decaírem da pureza, santidade e honestidade que convém, quero que este lugar seja o espelho e o bom exemplo de toda a religião e como um candelabro diante do trono de deus e diante da bem-aventurada Virgem, pelo qual o Senhor propicie aos defeitos e culpas dos frades e conserve e proteja sempre a religião e sua plantinha”.

Certa ocasião, perto do capítulo que estava para ser realizado, e que naquele tempo se fazia todos os anos em Santa Maria da Porciúncula, considerando o povo de Assis que os frades eram uma graça do Senhor, já multiplicados e multiplicando-se todos os dias, e que, principalmente quando todos se reuniam ali para o capítulo, não tinham senão uma pobrezinha e pequena cabana coberta de palha, com paredes feitas de galhos e barro, como os frades tinham feito no começo, quando foram para lá para ficar, fizeram uma reunião geral e, em poucos dias, com pressa e grande devoção, construíram lá uma casa grande com paredes de pedra e cal, sem o consentimento do bem-aventurado Francisco, que estava fora. Quando o bem-aventurado Francisco voltou de uma província e veio para o capítulo, viu aquela casa construída ali e ficou muito admirado com isso. E pensando que, por causa daquela casa, os frades iam edificar ou fazer edificar grandes casas nos lugares onde moravam ou haveriam de morar, e principalmente porque queria que aquele lugar fosse a forma e o exemplo de todos os lugares dos frades, antes do fim do capítulo, levantou-se um dia e subiu ao telhado da casa mandando que os frades subissem, e, com os frades, começou a jogar no chão as telhas com que estava coberta, querendo destruir a casa.

Quando viram isso, alguns soldados de Assis e outros que ali estavam por ordem da comuna da cidade para proteger o lugar para os seculares e forasteiros que tinham vindo de todas as partes para ver o capítulo dos frades, que o bem-aventurado Francisco e os outros frades queriam destruir a casa, foram logo a eles; e disseram ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, esta casa é da comuna de Assis e nós somos seus representantes; por isso te dizemos que não destruas nossa casa”. O bem-aventurado Francisco disse: -- “Então, se a casa é vossa, não quero toca-la”. E desceu logo dela, e os outros frades que estavam com ele também desceram. Por isso, o povo da cidade de Assis resolveu, durante muito tempo, que quem fosse o seu “podestà” teria que cobri-la e restaurar, se fosse necessário. Em outra ocasião, o ministro geral queria fazer aí uma casa pequena para os frades daquele lugar, onde pudessem descansar e dizer suas Horas, principalmente porque naqueles tempos todos os frades da religião e os que vinham à Religião vinham e recorriam àquele lugar, pelo que aqueles frades se cansavam muito quase todos os dias. Também por causa da multidão de frades que se reuniam naquele lugar não tinham um espaço onde pudessem descansar e dizer suas Horas, pois tinham que ceder aos outros os lugares onde se deitavam. Por isso passavam muitas vezes por muitas tribulações, porque, depois de muito trabalho, quase não podiam satisfazer à necessidade do corpo e à utilidade da alma.

Quando essa casa já estava quase construída, eis que voltou ao lugar o bem-aventurado Francisco e, enquanto estava descansando em uma pequena cela, de noite, ouviu de manhã o tumulto dos frades que lá trabalhavam, e começou a ficar admirado do que seria. Perguntou a seu companheiro: “Que barulho é esse? O que estão fazendo aqueles frades?”. O companheiro contou-lhe tudo como era. Ele mandou chamar imediatamente o ministro, dizendo: -- “Irmão, este lugar é forma e exemplo de toda a religião; por isso prefiro que os frades deste lugar suportem as tribulações e necessidades por amor de Deus, para que os frades de toda a religião, que vêm aqui, contem o bom exemplo de pobreza em seus lugares, em vez de falarem de suas satisfações e consolações; e os outros frades da Religião o tomassem como exemplo para edificar em seus lugares, dizendo: No lugar de Santa Maria da Porciúncula, que é o primeiro lugar dos frades, edificam-se tais e tantos edifícios, que bem podemos edificar em nossos lugares, porque não temos um lugar adequado para ficar”.



[57]

Um frade, homem espiritual, de quem o bem-aventurado Francisco era muito familiar, permanecia em certo eremitério. Considerando que, se alguma vez lá fosse o bem-aventurado Francisco, não teria um lugar apto para ficar, mandou fazer num lugar afastado, perto do lugar dos frades, uma pequena cela, onde o bem-aventurado Francisco pudesse rezar quando fosse lá. E acontece que, não muitos dias depois, chegou o bem-aventurado Francisco. Quando foi levado pelo frade para ver a cela, disse-lhe o bem-aventurado Francisco: -- Essa cela me parece muito bonita. Mas, se queres que eu fique nela por alguns dias, mande fazer-lhe um revestimento tanto interno quanto externo de samambaias e galhos de árvores”.

Pois a cela não era murada mas feita de madeira. Mas como as tábuas eram planas, feitas com machado e enxó, o bem-aventurado Francisco achou que era bonita demais. O frade mandou adaptá-la imediatamente, como dissera o bem-aventurado Francisco. Pois quanto mais as celas e casas dos frades fossem pobrezinhas e religiosas, via-as com mais boa vontade e às vezes nelas se hospedava. Como tivesse ficado e rezado nela por alguns dias, eis que um dia, perto da cela, fora do lugar dos frades, um certo irmão, que estava no lugar, foi onde o bem-aventurado Francisco estava.

O bem-aventurado Francisco perguntou-lhe: “De onde vens, irmão?”. Ele disse: -- “Venho de tua cela”. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Porque disseste que a cela é minha, vai ser outro que vai ficar nela de agora em diante, não eu”. Nós, que estivemos com ele, ouvimo-los muitas vezes dizendo aquela palavra do Evangelho: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. E dizia: “Quando esteve no cárcere, onde jejuou quarenta dias e quarenta noites, o Senhor não mandou fazer uma cela nem uma casa, ficou embaixo de uma rocha da montanha”. E por isso, a exemplo dele, não quis ter casa nem cela neste século, nem mandou fazer para si. Mais, se alguma vez acontecesse de dizer aos frades: “Ajeitem de tal forma esta cela”, depois não queria ficar nela, por causa daquela palavra do santo Evangelho: “Não vos preocupeis”. Pois perto de sua morte quis que fosse escrito em seu Testamento que todas as celas e casas dos frades não deviam ser construídas a não ser de barro e galhos, para conservar melhor a pobreza e a humildade.



[58]

Por isso, em certa ocasião, quando estava em Sena por causa da doença nos olhos e morasse numa cela, onde depois de sua morte foi edificado um oratório para reverenciá-lo, disse-lhe o senhor Boaventura, que dera a terra aos frades, onde fora edificado o lugar dos frades: “Que te parece deste lugar?”. O bem-aventurado Francisco respondeu-lhe: “Queres que te diga como os lugares dos frades deveriam ser construídos?”. Ele respondeu: -- “Quero, pai”. Disse-lhe: “Quando os frades vão a alguma cidade, onde não têm um lugar, e encontram alguém que lhes queira dar tanta terra que possam edificar um lugar e ter uma morada e o que lhes for necessário, primeiro eles têm que considerar quanta terra lhes basta, sempre levando em conta a santa pobreza que prometemos e o exemplo que devemos dar aos outros em tudo”.

O santo pai dizia isso porque não queria, em ocasião alguma, que os frades, nas casas, igrejas, hortas ou outras coisas que usavam excedessem o modo da pobreza nem possuíssem algum lugar com direito de propriedade, mas sempre morassem nelas como peregrinos e forasteiros. Por isso queria que os frades não fossem colocados em grande número nos diversos lugares, porque lhe parecia difícil observar a pobreza em quantidades grandes. E essa foi a sua vontade desde o começo de sua conversão e até o fim na sua morte, que a santa pobreza fosse absolutamente observada. “Depois deveriam ir ao bispo da cidade e dizer-lhe: Senhor, tal pessoa, por amor de Deus e pela salvação de sua alma quer dar-nos tanta terra para que aí possamos construir um lugar; por isso recorremos a ti primeiro, principalmente porque és o pai e senhor das almas de todo o rebanho a vós confiado , como das nossas e dos outros frades que permanecerem neste lugar. Por isso queremos aí construir com a bênção de Deus e a tua”.

Mas o santo dizia isso porque o fruto das almas que os frades querem fazer no povo é melhor conseguido com a sua paz, com lucro deles e do povo, do que escandalizando os prelados e os clérigos, mesmo que o povo sai ganhando. E dizia: “O Senhor nos chamou para ajudar a sua fé e a dos prelados e clérigos da santa mãe igreja; por isso, quanto pudermos, temos que amá-los sempre, honrá-los e venerá-los. Pois é por isso que se chamam frades menores, porque tanto de nome como de exemplo e por obra devem ser humildes diante das outras pessoas deste século. E porque desde o início de minha conversão, quando me separei do século e do pai carnal, o Senhor pôs sua palavra na boca do bispo de Assis para que me aconselhasse bem no serviço de Cristo e me confortasse. Por isso, e por muitas outras coisas excelentes que considero nos prelados, não só nos bispos mas também nos sacerdotes pobrezinhos, quero amá-los, venerá-los e tê-los como meus senhores”.

 “Depois de recebida a bênção do bispo, vão e façam abrir um grande sulco ao redor do terreno que receberam para a construção do lugar, e nele coloquem uma boa sebe como muro, em sinal da santa pobreza e humildade. Depois façam construir casas pequeninas de barro e galhos e algumas pequenas celas, onde os frades possam orar de vez em quando e também trabalhar, para sua maior honestidade e também para se precaver das palavras ociosas. Façam construir também igrejas; pois os frades não devem mandar fazer igrejas grandes com a desculpa de que é para pregar ao povo nem por alguma outra desculpa, porque há maior humildade e melhor exemplo quando os frades vão a outras igrejas para pregar, para observarem a santa pobreza e a sua própria humildade e honestidade”.

 “E se alguma vez forem visitados por prelados ou clérigos, religiosos ou seculares, as casas pobrezinhas, as celas e as igrejas existentes no lugar vão ser uma pregação para eles, e ficarão edificados”. E disse: “Pois muitas vezes os frades mandam construir grandes edifícios, rompendo nossa santa pobreza e dando ocasião de murmuração e mau exemplo para o próximo. Depois, com a desculpa de ir para um lugar melhor ou mais são, abandonam aqueles lugares e edifícios. E, por isso, os que aí deram suas esmolas e outros que vêem e ouvem ficam muito escandalizados e perturbados. Por isso é melhor que os frades façam construir lugares e edifícios pequenos e pobrezinhos, observando sua profissão, e dando bom exemplo ao próximo, do que fazerem contra a sua profissão e darem mau exemplo aos outros. Porque, se alguma vez acontecesse que os frades, com a desculpa de um lugar mais honesto, abandonassem os lugares pequenos e pobrezinhos, haveria por isso muito mau exemplo e escândalo”.



[59]

Naqueles dias e na mesma cela em que o bem-aventurado Francisco tinha dito essas palavras ao senhor Boaventura, uma tarde, como quisesse vomitar por causa do mal do estômago, aconteceu-lhe que, tendo feito muita força, vomitasse sangue, e assim ficou vomitando sangue durante toda a noite e até o amanhecer. Quando os companheiros viram que ele estava quase morrendo por causa da fraqueza e da dor da doença, disseram-lhe com muita dor e derramando muitas lágrimas: “Pai, que vamos fazer? Abençoa a nós e aos teus outros irmãos. Além disso, deixa aos teus frades alguma lembrança da tua vontade, para que, se o Senhor quiser chamar-te deste século, os teus frades sempre possam dizer e ter na memória: Nossa pai deixou estas palavras para seus filhos e frades em sua morte”.

 Mas ele lhes disse: “Chamai-me Frei Bento de Piratro”. Esse frade era um sacerdote, discreto, santo e antigo na Religião, que de vez em quando celebrava na cela do bem-aventurado Francisco; porque, embora estivesse doente, sempre que podia queria ouvir a missa de boa vontade e devotamente. Quando o frade chegou perto dele, disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Escreve como eu abençôo todos os meus frades, os que estão na Religião e os que virão até o fim do século”.

Pois era costume de Francisco que, sempre, nos capítulos dos frades, com os frades se reuniam, abençoar e absolver, no fim do capítulo, todos os frades presentes e os outros que estavam na Religião, e abençoava também todos os que deveriam vir a esta Religião; e não só nos capítulos mas também muitas outras vezes abençoava todos os frades que estavam na Religião e que haveriam de vir.

E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Como por causa da fraqueza e da dor da doença não consigo falar, manifesto brevemente nestas três palavras, a minha vontade para os meus frades, isto é: que em sinal da lembrança de minha bênção e de meu testamento, sempre amem uns aos outros, sempre amem e observem nossa senhora, a santa pobreza, e que sempre permaneçam fiéis e submissos aos prelados e a todos os clérigos da santa mãe igreja”. Também aconselhava os frades a temerem e se cuidarem do mau exemplo; além disso amaldiçoava a todos que, que por desordenados e maus exemplos, provocassem as pessoas a blasfemar a Religião e a vida dos frades e os frades bons e santos, que por isso se envergonhavam e afligiam.



[60]

Durante um tempo, quando o bem-aventurado Francisco vivia junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula e os frades ainda eram poucos, o bem-aventurado Francisco ia, às vezes, por aquelas vilas e igrejas ao redor da cidade de Assis, anunciando e pregando aos homens que fizessem penitência. E carregava uma vassoura para varrer as igrejas. Porque o bem-aventurado Francisco ficava muito sentido quando entrava numa igreja e via que não estava limpa, e por isso, sempre, depois que pregava ao povo, acabado o sermão, fazia reunir todos os sacerdotes que havia no lugar, num lugar afastado, para não ser ouvido pelos seculares, e pregava a eles sobre a salvação das almas, mas principalmente para que tivessem um cuidado solícito por conservar limpas as igrejas, os altares e tudo que serve para celebrar os divinos mistérios.



[61]

Pois, num dia em que o bem-aventurado Francisco fora a uma igreja de uma vila da cidade de Assis, começou a varre-la, e logo se espalhou o boato naquela vila, principalmente porque ele visto e ouvido de boa vontade por aquelas pessoas. Mas quando isso foi ouvido por um sujeito chamado João, da maior simplicidade, que estava arando num campo seu perto daquela igreja, ele foi logo para lá e o encontrou varrendo a igreja. Disse-lhe: “Irmão, dá-me a vassoura, porque quero te ajudar”. E, tomando a vassoura, dele, varreu o resto.

 E, sentado, disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, já faz tempo que tenho vontade de servir a Deus, e mais ainda depois que ouvi falar de ti e de teus frades, mas não sabia como chegar a ti. Mas depois que aprouve a Deus que eu te visse, quero fazer tudo que te agradar”. O bem-aventurado Francisco, considerando o seu fervor, exultou no Senhor, principalmente porque tinha, então, poucos frades e porque lhe parecia que poderia ser um bom religiosos, por sua pura simplicidade. Então lhe disse: “Irmão, se queres ser de nossa vida e sociedade, é preciso que te desapropries de todas as tuas coisas que podes ter sem escândalo, e que dês tudo aos pobres, segundo o conselho do santo Evangelho, pois foi isso que fizeram os meus frades, que puderam”.

Ouvindo isso, ele foi imediatamente para o campo, onde deixara os bois, soltou-os e trouxe um para o bem-aventurado Francisco, dizendo: “Irmão, servi durante tantos anos a meu pai e a todos de minha casa; ainda que seja pequena esta parte da minha herança, quero tomar este boi como a minha parte e dá-lo aos pobres, como melhor te parecer segundo Deus”. Mas quando seus parentes e irmãos, que ainda eram pequenos, viram que queria abandoná-los, começaram a chorar tão fortemente e tão alto, eles e todos da casa, que por isso moveu-se a piedade do bem-aventurado Francisco, principalmente porque a família era grande e fraca.

Então o bem-aventurado Francisco lhes disse: “Preparai e fazei uma refeição para nós todos comermos juntos, e não choreis, porque vou deixar-vos alegres”. Eles logo prepararam, e todos comeram com muita alegria. Depois da refeição, o bem-aventurado Francisco lhes disse: “Este vosso filho quer servir a Deus, por isso vós tendes que ficar alegres, não tristes. E não só segundo Deus, mas também de acordo com este século, isso será atribuído a vós para honra e proveito das almas e dos corpos, porque Deus fica honrado pela vossa carne, e todos os nossos frades serão vossos filhos e irmãos. E porque é uma criatura de Deus e quer servir ao seu Criador, aquele para quem servir é reinar, não posso nem devo devolvê-lo a vós; mas, para que recebais e tenhais uma consolação por causa dele, quero que ele se exproprie desse boi em vosso favor, como a pobres, ainda que ele devesse dá-lo a outros pobres, segundo o conselho do santo Evangelho”.

E todos ficaram consolados com as palavras do bem-aventurado Francisco, e se alegraram principalmente porque o boi lhes foi devolvido, porque eram pobres. E porque o bem-aventurado Francisco amava demais e sempre lhe agradava a santa simplicidade, em si e nos outros, logo que o vestiu com os panos da Religião, levava-o como seu companheiro. Pois ele era de tamanha simplicidade que se achava obrigado a fazer tudo que o bem-aventurado Francisco fizesse. Por isso, quando o bem-aventurado Francisco estava em alguma igreja ou em algum outro lugar afastado, para a oração, ele queria vê-lo e espiá-lo, para se conformar com todos os seus gestos.

Então, se o bem-aventurado Francisco dobrasse os joelhos, ou juntasse as mãos para o céu, ou cuspisse, ou tossisse, ele fazia tudo igual. E o bem-aventurado Francisco começou a questioná-lo, com muita alegria, sobre esse tipo de simplicidade. Ele respondeu: “Irmão, eu prometi fazer tudo que tu fazes, por isso quero fazer tudo que tu fazes”. O bem-aventurado Francisco ficava admirado e alegre com isso, vendo-o em tão grande pureza e simplicidade. Pois começou a ser tão perfeito em todas as virtudes e bons costumes, que o bem-aventurado Francisco e os outros frades ficavam muito admirados de sua perfeição. E não muito tempo depois, ele morreu naquela santa perfeição. Por isso o bem-aventurado Francisco, com muita alegria interior e exterior, falava entre os seus irmãos do seu comportamento, e não o chamava de Frei João mas de São João.



[62]

Em certa ocasião, o bem-aventurado Francisco andava pregando pela província das Marcas. Aconteceu que um dia, quando estava pregando ao povo de uma vila, um homem se aproximou dele, dizendo: “Irmão, quero deixar o século e entrar na tua Religião”. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Irmão, se queres entrar na Religião dos frades, primeiro é preciso que, de acordo com a perfeição do santo Evangelho, dês todas as tuas coisas aos pobres, e depois te livres de tua vontade em todas as coisas”. Ouvindo isso, ele foi rapidamente e, levado pelo amor carnal e não espiritual, deu todas as suas coisas aos seus parentes. E voltou ao bem-aventurado Francisco, dizendo-lhe: “Irmão, eu me desapropriei de tudo que era meu”. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Como fizeste? Ele respondeu: “Irmão, dei tudo que era meu a alguns parentes meus, que tinham necessidade”. O bem-aventurado Francisco, percebendo logo, pelo Espírito Santo, que o homem era carnal, disse-lhe: “Vai pelo teu caminho, Irmão Mosca, porque deste o que era teu aos parentes e queres viver de esmola entre os frades”. Ele pegou imediatamente o seu caminho, sem querer dar as suas coisas aos outros pobres.



[63]

Nesse mesmo tempo, como o bem-avenrturado Francisco morasse no lugar de Santa Maria, aconteceu que, para o proveito de sua alma, foi introduzida nele uma gravíssima tentação do espírito, de modo que seu espírito e seu corpo ficaram muito atribulados, por dentro e por fora. Chegou a ponto de se afastar da familiaridade com os irmãos, principalmente porque, por causa dessa tentação, não podia se mostrar alegre entre eles, como era seu costume. Afligia-se não só pela abstinência de comida mas também pela de palavras; ia muitas vezes para a oração no bosque que havia perto da igreja, para mostrar melhor sua dor e para poder derramar suas lágrimas mais abundantemente diante do Senhor, para que, no meio de tanta tribulação, o Senhor, que tudo pode, se dignasse mandar-lhe remédio do céu.

Como já tivesse sido tão atribulado por essa tentação durante mais de dois anos, de dia e de noite, aconteceu que um dia, quando estava em oração na igreja de Santa Maria, foi-lhe dita em espírito aquela palavra do santo Evangelho: “Se tivesses fé como um grão de mostarda e dissesses àquele monte para sair de seu lugar e se transferir para outro, isso aconteceria”. São Francisco respondeu: “Que monte é esse?”E lhe foi respondido: “Esse monte é a tua tentação”. Disse o bem-aventurado Francisco: “Portanto, Senhor, faça-se em mim como disseste”. E ficou livre imediatamente, a ponto de lhe parecer que nunca tinha tido aquela tentação.



[64]

Certa vez, num dia em que o bem-aventurado Francisco tinha voltado para a igreja de Santa Maria da Porciúncula, encontrou aí o simples Frei Tiago com um leproso cheio de feridas, que tinha ido para lá no mesmo dia. O santo pai tinha recomendado muito a ele aquele leproso e principalmente todos os outros leprosos que estivessem muito chagados. pois naqueles dias os frades moravam nos hospitais dos leprosos. Mas esse Frei Tiago era como um médico dos que estavam muito chagados, e de boa vontade tocava suas feridas, trocava-os e cuidava deles.

O bem-aventurado Francisco disse a Frei Tiago, como se o estivesse repreendendo: ”Tu não devias levar assim os irmãos cristãos, porque não é honesto nem para ti nem para eles”. O bem-aventurado Francisco chamava os leprosos de “irmãos cristãos”. Mas o santo pai disse isso porque, embora gostasse de que os ajudasse e servisse, não queria que levasse para fora do hospital os muito chagados, principalmente porque esse Frei Tiago era muito simples e muitas vezes ia à igreja de Santa Maria com algum leproso, e principalmente porque as pessoas costumavam ter asco dos leprosos que fossem muito chagados. Tendo dito isso, o bem-aventurado Francisco logo se repreendeu e disse sua culpa a Frei Pedro Cattani, que então era o ministro geral, principalmente porque o bem-aventurado Francisco achou que o leproso ficou envergonhado por causa da repreensão de Frei Tiago. E por isso disse sua culpa, para satisfazer a Deus e ao leproso.

E disse o bem-aventurado Francisco a Frei Pedro: “Eu te digo que confirmes a penitência que quero fazer por isso e não me contradigas”. Disse-lhe Frei Pedro: “Irmão, faça-se como te agradar”. Pois Frei Pedro tinha tanta veneração e respeito pelo bem-aventurado Francisco, e lhe era tão obediente, que nem presumia mudar sua obediência, embora nessa e em muitas outras ocasiões ficasse por isso aflito interior e exteriormente.

O bem-aventurado Francisco disse: “Que seja esta a minha penitência: que eu coma no mesmo prato com o irmão cristão”. E assim se fez: quando o bem-aventurado Francisco sentou-se à mesa com o leproso e os outros frades, foi posta uma escudela entre os dois. Pois o leproso estava todo machucado e ferido, principalmente tinha os dedos com que comia contraídos e sangrentos de modo que sempre, quando os punha no prato, derramava sangue nele. Vendo isso, Frei Pedro e os outros frades ficaram muito tristes, mas não tinham coragem de dizer nada, por respeito ao santo pai. Quem escreveu isto, viu e prestou testemunho.



[65]

Certa vez, o bem-aventurado Francisco ia pelo vale de Espoleto e com ele ia Frei Pacífico, que foi da Marca de Ancona e no século era chamado “rei dos versos”, nobre e cortês mestre dos cânticos. E se hospedaram num hospital de leprosos de Trevi. E o bem-aventurado Francisco disse a Frei Pacífico: “Vamos à igreja de São Pedro de Bovário, porque quero ficar lá esta noite”.

A igreja não estava muito longe do hospital e ninguém ficava lá, principalmente porque naquele tempo tinha sido destruído o castelo de Trevi, de modo que ninguém permanecia no castelo ou na vila de Trevi. E acontece que quando o bem-aventurado Francisco ia indo para lá, disse a Frei Pacífico: “Volta para o hospital, porque quero ficar sozinho aqui nesta noite, e volta a mim amanhã bem cedo”.

 Mas quando o bem-aventurado Francisco lá ficou sozinho e disse o completório e outras orações, quis descansar e dormir mas não pôde, e seu espírito começou a temer e a sentir sugestões diabólicas. Levantou-se imediatamente e saiu fora da casa persignando-se e dizendo: “Da parte de Deus onipotente eu vos digo, demônios, que façais tudo que vos foi permitido por nosso Senhor Jesus Cristo para prejudicar meu corpo, porque estou preparado para agüentar tudo, pois o maior inimigo que eu tenho é o meu corpo: por isso vingar-me-ei de meu adversário e inimigo”. Pararam na mesma hora aquelas sugestões. Ele voltou para o lugar onde se deitava, aquietou-se e dormiu em paz.

Quando amanheceu, Frei Pacífico voltou para junto dele. O bem-aventurado Francisco estava em oração diante do altar dentro do coro; Frei Pacífico ficou em pé, esperando-o fora do coro, diante do crucifixo e rezando ao mesmo tempo ao Senhor. E quando Frei Pacífico começou a rezar, foi elevado em êxtase, se no corpo ou fora do corpo Deus soube, e viu muitas cadeiras no céu, entre as quais uma mais eminente que as outras, gloriosa e fulgente, e ornada com todas as pedras preciosas. Admirando sua beleza, começou a pensar consigo mesmo o que era essa cadeira e a quem pertencia. E logo ouviu uma voz que lhe dizia: “Esta cadeira foi de Lúcifer, e no seu lugar vai sentar-se nela o bem-aventurado Francisco”. E voltando a si, logo o bem-aventurado Francisco saiu ao seu encontro. Ele se jogou imediatamente aos pés do bem-aventurado Francisco, em forma de cruz, considerando-o como se já estivesse no céu, por causa da visão que tivera sobre ele, e lhe disse: “Pai, perdoa-me os meus pecados e roga ao Senhor que me perdoe e tenha misericórdia de mim”. E, estendendo a mão, o bem-aventurado Francisco o fez levantar-se e soube que tinha visto alguma coisa na oração. Parecia todo mudado, e falava ao bem-aventurado Francisco não como a alguém que vivia na carne mas como a alguém que já reinava no céu. Depois, como de longe, porque não queria contar a visão ao bem-aventurado Francisco, Frei Pacífico interrogou o bem-aventurado Francisco dizendo-lhe: “O que achas de ti mesmo, irmão?”.

O bem-aventurado Francisco respondeu e lhe disse: “Eu acho que sou um homem mais pecador que qualquer outro que haja no mundo”. E na mesma hora foi dito a Frei Pacífico no coração: “Nisso tu podes saber que foi verdadeira a visão que tiveste”; porque como Lúcifer foi jogado daquela cadeira por sua soberba, assim o bem-aventurado Francisco, por sua humildade, vai merecer ser exaltado e sentar-se nela”.



[66]

Certa vez, quando o bem-aventurado Francisco estava em Rieti e hospedado por alguns dias num quarto de Tebaldo Sarraceno por causa da doença dos olhos, disse, um dia, a um de seus companheiros, que, no século, sabia tocar cítara: “Irmão, os filhos deste século não entendem das coisas divinas; pois instrumentos como as cítaras, os saltérios de dez cordas e outros instrumentos, que eram usados nos tempos antigos pelos santos homens para louvar a Deus e consolar as almas, agora são usados por eles para a vaidade, o pecado e contra a vontade de Deus. Por isso eu gostaria que conseguisses em segredo com alguma pessoa honesta uma cítara com que me fizesses um verso honesto e com ela diremos coisas das palavras e louvores do Senhor, principalmente porque o corpo está aflito por grande doença e dor. Por isso eu gostaria, nesta oportunidade, de reduzir a própria dor do corpo para alegria e consolação da alma”.

Pois o bem-aventurado Francisco, em sua enfermidade, fizera alguns louvores do Senhor, que de vez em quando fazia que fossem ditos por seus companheiros para o louvor de Deus e para consolação de sua alma, mas também para edificação do próximo. O frade respondeu-lhe: “Pai, fico com vergonha de ir buscar, principalmente porque as pessoas desta cidade sabem que no século eu sabia tocar cítara; temo que pensem que estou sendo tentado a ser citarista de novo”. O bem-aventurado Francisco lhe disse: “Então, irmão, vamos deixar disso”. Mas na noite seguinte, quase à meia-noite, o bem-aventurado Francisco estava acordado e eis que, ao redor da casa onde estava deitado, ouviu uma cítara tocando uma música mais bonita e mais agradável do que jamais tinha ouvido em sua vida. E ia tocando tão longe quanto se podia ouvir e e depois voltava tocando. E fez isso por uma boa hora.

Por isso, considerando o bem-aventurado Francisco que era obra de Deus e não de um homem, encheu-se do maior gozo e com o coração exultante louvou o Senhor com todo afeto por ter-se dignado consolá-lo com tal e tão grande consolação. E, quando se levantou de manhã, disse ao seu companheiro: “Irmão, eu te pedi e não me satisfizeste; mas o Senhor, que consola seus amigos na tribulação, dignou-se consolar-me nesta noite”. E assim contou-lhe tudo que tinha acontecido. E os frades ficaram admirados, achando que isso era um grande milagre. E souberam de verdade que tinha sido uma obra de Deus para consolação do bem-aventurado Francisco e principalmente porque, de acordo com uma lei do podestá, não só à meia-noite mas mesmo depois do terceiro toque de sino, ninguém ousava andar pela cidade. E porque, como contou o bem-aventurado Francisco, ia e voltava por uma boa hora em silêncio, sem voz e sem barulho da boca, como era obra de Deus, para consolar o seu espírito.



[67]

Na mesma ocasião, por causa da enfermidade dos olhos, o bem-aventurado Francisco permaneceu junto da igreja de São Fabiano, que fica perto da cidade, e onde havia um pobre sacerdote secular. Pois naquele tempo o senhor papa Honório estava com os outros cardeais na mesma cidade. Por isso muitos dos cardeais e dos outros grandes clérigos, pela reverência e devoção que tinham pelo santo pai, visitavam-no quase todos os dias.

Ora, aquela igreja tinha uma pequena vinha que ficava junto da casa em que permanecia o bem-aventurado Francisco, e nessa casa só havia uma porta, por onde entravam na vinha quase todos os que o visitavam, principalmente porque naquele tempo as uvas estavam maduras e o lugar era ameno para se descansar. E aconteceu que, por essa situação, perdeu-se quase toda a vinha. Porque alguns colhiam uvas e as comiam ali mesmo, outros colhiam e levavam, e outros ainda a esmagavam com seus pés. Por isso o sacerdote começou a ficar escandalizado e perturbado, dizendo: “neste ano eu perdi a minha vinha. Porque, ainda que seja pequena, colhia dela tanto vinho que dava para a minha necessidade”. Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco mandou chamá-lo à sua presença e lhe disse: “Não se perturbe mais nem se escandalize, porque não podemos fazer outra coisa. Mas confia no Senhor, porque Ele, por mim, seu pequeno servo, pode restituir o teu dano. Mas me diga: quantas cargas tiveste quando tua vinha rendeu mais?”.

O sacerdote respondeu-lhe: “Pai, treze cargas”. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Não fiques triste agora nem digas alguma palavra injuriosa para ninguém, nem te queixes com alguém, mas tem fé no Senhor e nas minhas palavras; e se tiveres menos do que vinte cargas de vinho, eu vou fazer completar para ti”. Por isso o sacerdote se acalmou e ficou quieto. E aconteceu, por disposição divina, que teve vinte cargas, e não menos, como lhe dissera o bem-aventurado Francisco. O sacerdote ficou muito admirado com isso, e também todos os outros que ouviram, considerando que era um grande milagre, pelos méritos do bem-aventurado Francisco, principalmente porque não só tinha sido devastada mas, porque se estivesse carregada de uvas e ninguém tirasse nada, parecia ao sacerdote e aos outros que era impossível tirar dali vinte cargas de vinho. Por isso nós que estivemos com ele damos testemunho de que sempre que dizia: “É assim, ou vai ser”, assim acontecia. E nós vimos muitas coisas que se cumpriram quando vivia e também depois de sua morte.



[68]

No mesmo tempo o bem-aventurado Francisco permaneceu, para cuidar da enfermidade dos olhos, no eremitério dos frades em Fonte Colombo, perto de Rieti. Como certo dia visitasse-o o médico oculista dessa cidade e ficasse com ele por algumas horas, como costumava, quando quis ir embora, disse o bem-aventurado Francisco a um de seus companheiros: “Ide e fazei que o médico coma otimamente”. O companheiro respondeu: “Pai, nós o dizemos com vergonha, porque somos tão pobres que ficamos envergonhados de convidá-lo e dar-lhe agora de comer”.

O bem-aventurado Francisco disse a seus companheiros: “Homens de pouca fé, não me façais dizer mais nada”. Disse o médico ao bem-aventurado Francisco e a seus companheiros: “Irmão, justamente porque os frades são tão pobres, de mais boa vontade quero comer com eles”. Esse médico era muito rico e muitas vezes que o bem-aventurado Francisco e seus companheiros o tinham convidado, não quis comer lá. Então os frades foram e preparam a mesa, e com vergonha puseram um pouco de pão e vinho que tinham e um pouco de verduras que tinham feito para eles mesmos.

Mas quando se sentaram à mesa, quando ainda tinham comido só um pouco, bateram à porta do eremitério. Um dos frades levantou-se, foi e abriu a porta. Lá estava uma mulher trazendo uma grande cesta cheio de um belo pão e de peixes, pastéis de camarão, mel e uvas quase recentes, que tinham sido enviados ao bem-aventurado Francisco por uma senhora de um castro que ficava a quase sete milhas do eremitério. Quando viram isso, os frades e o médico ficaram muito admirados, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco. Por isso, o médico disse aos frades: “Meus irmãos, nem vós nem nós conhecemos como devemos a santidade deste santo”.



[69]

Certa vez, quando o bem-aventurado Francisco ia para Celle de Cortona, aconteceu que, quando passava pelo caminho ao pé de um castro chamado Limisiano, perto do lugar dos frades de Prégio, uma senhora nobre do mesmo castro veio com muita pressa para falar com o bem-aventurado Francisco. Quando um dos companheiros do bem-aventurado Francisco viu aquela senhora tão cansada do caminho vindo tão apressada, correu disse ao bem-aventurado Francisco: “Pai, pelo amor de Deus esperemos essa senhora, porque vem atrás de nós, e está muito cansada pelo desejo de falar conosco”. O bem-aventurado Francisco, homem cheio de caridade e de piedade, esperou-a. Mas quando a viu fatigada e vindo com grande fervor de espírito e devoção, disse-lhe: “Que desejas, senhora?”. Ela lhe respondeu: “Pai, rogo que me bendigas”.

O bem-aventurado Francisco lhe disse: “És casada ou solteira?”. E ela: “Pai, faz tempo que o Senhor me deu a boa vontade de servi-lo. Tive e tenho um grande desejo de salvar minha alma, mas tenho um marido tão cruel e contrário a mim e a ele mesmo no serviço de Cristo; por isso minha alma se aflige com muita dor e angústia até a morte”. O bem-aventurado Francisco, considerando o fervoroso espírito que ela tinha, e principalmente que era jovem e delicada segundo a carne, moveu-se de piedade por ela, abençoou-a e lhe disse:. “Vá e, quando encontrar teu marido em casa, dize-lhe de minha parte que rogo a ele e a ti por amor daquele Senhor que para nos salvar suportou a paixão da cruz, que salveis vossas almas em vossa casa”.

Quando ela voltou e entrou em casa, encontrou o marido em casa, como lhe dissera o bem-aventurado Francisco. E o marido lhe disse: “De onde vens?”. E ela: “Venho do bem-aventurado Francisco, que me abençoou, e em suas palavras minha alma ficou consolada e alegre no Senhor”. Além disso me disse que, de sua parte, eu te dissesse e rogasse que em nossa casa salvemos nossas almas”. Quando disse isso, na mesma hora a graça de Deus desceu sobre ele, pelos méritos do bem-aventurado Francisco. Ele lhe respondeu com muita bondade de mansidão, tão rapidamente mudado e renovado pelo Senhor: “Senhora, agora vamos fazer como te aprouver o serviço de Cristo e vamos salvar nossas almas, como disse o bem-aventurado Francisco. E sua esposa lhe disse: “Senhor, eu acho bom que vivamos em castidade, porque é muito grata ao senhor e é uma virtude de grande remuneração”.

Respondeu-lhe o marido: “Senhora, se te agrada, a mim agrada”. Pois nisso e em outras boas obras quero unir minha vontade à tua vontade”. E a partir daí viveram muitos anos em castidade, fazendo muitas esmolas aos frades e aos outros pobres, de modo que não só os seculares mas também os religiosos se admiravam de sua santidade, principalmente porque aquele homem era muito mundano e se tornara rapidamente espiritual. E tendo perseverado em tudo isso e em todas as outras obras boas, morreram os dois com diferença de poucos dias. Por causa deles houve uma grande lamentação, pelo odor da boa vida, que deram durante todo o tempo de suas vidas, louvando e bendizendo ao Senhor, que lhes deu graças, candor e concórdia a vida a seu serviço; e não foram separados na morte, porque morreu um depois do outro. Pois até o dia de hoje conta-se a sua memória como de santos, pelos que os conheceram.



[70]

No tempo em que ninguém era recebido na vida dos frades sem licença do bem-aventurado Francisco, veio com outros, que queriam entrar na Religião, o filho de um nobre segundo século, de Lucca ao bem-aventurado Francisco, que estava doente e permanecia no palácio do bispo de Assis. Quando os frades apresentaram-nos ao bem-aventurado Francisco, o filho do nobre se inclinou diante do bem-aventurado Francisco e começou a chorar fortemente, rogando que o recebesse.

O bem-aventurado Francisco, enxergando dentro dele, disse: “Ó homem miserável e carnal! Porque mentes ao Espírito Santo e a mim? Tu choras carnal e não espiritualmente”. Dito isso, imediatamente chegaram a cavalo seus parentes, fora do palácio, querendo pegá-lo para levar de volta para sua casa. Quando ouviu o rumor dos cavalos e olhou por uma janela do palácio, viu seus parentes, logo se levantou e saiu ao encontro deles, voltando com eles para o século, como tinha conhecido o bem-aventurado Francisco pelo Espírito Santo. Ficaram admirados os frades e outros que lá estavam, e engrandeceram e louvaram a Deus em seu santo.



[71]

Certa ocasião, quando estava muito doente no mesmo palácio, os frades rogavam e animavam para que comesse. Mas ele lhes disse: “Meus irmãos, não tenho vontade de comer, mas se tivesse um pouco do peixe que chamam de Lúcio, talvez eu comesse”. Quando acabou de dizer isso apareceu alguém trazendo uma cesta em que havia três grandes lúcios bem preparados e pratos de camarões, que o santo pai comia com gosto, e tinham sido enviados por Frei Geraldo, ministro de Rieti. Os frades ficaram muito admirados, considerando a sua santidade, e louvaram ao Senhor que satisfez seu servo com coisas que eles então não podiam proporcionar-lhe, principalmente porque era inverno e não podiam ter peixes daqueles.



[72]

Certa vez, o bem-aventurado Francisco ia com um frade espiritual de Assis, que era de uma família grande e poderosa. O bem-aventurado Francisco, como era um homem fraco e doente, montava num burrico. O frade, cansado da viagem, começou a pensar consigo, dizendo: “Não podiam comparar-se os parentes desse aí com os meus, mas agora ele vai montado e eu, cansado, tenho que ir atrás dele, tangendo o animal”. Assim que ele pensou isso, o bem-aventurado Francisco desceu do burrico, dizendo-lhe: “Irmão, não é certo nem conveniente que eu vá montado e tu vás a pé, porque foste mais poderoso e nobre do que eu no século”. E o frade, estupefato e envergonhado, lançou-se chorando aos seus pés e confessou seu pensamento, dizendo-se culpado por causa disso; e ficou muito admirado com a santidade dele, por conhecer imediatamente o seu pensamento. Quando os irmãos se apresentaram em Assis para rogar ao senhor papa e aos cardeais que canonizassem o bem-aventurado Francisco, o frade testemunhou isso diante do papa e dos cardeais.



[73]

Certo frade, homem espiritual e amigo de Deus, morava no lugar dos frades em Rieti. Um dia, levantando-se, foi com grande devoção ao eremitério dos frades em Grécio, onde morava nesse tempo o bem-aventurado Francisco, pelo desejo de vê-lo e de receber sua bênção. O bem-aventurado Francisco já tinha comido e tinha voltado à cela onde orava e dormia. Como era quaresma, não descia da clã a não ser na hora da refeição, e logo voltava para a cela. O frade ficou muito triste porque não o encontrou, pondo a culpa em seus pecados, principalmente porque teria que voltar naquele mesmo dia ao seu lugar.

Como os companheiros do bem-aventurado Francisco o consolassem e ele já estivesse afastado do lugar na distância de uma pedrada, para voltar a seu lugar, o bem-aventurado Francisco, por vontade do Senhor, saiu fora da cela, chamou um de seus companheiros, que ia com ele até a fonte do lago, e lhe disse: “Dize a esse frade que olhe para mim”. Quando voltou sua face para o bem-aventurado Francisco, este o abençoou fazendo um sinal da cruz. O frade, com alegria interior e exterior louvou o Senhor que cumpriu seu desejo e ficou ainda mais consolado porque considerou que foi por vontade de Deus que o abençoou sem ser por pedido seu ou pela palavra de outra pessoa.

Pois os companheiros do bem-aventurado Francisco e os outros frades do lugar ficaram admirados, achando que tinha sido um grande milagre, porque ninguém falou com o bem-aventurado Francisco sobre a vinda daquele frade; porque nem os companheiros do bem-aventurado Francisco nem nenhum outro frade ousava ir até ele e não os tivesse chamado; e não só lá, mas onde quer que o bem-aventurado Francisco ficava em oração, queria ficar tão afastado que ninguém fosse a ele sem ser chamado.



[74]

l Certa vez, um ministro dos frades foi ao bem-aventurado Francisco, que estava então no mesmo lugar. Para celebrar a festa do Natal do Senhor com ele. E aconteceu que, quando os frades do lugar estavam preparando uma mesa festiva no próprio dia do Natal por causa do ministro, com bonitas toalhas brancas que tinham adquirido e copos de vidro para beber, o bem-aventurado Francisco desceu da cela para comer. Quando viu a mesa elevada e tão curiosamente preparada, foi em segredo e levou o chapéu de um pobre, que lá chegara nesse mesmo dia, e o bastão que levava nas mãos. Chamou em voz baixa um de seus companheiros, e saiu fora da porta do eremitério, sem que soubessem os frades da casa. Nesse meio tempo, os frades entraram para a mesa, principalmente porque era costume do santo pai que, às vezes, quando não vinha logo na hora de comer, quando os frades queriam comer, queria que os frades entrassem para a mesa para comer. Seu companheiro fechou a porta, ficando perto dela do lado de dentro.

O bem-aventurado Francisco bateu à porta e o frade logo abriu-a para ele, que veio com o chapéu nas costas e o bastão na mão, como um peregrino. Quando chegou diante da porta da casa onde os frades comiam, clamou como um pobre, dizendo aos frades: “Por amor do Senhor Deus, daí uma esmola a este pobre peregrino e doente”. E o ministro e os outros frades conheceram-no imediatamente. E o ministro respondeu-lhe: “Irmão, nós somos igualmente pobres e, como somos muitos, temos necessidade das esmolas que comemos, mas, por amor daquele Senhor que invocaste, entra na casa que te daremos das esmolas que o Senhor nos deu”. Quando entrou e ficou em pé diante da mesa dos frades, o ministro deu-lhe a escudela em que comia e igualmente do seu pão. Tomando-a ele sentou no chão perto do fogo, diante dos frades que estavam sentados à mesa, no alto, e, suspirando, disse aos frades: “Quando vi a mesa preparada de maneira honrosa e rebuscada, achei que não era a mesa dos pobres religiosos, que vão todos os dias de porta em porta. Pois assim convém a nós, mais que aos outros religiosos, seguir o exemplo de humildade e pobreza, porque a isso fomos chamados e isso professamos diante de Deus e dos homens. Por isso, acho que agora estou sentado como um frade”. Os frades ficaram envergonhados com isso, pois consideraram que o bem-aventurado Francisco estava dizendo a verdade, e alguns deles começaram a chorar forte, vendo como estava sentado no chão e como quis corrigi-los tão santa e cuidadosamente.

Também dizia que os frades deviam ter mesas tão humildes e simples que, por isso, os seculares pudessem ficar edificados; e se algum pobre fosse convidado pelos frades, pudesse sentar-se com eles, não o pobre no chão e os frades lá em cima. Por isso o senhor papa Gregório, quando era bispo de Óstia e foi ao lugar dos frades em Santa Maria da Porciúncula, entrou na casa dos frades e foi ver o seu dormitório, que havia nessa casa, com muitos cavaleiros, monges e outros clérigos, que tinham vindo com ele. Quando viu que os frades dormiam no chão e não tinham por baixo a não ser um pouco de palha, sem travesseiro, com algumas cobertas pobrezinhas, rasgadas e gastas, começou a chorar muito diante de todos, dizendo: “Vejam aqui como dormem os frades; mas nós, miseráveis, usamos tantas coisas supérfluas para tudo. Que vai ser de nós?”. Pelo que ele e os outros ficaram muito edificados com isso. Não viu lá nenhuma mesa, porque os frades comiam no chão. E embora aquele lugar, desde o começo, quando foi edificado, fosse freqüentado por longo tempo pelos frades de toda a Religião mais do que qualquer outro lugar dos frades, porque todos os que vinham para a Religião eram ali revestidos, sempre os frades do lugar comiam no chão, fossem poucos ou muitos, e enquanto viveu o santo pai, por seu exemplo e vontade, os frades desse lugar sentavam-se no chão para comer.

Pois o bem-aventurado Francisco, vendo que aquele lugar dos frades em Grécio era simples e pobre, e que as pessoas daquele castro, embora pobrezinhas e simples, agradaram mais ao bem-aventurado Francisco entre os daquela província. Por isso descansava muitas vezes e ficava morando naquele lugar, principalmente porque ali havia uma cela pobrezinha, bem afastada, onde o santo pai ficava. Por isso, por seu exemplo e pela pregação dele e de seus frades, graças ao Senhor muitos deles entraram na Religião, muitas mulheres guardavam sua castidade, permanecendo em suas casas, vestidas do pano da Religião. Mas mesmo que cada uma ficasse em sua casa, vivia vida comum honestamente e afligia seu corpo com jejum e oração, de modo que, às pessoas e aos frades seu comportamento não parecia ser entre os seculares e seus parentes mas entre pessoas santas e religiosas que estivessem servindo Deus havia muito tempo, embora fossem muito jovens e simples.

Por isso o bem-aventurado Francisco falava muitas vezes com alegria entre os frades dos homens e mulheres desse castro: “De uma cidade grande não se converteram tantos para a penitência como em Grécio, que é um pequeno castro. Pois, muitas vezes, quando os frades estavam louvando a deus à tarde, como os frades costumavam fazer em muitos lugares naquele tempo, as pessoas daquele castro, grandes e pequenas, saíam para fora, ficavam em pé na rua na frente do castro, respondente aos frades em voz alta: “Louvado seja o Senhor Deus!”. De modo que mesmo as crianças que ainda não sabiam falar bem, quando viam os frades, louvavam o Senhor Deus como podiam. Mas tinham, nesse tempo, uma tribulação muito grande, que sofreram por muitos anos: porque grandes lobos devoravam as pessoas e o granizo devastava todos os anos seus campos e vinhas. Por isso, um dia que lhes estava pregando, o bem-aventurado Francisco disse: “Eu vos anuncio, para honra e louvor de deus que, se cada um de vós se emendar de seus pecados e se converter a Deus de todo coração, com o propósito e a vontade de perseverar, confio no Senhor Jesus Cristo que, por sua misericórdia, ele vai afastar agora de vós esta peste dos lobos e do granizo, que vós sofreste tanto tempo, e vai fazer com cresçais e vos multipliqueis nas coisas espirituais e nas temporais. Também vos anuncio que - que assim não seja - se voltardes ao vômito, essa praga e peste vai voltar sobre vós e com elas outras tribulações muito maiores”. E aconteceu que, pela graça de Deus e pelos méritos do santo pai, acabou toda tribulação desde aquela hora e daquele tempo. Até, o que é um grande milagre, quando o granizo chegava e devastava os campos de seus vizinhos, não tocava os seus campos, que estavam ao lado.

Desde então, começaram a multiplicar-se e ter abundância nas coisas espirituais e temporais por uns dezesseis ou vinte anos. Depois começaram a se ensoberbecer pela gordura, a se odiar uns aos outros e até a ferir-se com espadas até a morte, a matar animais ocultamente, a roubar e a furtar de noite, a fazer muitos outros males. Quando o Senhor observou que suas obras eram más e que não estavam observando o que lhes tinha sido anunciado pelo seu servo, indignou-se seu zelo sobre eles e afastou deles a mão de sua misericórdia. E voltou sobre eles a praga do granizo e dos lobos, como lhes dissera o santo pai, e muitas outras tribulações piores do que as antigas caíram sobre eles. Pois todo o castro foi queimado pelo fogo, e eles escaparam sozinhos, tendo perdido tudo que possuíam. Por isso, os frades e outros que tinham ouvido as palavras do santo pai, como lhes predissera condições prósperas e adversas, ficaram muito admirados de sua santidade, vendo tudo realizado à letra.

[75]

Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco pregava na praça de Perusa, com grande ajuntamento de povo. E eis que cavaleiros de Perusa começaram a correr pela praça, brincando, de armas na mão, de modo que impediam a pregação. E embora fossem repreendidos pelos homens e mulheres que estavam prestando atenção na pregação, não pararam por causa disso.

Virando-se para eles, o bem-aventurado Francisco disse, com fervor de espírito: “Ouvi e entendei o que o Senhor, por mim seu servo vos anuncia, e não digais que este é um assisiense”. O bem-aventurado Francisco disse isso porque havia um ódio antigo entre pessoas de Assis e de Perusa. Por isso, disse o seguinte: “O Senhor vos exaltou e voz fez grandes acima de vossos vizinhos; por isso deveis reconhecer até mais o vosso Criador, e deveríeis humilhar-vos mais não só diante do próprio Deus Onipotente mas também dos vossos vizinhos. Mas o vosso coração elevou-se na vossa arrogante soberba e força, e devastais vossos vizinhos, matando a muitos. Por isso eu vos digo: se não vos converterdes depressa, e derdes satisfação aos que ofendesteis, o Senhor, que não deixa nada sem pagar, para voz fazer uma vingança maior e para vossa punição e impropério, vai fazer com que vos levanteis uns contra os outros, e quando moverem a sedição e a revolução, sofrereis tamanha tribulação que vossos vizinhos não vos poderiam causar”.

Pois o bem-aventurado Francisco, em sua pregação, não calava os vícios do povo, nas coisas em que ofendiam publicamente a Deus ao próximo. Mas o Senhor lhe dera tanta graça, que todos que o viam ou ouviam, pequenos e grandes, tinham tanto respeito e o veneravam poro causa da graça abundante que recebera de Deus, que por mais que fossem repreendidos por ele, ainda que se envergonhassem, ficavam edificados. Nessas ocasiões, algumas vezes até se convertiam ao Senhor nessas ocasiões, para que rogasse mais atentamente a Deus por eles. E aconteceu que, por permissão divina, depois de poucos dias, surgisse um escândalo entre os cavaleiros e o povo, de modo que o povo expulsou da cidade os cavaleiros. E os cavaleiros, com a Igreja, que os ajudava, devastaram muitos campos, vinhas, e árvores deles, e lhes fizeram todos os males que puderam. Mas o povo também devastou os campos, vinhas e árvores deles, e dessa forma o povo teve uma punição maior do que a de todos os seus vizinhos, a quem tinha ofendido. Por isso, o que fora predito sobre eles pelo bem-aventurado Francisco foi cumprido à letra.



[76]

Quando o bem-aventurado Francisco ia por um certa província, veio ao seu encontro o abade de um mosteiro, que tinha muita veneração por ele. O abade desceu do cavalo e falou com ele sobre a salvação de sua alma, aí por uma hora. Quando quiseram separar-se, o abade pediu ao bem-aventurado Francisco, com toda devoção, que rogasse ao Senhor por sua alma. Respondeu-lhe o bem-aventurado Francisco: “Vou faze-lo de boa vontade”.

 E quando o abade se havia afastado um pouco do bem-aventurado Francisco, disse o bem-aventurado Francisco a seu companheiro: Irmãos, esperemos um pouco porque quero rezar pelo abade, como prometi”. E orou por ele. Porque era costume do bem-aventurado Francisco, quando alguém lhe pedia por devoção que orasse ao Senhor por sua alma, derramava a oração por ele logo que podia, para não se esquecer depois. E andando o abade por seu caminho, não muito longe do bem-aventurado Francisco, o Senhor visitou-o de repente em seu coração, sentiu um certo calor suave ao redor de seu rosto, sendo elevado no excelso da mente, mas por um pouquinho de tempo.

Quando voltou a si, logo soube que o bem-aventurado Francisco tinha rezado por ele. E começou a louvar a Deus e a ter por isso uma alegria interior e exterior. A partir daí teve uma devoção maior pelo santo pai, considerando a grandeza de sua santidade, e teve consigo mesmo esse fato, enquanto viveu, como um grande milagre, e o contou muitas vezes aos irmãos e aos outros como lhe tinha acontecido.



[77]

Como o bem-aventurado Francisco teve durante muito tempo doenças do fígado, do baço e do estômago, e as teve até o dia de sua morte, e desde o tempo em que esteve no ultramar para pregar ao sultão da Babilônia e do Egito, teve a maior doença dos olhos por causa do muito trabalho e do cansaço da viagem, pois indo e voltando suportou o maior calor, mas nem por isso quis ter o cuidado de se fazer curar de alguma dessas enfermidades, ainda que, por seus frades e por muitos, com pena e compaixão dele, tivesse sido rogado a isso, pelo fervoroso espírito que teve desde o início de sua conversão para Cristo: porque, por causa da grande doçura e compaixão que colhia da humildade e dos vestígios do Filho de Deus, tomava e tinha como doce o que era amargo para a carne. Até mais: condoia-se tanto, todos os dias, das dores e amarguras de Cristo, que ele tolerou por nós, e por causa delas afligia-se tanto interior como exteriormente, que nem se importava com as suas próprias.



[78]

Por isso, certa ocasião, poucos anos depois de sua conversão, quando estava andando um dia sozinho não muito longe da igreja de Santa Maria da Porciúncula, ia chorando em voz alta e soluçando. Quando ia passando assim, um homem espiritual, que nós conhecemos e de quem ouvimos isto, que lhe tinha prestado muita misericórdia e consolação antes que tivesse algum frade e também depois, encontrou-se com ele. Movido de piedade por ele, perguntou-lhe: “Que tens, irmão?”. Pois achava que estava com a dor de alguma doença. Mas ele disse: “Assim deveria eu ir chorando e soluçando sem vergonha por todo o mundo a paixão do meu Senhor”. E o homem começou a chorar e a derramar muitas lágrimas com ele.



[79]

Em outra ocasião, no tempo de sua doença dos olhos, como estava tendo muitas dores por causa disso, disse-lhe um dia a um ministro: “Irmão, porque não fazes que seja lida por teu companheiro alguma passagem dos Profetas ou das outras Escrituras? Tua alma se exaltará e tirará daí a maior consolação”. Pois sabia que se alegrava muito no Senhor quando ouvia ser as divinas escrituras. Mas ele respondeu: “Irmão, encontro todos os dias tanta doçura e consolação na minha memória pela meditação dos vestígios do Filho de Deus, que mesmo que vivesse até o fim dos séculos, não me seria muito necessário ouvir ou meditar outras escrituras”. Daí, recordava e dizia muitas vezes aos frades aquele verso de Davi: Minha alma não quer outra consolação (Sl 76).

Por isso, como dizia muitas vezes aos frades que ele devia ser a forma e o exemplo de todos os frades, não queria usar em suas enfermidades não só os remédios mas mesmo os alimentos necessários. E como leva em conta isso que foi dito não só quando parecia estar são , ainda que sempre estivesse fraco e doente, mas também em suas enfermidades, era austero com o seu corpo.



[80]

Por isso, certa vez, quando tinha sarado um pouco de uma de suas maiores enfermidades, achou e ficou convencido de que tinha comido um pouco de iguaria naquela doença, ainda que comesse pouco, porque por causa das muitas, variadas e longas enfermidades não podia comer. Levantando-se um dia, como não estava libertado da febre quartã, mandou convocar o povo de Assis na praça para a pregação. Quando acabou a pregação, mandou-lhes que ninguém se afastasse enquanto ele não voltasse. Entrou na igreja de São Rufino para se confessar com Frei Pedro Cattani, que foi o primeiro ministro geral escolhido Poe ele, e com alguns outros frades, e ordenou a Frei Pedro em que tudo que ele quisesse dizer e fazer de si mesmo, obedecesse-o e não o contradissesse. Frei Pedro disse: “Irmão, nem posso nem quero querer outra coisa se não o que te agrada, de mim e de ti”. Tirando a sua túnica, o bem-aventurado Francisco ordenou a Frei Pedro que o levasse com um corda que tinha no pescoço nu diante do povo, e a outro frade ordenou que pegasse uma tigela cheia de cinza e subisse ao lugar onde tinha pregado e jogasse a cinza espalhando-a sobre a cabeça dele.

Mas o frade não obedeceu, pela piedade e compaixão que se moveram sobre ele. Frei Pedro levantou-se e o conduziu, como lhe tinha sido mandado, chorando muito; e os outros frades com ele. E aconteceu que, quando voltou assim despido diante do povo ao lugar onde tinha pregado, disse: “Vós e outros, que por meu exemplo deixam o século e entram na Religião e vida dos frades, credes que eu sou um homem santo, Mas eu confesso a Deus e vós que, nesta minha enfermidade, comi um caldo temperado com carne”. Quase todos começaram a chorar de piedade e compaixão por ele, principalmente porque estava fazendo muito frio, era tempo de inverno, e ele ainda não estava curado da febre quartã.

E batiam em seus peitos, dizendo: “Se esse santo se acusa de uma necessidade manifesta com tanta vergonha do corpo, e conhecemos a vida dele, que vemos vivo na carne com uma carne já meio morta por causa da superfluidade da abstinência e da austeridade que teve contra seu corpo desde o início de sua conversão a Cristo, que vamos fazer nós, miseráveis, que todo o tempo de nossa vida vivemos e quisemos viver segundo a vontade e os desejos da carne?



[81]

De maneira semelhante, certa vez, quando ficou em um eremitério para a quaresma de São Martinho e os frades, por causa de sua doença, prepararam com toucinho os pratos que lhe davam a comer, principalmente porque o óleo fazia muito mal a suas doenças, no fim da quaresma, quando pregava a uma grande congregação de povo, não muito longe daquele eremitério, disse-lhes logo no começo da pregação: “Vós viestes a mim com grande devoção e achais que eu sou um santo homem ms a Deus e a vós confesso que nesta quaresma, lá no eremitério, comi pratos temperados com toucinho”. Até mais, raras ou poucas vezes aconteceu que, se os frades ou os amigos dos frades, quando comia em suas casas, ou preparavam manifestamente alguma iguaria para seu corpo por causa das doenças, quando ele saia da casa não deixava de dizer, diante dos frades ou também diante dos seculares, que de nada sabiam, com toda clareza: “Como tais pratos”, não querendo ocultar às pessoas o que era manifesto diante de Deus.

Até, em toda parte ou diante de quem quer que fosse, religiosos ou seculares, se seu espírito fosse movido para a vanglória, para a soberba, ou para qualquer vício, confessava-se imediatamente diante deles, nuamente e sem encobrir nada. Por isso, uma vez, disse a seus companheiros: “Quero viver de tal maneira diante de Deus nos eremitérios e outros lugares onde fico, como as pessoas me conhecem e me vêem; porque se acham que eu sou um santo homem e eu não fizer o que convém que faça um homem santo, seria hipócrita”. Por isso em certa ocasião, no inverno, por causa da doença do baço e do frio no estômago, um dos companheiros, que era seu guardião, adquiriu uma pele de raposa, e rogou que permitisse costurar a pele no avesso da túnica, junto do baço e do estômago, porque, então, estava fazendo muito frio.

E ele, desde que começou a servir a Cristo, durante todo o tempo, até o dia de sua morte, nunca quis usar nem ter a não ser uma túnica remendada, quando queria remendá-la. Então o bem-aventurado Francisco respondeu: “Se queres que eu tenha esse pele por dentro, manda pôr algum pedacinho dessa pele por fora, costurada na túnica, como testemunho para as pessoas de que eu tenho uma pele por dentro”. E fez que fosse assim; mas não usou muito, ainda que lhe fosse necessária por causa de suas doenças.



[82]

Em outra ocasião, ia pela cidade de Assis e com ele iam muitas pessoas; e uma velhinha pobrezinha pediu-lhe uma esmola por amor de deus, e ele deu na mesma hora a capa que tinha nas costas. E na mesma hora confessou diante deles que tinha tido vanglória por causa disso. E há muitos outros exemplos parecidos com esses, que vimos e ouvimos nós que estivemos com ele, mas não podemos contar porque seria longo escrever e narrar.

O sumo e principal cuidado do bem-aventurado Francisco consistiu nisso: em não ser hipócrita diante de Deus. A inda que fossem necessários certos pratos para o seu corpo por causa da doença, não deixava de pensar que tinha que dar bom exemplo de si mesmo aos frades e aos outros, para não lhes dar ocasião de murmurar ou de mau exemplo. Por isso preferia suportar com paciência e boa vontade as necessidades do corpo, e agüentou-as até o dia de sua morte, em vez de satisfazer a si mesmo, embora pudesse faze-lo de acordo com deus e com o bom exemplo.



[83]

Quando o bispo de Óstia, que depois foi apostólico, viu que o bem-aventurado Francisco tinha sido e ainda era sempre tão austero com o seu corpo, e principalmente que começara a perder a luz de seus olhos mas não queria fazer-se curar disso, admoestou-o com muita piedade e compaixão dizendo-lhe: “Irmão, não ages bem quando não deixas que te ajudem na doença dos olhos, porque para ti e para os outros são muito úteis tua saúde e tua vida. Pois se tiveste compaixão de teus frades e sempre foste e és misericordioso com eles, não deverias ser cruel contigo mesmo numa necessidade e enfermidade tão grande e manifesta. Por isso eu te mando que te faças ajudar e tratar.

De maneira semelhante, dois anos antes de sua morte, quando já estava muito doente, especialmente da enfermidade dos olhos, e morasse numa pequena cela feita de esteiras junto de São Damião, considerando e vendo o ministro geral que estava tão afetado pela doença dos olhos, mandou-lhe que fizesse e deixasse ajudar e tratar. Chegou a dizer-lhe que queria estar presente quando o médico começasse a trata-lo, principalmente para que se fizesse cuidar mais seguramente. E para conforta-lo, porque estava muito afetado por isso. Nesse meio tempo, fazia muito frio e o tempo não era apropriado para as curas.

Como o bem-aventurado Francisco tivesse ficado deitado nesse lugar por uns cinqüenta dias ou mais, não podia ver a luz do dia nem a luz do fogo de noite, mas ficava sempre dentro da casa e permanecia no escuro naquela pequena cela. Além disso também tinha grandes dores nos olhos de dia e de noite, de modo que quase não podia dormir e descansar à noite: isso fazia muito mal e fazia agravar-se muito a doença dos olhos e as outras doenças. Além disso, se às vezes queria descansar e dormir, havia na casa e na celazinha em que estava deitado, que era feita de esteiras em uma parte da casa, tantos ratos passando e correndo por cima e ao redor dele, que não o deixavam dormir.

Mesmo no tempo da oração muito o impediam. E não só de noite mas também de dia atribulavam-no demais, de modo que, até quando comia, subiam na sua mesa de maneira que seus companheiros acharam que era uma tentação diabólica, e assim foi. Por isso, uma noite, pensando o bem-aventurado Francisco que estava tendo tantas tribulações, ficou com pena de si mesmo e disse lá dentro de si: “Senhor, olha para me socorrer, em minhas enfermidades, para que eu possa tolerar com paciência”. E, de repente, foi-lhe dito em espírito: “Dize-me, irmão: se alguém, por essas tuas enfermidades e tribulações te desse um tesouro tão grande e precioso que, se toda a terra fosse puro ouro, todas as pedras fossem pedras preciosas, e toda a água fosse bálsamo, todavia tu reputarias e terias por nada tudo isso, por serem matérias: terra, pedras e água, em comparação com o grande e precioso tesouro que te será dado. Não te alegrarias muito?

O bem-aventurado Francisco respondeu: “Senhor, esse tesouro seria grande e impossível de investigar até o fim, muito precioso e por demais amável e desejável”. E lhe disse: “Então, irmão, alegra-te e te rejubila bastante em tuas enfermidades e tribulações, porque de resto podes estar tão seguro como se já estivesses no meu reino”. Ao acordar de manhã, disse aos seus companheiros: “Se um imperador desse um reino inteiro a um seu servo, ele não deveria alegrar-se muito? E se desse todo o império, não se alegraria ainda mais? E lhes disse: “Por isso eu tenho que me alegrar agora com minhas doenças e tribulações e me confortar no Senhor, e sempre dar graças a deus pai e a seu único Filho nosso Senhor Jesus Cristo, e ao Espírito Santo, por tamanha graça e bênção que me deram, porque, vivendo ainda na carne, por sua misericórdia dignou-se dar-me a certeza do reino, a mim, seu servozinho indigno.

Por isso eu quero, para o seu louvor e para nossa consolação e edificação do próximo, fazer um novo Louvor do Senhor por suas criaturas, das quais nos servimos todos os dias e sem as quais não podemos viver. E nas quais o gênero humano ofende muito o Criador, e todos os dias somos ingratos por tão grande graça, porque não louvamos como devemos o nosso Criador e doador de todos os bens”.

E sentando-se começou a meditar e depois a dizer: “Altíssimo, onipotente, bom Senhor”. E compôs um cântico nessas palavras e ensinou seus companheiros a cantá-lo. Pois seu espírito estava, então, em tamanha doçura e consolação, que queria mandar buscar Frei Pacífico, que no século era chamado rei dos versos e foi um mestre muito cortês de cânticos, e dar-lhe alguns frades bons e espirituais, para que fossem pelo mundo pregando e louvando a Deus. Pois queria e dizia que, primeiro, algum deles, que soubesse pregar, pregasse ao povo, e depois da pregação cantassem os Louvores do Senhor como jograis de deus.

Terminados os Louvores, queria que o pregador dissesse ao povo: “Nós somos os jograis do Senhor e nisto queremos a vossa remuneração, isto é, que estejais na verdadeira penitência”. E dizia: “Que são os servos de Deus senão, de algum modo, uns jograis seus, que devem mover o coração dos homens e levanta-los para a alegria espiritual?”. E especialmente dos frades menores dizia que foram dados ao povo para sua salvação.

Pois os Louvores do Senhor que vez, a saber: Altíssimo, onipotente, bom Senhor, deu-lhes o nome de Cântico de Frei Sol, que a é a mais bonita de todas as criaturas e mais pode a Deus se assemelhar. Por isso, dizia: “De manhã, quando nasce o sol, toda pessoa deveria louvar a deus que o criou, porque por ele os olhos se iluminam de dia; de tarde, quando cai a noite, toda pessoa deveria louvar a Deus pela outra criatura, o irmão fogo, porque por ele nossos olhos se iluminam de noite”. E disse: “Nós todos somos como que cegos, e o Senhor ilumina nossos olhos por essas duas criaturas. Por isso sempre devemos louvar o glorioso Criador por essas e outras criaturas suas de que usamos todos os dias”.

Porque em sua saúde e enfermidade fez e fazia de boa vontade louvar o Senhor e também animava os outros a isso. Mesmo quando estava sofrendo pela doença, começava ele mesmo a dizer os Louvores do Senhor, e depois fazia que seus companheiros cantassem para que, em consideração do louvor do Senhor, pudesse ser esquecida a atrocidade das dores e doenças. E assim fez até o dia de sua morte.



[84]

Nesse mesmo tempo, quando jazia doente, tendo já pregado e composto os Louvores, o que então era bispo da cidade de Assis, excomungou o prefeito da cidade. Pois, indignado contra ele, o que era prefeito fez forte e curiosamente preconizar pela cidade de Assis que ninguém vendesse ou comprasse alguma coisa dele, ou fizesse algum contrato; e por isso eles se odiavam muito um ao outro.

O bem-aventurado Francisco, como estava tão doente. Ficou com pena deles, principalmente porque nenhum religioso ou secular se intrometia para cuidar de sua paz e concórdia. E disse a seus companheiros: “É uma grande vergonha para vós, servos de Deus, que o bispo e o prefeito se odeiem desse jeito e nenhuma pessoa entre no meio para cuidar de sua paz e concórdia”. E sim fez um verso nas seus Louvores para aquela ocasião, este: Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdiam pelo teu amor e suportam enfermidade e tribulação; bem-aventurados os que as suportarem em paz, porque por ti, Altíssimo, serão coroados”.

Depois chamou um de seus companheiros, dizendo-lhe: “Vá dizer de minha parte ao prefeito que ele com os magnatas da cidade e outros, que pode levar consigo, venha ao palácio do bispo”. E quando ele foi disse a outros dois companheiros seus: “Ide também diante do bispo, do prefeito e dos outros que estão com eles e cantai o Cântico de Frei Sol. E confio no Senhor que há de humilhar os corações deles, vão fazer as pazes entre eles e voltaram à antiga amizade e bem-querer”. E quando todos se reuniram na praça do claustro da casa do bispo, levantaram-se aqueles dois frades e um disse: “O bem-aventurado Francisco compôs em sua doença os Louvores do Senhor por suas criaturas, para louvor dele e edificação do próximo. Por isso ele vos roga que as ouçais com grande devoção”.

E então começaram a cantar e a dizer-lhes. E imediatamente o prefeito levantou-se, juntou os braços e as mãos com grande devoção, como se fosse o Evangelho do Senhor, e também com lágrimas, ouviu atentamente. Pois tinha muita confiança e devoção pelo bem-aventurado Francisco. Quando acabaram os Louvores do Senhor, o prefeito disse diante de todos: “Na verdade eu vos digo que perdôo não só ao senhor bispo, que preciso ter como meu senhor, mas perdoaria mesmo quem matasse meu irmão ou filho”. E assim se lançou aos pés do senhor bispo, dizendo-lhe: “Eis que estou pronto a satisfazer-vos em tudo, como vos aprouver por amor de nosso Senhor Jesus Cristo e de seu servo bem-aventurado Francisco”.

O bispo, tomando-o pelas mãos, levantou-o e lhe disse: “Por meu ofício convinha que eu fosse humilde, mas como sou notavelmente inclinado à ira, é preciso que me perdoes”. E assim com muita bondade e afeição se abraçaram e beijaram”. E os frades ficaram muito admirados, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco porque aconteceu à letra o que o bem-aventurado Francisco tinha predito sobre a paz e a concórdia deles.

E todos os outros, que lá estavam presentes e que ouviram, tiveram o fato como um grande milagre, atribuindo-o aos méritos do bem-aventurado Francisco, porque o senhor visitou-os tão depressa que, sem lembrar nenhuma palavra, voltaram de tamanho escândalo para tanta concórdia. Por isso nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco damos testemunho de que predizia: “Alguma coisa é assim, ou vai ser”, acontecia quase à letra. E nós vimos com nossos olhos, mas seria longo escrever e contar todas essas coisas.



[85]

Semelhantemente, naqueles dias e no mesmo lugar, depois que o bem-aventurado Francisco compôs os Louvores do Senhor pelas criaturas, também fez algumas palavras com canto para maior consolação das senhoras pobres do mosteiro de São Damião, principalmente porque sabia que elas estavam muito atribuladas por sua enfermidade.

E como não podia consola-las e visitá-las pessoalmente por sua doença, quis que aquelas palavras fossem anunciadas por seus companheiros. Nessas palavras, então e sempre, quis deixar para elas, com clareza e brevidade, a sua vontade: como deveriam ser unânimes na caridade e comportar-se umas com as outras, porque por seu exemplo e pregação foram convertidas a Cristo, quando os frades ainda eram poucos.

A conversão e o comportamento delas é exaltação e edificação não só para a Religião dos frades, da qual é uma plantinha, mas também para toda a Igreja de Deus. Então, como o bem-aventurado Francisco sabia que, desde o começo de sua conversão, elas tinham levado e levavam ainda vida dura e pobrezinha e, por vontade e necessidade, seu espírito sempre se movia de piedade para com elas.

Por isso, nessas mesmas palavras rogou-as que, como o Senhor tinha-as reunido de muitas partes para a santa caridade, a santa pobreza e a santa obediência, nelas deviam assim viver sempre e morrer. E especialmente que deviam prover seus corpos com as esmolas que Deus lhes desse, com alegria, ação de graças e discrição. E mais do que tudo que as sãs, no trabalho que mantinham por suas irmãs doentes, e as enfermas fossem pacientes em suas doenças e nas necessidades que padeciam.



[86]

Mas aconteceu que, quando se aproximou o tempo adequado para tratar da doença dos olhos, o bem-aventurado Francisco saiu daquele lugar, embora estivesse muito doente dos olhos.

Levava na cabeça uma espécie de capuz grande, como os frades tinham feito para ele, e um pano de lã e linha costurado no capuz na frente dos olhos, porque não podia olhar e ver a luz do dia por causa das grandes dores provenientes da doença dos olhos. E os companheiros levaram-no em uma montaria para o eremitério de Fonte Colombo, perto de Rieti, para ter uma consulta com um médico de Rieti que sabia medicar a doença dos olhos. Quando foi lá, o médico disse ao bem-aventurado Francisco que queria fazer uma cauterização desde o maxilar até o supercílio de seu olho, que era mais doente que o outro. Mas o bem-aventurado Francisco não queria começar o tratamento antes que chegasse Frei Elias.

Como o esperaram e não veio, porque, por muitos impedimentos que teve, não pôde vir, ele também duvidava se devia começar o tratamento. Mas, forçado pela necessidade, principalmente por obediência ao senhor bispo de Óstia e do ministro geral, propô-se a obedece-los, embora fosse muito duro para ele que tivessem tantas solicitudes por sua causa. Por isso queria que seu ministro tomasse a decisão.

Depois, uma noite, como não pudesse dormir por causa das dores de sua doença, com piedade e compaixão por si mesmo, disse a seus companheiros: “Caríssimos irmãos e filhos meus, que não vos aborreça nem seja pesado trabalhar pela minha doença, porque o Senhor, por mim, seu pequeno servo, vai restituir-vos todo o fruto de vossas ações neste século e no que vem pelo que não puderdes fazer por vossa solicitude e enfermidade. Vós até tereis um lucro maior por isto do que os que ajudam toda a religião e a vida dos frades. Até podeis também dizer-me: Fazemos nossas despesas por ti e o Senhor vai ficar nosso devedor.

Mas o santo pai dizia essas coisas para ajudar e levantar a pusilanimidade e a fraqueza do espírito deles, para que não acontecesse que, alguma vez, tentados por causa daquela trabalho, viessem a dizer: “Nós não somos capazes de rezar nem de tolerar tanto trabalho”, e não se tornassem tediosos e pusilânimes, perdendo assim o fruto do trabalho.

E aconteceu que, um dia, veio o médico, trazendo o ferro com fazia cauterizações para a doença dos olhos; mandou fazer fogo para esquentar o ferro e, quando o fogo foi aceso, colocou nele o ferro. O bem-aventurado Francisco, para dar força ao seu espírito e não se assustar, disse ao fogo: “Meu irmão fogo, nobre e útil entre as outras criaturas que o Altíssimo criou, sê cortês comigo nesta hora, porque outrora eu te amei e ainda amarei por amor daquele Senhor que te criou. Também suplico ao nosso Criador, que te criou, que tempere teu calor de tal forma que eu possa suporta-lo”. Quando acabou a oração, fez o sinal da crua sobre o fogo.

Mas nós que estávamos com ele fugimos todos, por piedade e compaixão com ele, deixando o médico sozinho com ele. Feita a cauterização, voltamos para junto dele. Ele nos disse: “Medrosos e de pouca fé, por que fugisteis? Na verdade eu vos digo que não senti nenhuma dor nem o calor do fogo; até, se não está bem cozido, pode cozinhar melhor!”.

O médico ficou muito admirado com isso, tendo-o por um grande milagre, porque ele não se mexeu nem um pouco. E o médico disse: “Meus irmãos, eu vos digo que, com a experiência que tenho de algumas pessoas, temo que não poderia suportar uma cauterização tão grande não só uma pessoa fraca e doente, mas mesmo alguém que fosse forte e corporalmente sadio”.

Pois a cauterização foi longa, começando perto da orelha e chegando até o supercílio do olho, por causa do líquido que escorria do olho todos os dias, dia e noite, por muitos anos. Por isso foi necessário, de acordo com o pensamento daquele médico, que todas as veias da orelha até o supercílio do olho, fossem cortadas, o que era totalmente contrário de acordo com a opinião dos outros médicos; e essa era a verdade, porque de nada lhe adiantou. Do mesmo jeito, um outro médico furou-lhe as duas orelhas, e também não lhe adiantou nada. E não é de admirar se o fogo e outras criaturas às vezes o veneravam: porque, como vimos nós que estivemos com ele, amava-as e as venerava com tanto afeto de caridade.

E se deleitava tanto com elas, e seu espírito tinha tamanha compaixão e piedade por elas que se perturbava quando alguém não as tratava bem. E também conversava com elas com alegria interior e exterior, como se sentissem, entendessem e falassem de Deus, de forma que, muitas vezes, quando fazia isso, era arrebatado na contemplação de deus. Pois, uma vez, quando estava sentado perto do fogo, sem que ele percebesse, o fogo invadiu seus panos de linho que cobriam a perna. Quando sentiu o calor do fogo e o seu companheiro viu que o fogo estava queimando seus panos, correu para apagá-lo. Mas ele lhe disse: “Irmão caríssimo, não queira fazer mal ao irmão fogo”. E assim não lhe permitiu de modo algum que o apagasse.

Mas ele foi na mesma hora ao frade que era seu guardião, levou-o a ele, e assim, contra a vontade dele, começou a apagar o fogo. Ele não queria que apagassem as velas, as candelas, as lâmpadas ou o fogo, como se costuma fazer quando é necessário, tanta era a piedade e afeto que tinha por ele. Também não queria que o irmão jogasse fora fogo ou lenha fumegante, como é costume fazer muitas vezes, mas queria que os colocasse delicadamente no chão, por reverência Àquele de quem é criatura.



[87]

Outra vez, quando vez uma quaresma no Monte Alverne, um dia, quando o seu companheiro, na hora de comer, acendeu fogo na cela onde ele comia, deixou o fogo aceso e foi para junto do bem-aventurado Francisco na cela onde rezava e dormia, de acordo com o costume, para ler para si mesmo o santo Evangelho que se dizia na missa daquele dia; porque o bem-aventurado Francisco, quando não podia ir à Missa, sempre queria ouvir o Evangelho daquele dia antes de comer.

Quando o bem-aventurado Francisco veio comer na cela onde estava aceso o fogo, a chama do fogo já tinha subido até o alto da cela e ela estava queimando. Seu companheiro começou a apagar o fogo, como podia, mas sozinho não conseguia. E o bem-aventurado Francisco não quis ajudá-lo; pegou uma pele com que se cobria de noite e foi para o bosque. Os frades do lugar, embora permanecessem longe da cela, porque a cela ficava afastada do lugar dos frades, quando perceberam que a cela ardia, foram e apagaram o fogo. Depois o bem-aventurado Francisco voltou para comer. Depois da refeição, disse a seu companheiro: “Não quero mais me cobrir com esta pele porque por avareza não quis que o irmão fogo a comesse”.



[88]

Também, quando lavava as mãos, escolhia um lugar em que aquela água usada não fosse pisada pelos pés. Quando precisava andar sobre pedras, fazia-o com temor e reverência, por amor daquele que é chamado de Pedra. Por isso, quando dizia aquele versículo do Salmo onde se lê: Exaltaste-te sobre a pedra ((cfr. Sl 60,3), por grande reverência e devoção dizia: “Exaltaste-me sob os pés da Pedra”.

Também dizia para o frade que cortava lenha para o fogo que não cortasse a árvore inteira, mas que as cortasse de tal modo que uma parte fosse cortada e outra ficasse. Também deu essa ordem a um frade do lugar onde ele morava. Também dizia ao frade que cuidava da horta que não cultivasse toda a terra da horta só para ervas comestíveis, mas deixasse uma parte de terra para produzir ervas viçosas que, a seu tempo, produzissem flores para os frades. Dizia até que o irmão hortelão devia fazer um bonito canteiro, em algum canto da horta, pondo e plantando aí de todas as plantas odoríferas e todas as plantas que produzem flores bonitas, para que, a seu tempo, convidassem os que as viam ao louvor de Deus, porque toda criatura diz e clama: “Deus me fez por tua causa, ó homem”.

Por isso nós que estivemos com ele costumávamos vê-lo sempre alegre, interior e exteriormente, com quase todas as criaturas, tocando-as e olhando-as com prazer, que seu espírito não parecia estar na terra mas no céu. E isso é manifesto e verdadeiro, porque por causa das muitas consolações que teve e tinha por causa das criaturas de Deus, um pouco antes de sua morte compôs e fez uns Louvores do Senhor por suas criaturas, para animar os corações dos ouvintes para o louvor de deus e para que o Senhor fosse louvado por todos em suas criaturas.



[89]

Nesse mesmo tempo, uma mulher pobrezinha de Machilone foi a Rieti por causa de uma doença dos olhos. Certo dia, quando o médico veio ao bem-aventurado Francisco, disse-lhe: “Irmão, uma mulher doente dos olhos veio me procurar; mas é tão pobrezinha que tenho que ajuda-la por amor de Deus e pagar suas despesas”.

Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco ficou com pena dela, chamou um de seus companheiros, que era o guardião, e lhe disse: “Irmão guardião, temos o que devolver o que é dos outros”. Ele disse: “O que é, irmão?”. E ele: “Temos que devolver esta capa que recebemos emprestada daquela mulher pobrezinha e doente dos olhos”. Disse-lhe o guardião: “Irmão, faz o que te parecer melhor”. O bem-aventurado Francisco chamou alegremente um homem espiritual, que era muito familiar, e lhe disse: “Pega esta capa, e com ela doze pães, e vai disser isto àquela mulher pobrezinha e enferma, que o médico que cuida dela vai te mostrar: O homem pobre a quem emprestastes este manto te agradece pelo empréstimo do manto que lhe fizeste; pega o que é teu”.

Ele foi e falou tudo como o bem-aventurado Francisco tinha dito. Mas a mulher, pensando que estava sendo enganada, disse-lhe com medo e vergonha: “Deixa-me em paz, não sei do que falas”. Mas ele colocou o manto e os doze pães na mão dela. Quando a mulher viu que estava falando a verdade, recebeu-o com tremor e agitação do coração e, com medo de que lhe tirassem, levantou-se ocultamente de noite e voltou alegre para sua casa. O bem-aventurado Francisco tinha até dito ao seu guardião que, enquanto estivesse lá, fizesse-lhe os pagamentos por amor de Deus.

Por isso, nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco damos testemunho dele, que era de tão grande caridade e piedade em sua saúde {e enfermidade] não só com seus frades mas também com os pobres, sãos e doentes. A ponto de dar aos outros, com muita alegria interior e exterior, o que era necessário a seu corpo, e que os frades às vezes adquiririam com muita solicitude e devoção, agradando-nos primeiro para que não ficássemos perturbados, mas tirando do seu corpo ainda que lhe fosse muito necessário. E por isso o ministro geral e o guardião mandaram-lhe que não desse sua túnica a nenhum frades, sem sua licença; porque os frades, pela devoção que lhe tinham, às vezes pediam e ele dava na mesma hora. Ou então, ele mesmo, vendo algum frade enfermiço, ou mal vestido, às vezes dava-lhe a túnica, às vezes dividia-a e dava uma parte, guardando a outra parte para si, porque não usava nem queria ter a ser uma única túnica.



[90]

Daí que em certo tempo, quando ia pregando por certa província, aconteceu que dois frades franceses se encontrassem com ele e receberam dele a maior consolação. Mas no fim pediram sua túnica, “por amor de deus”, por devoção. Ele, assim que ouviu falar em amor de Deus, despiu a túnica, ficando despido por cerca de uma hora. Porque ra costume do bem-aventurado Francisco, quando alguém dizia: “Dá-me a túnica ou o cordão por amor de Deus”, ou outra coisa que tivesse, dava na mesma hora, por reverência àquele Senhor, que é chamado de Amor. Até ficava muito aborrecido e repreendia os frades quando os ouvia falar no amor de Deus por qualquer coisa. Pois dizia: “Tão altíssimo é o amor de Deus, que raramente e só em grande necessidade deveria ser nomeado com muita reverência”.

Mas um deles despiu sua túnica e lha deu. Pois muitas vezes ele sofria muita necessidade e tribulação por causa disso, quando dava sua túnica ou uma parte dela a alguém, porque não podia encontrar ou mandar fazer outra tão depressa. Principalmente porque queria sempre usar e ter uma túnica pobrezinha, de retalhos, e algumas vezes queria que fosse remendada por dentro e por fora. Porque raramente ou nunca queria ter ou usar uma túnica de pano novo, mas adquiria de algum frade a sua túnica, que tinha usado por muitos dias, e também às vezes recebia de um frade uma parte da túnica e, de outro, outra.

Mas às vezes remendava-a por dentro com pano novo por causa de suas muitas doenças e friezas. E manteve e observou esse modo de pobreza em suas roupas até o ano em que migrou para o Senhor. Pois poucos dias antes de sua morte, porque era hidrópico q quase todo ressecado, e por causa de muitas outras doenças que tinha, os frades fizeram-lhe diversas túnicas, para poderem trocá-las de dia e de noite, quando fosse necessário.



[91]

Outra vez, um pobrezinho veio com roupas muito pobres a um eremitério dos frades, e pediu por amor de Deus aos frades uma peça pobrezinha. O bem-aventurado Francisco disse a um irmão que procurasse pela casa para ver se achava algum pano ou pedaço para lhe dar. Rodando pela casa, o frade disse que não achou. Mas para que o pobre não voltasse sem nada, o bem-aventurado Francisco foi ocultamente, para que seu guardião não lhe proibisse, pegou uma faca e, sentando-se num lugar escondido, começou a cortar um pedaço de sua túnica, que estava costurado pelo lado de dentro, querendo dá-lo secretamente ao pobre.

Mas o guardião logo percebeu o que ele queria fazer, foi ao seu encontro e proibiu que desse, principalmente porque então estava fazendo muito frio e ele estava doente e muito resfriado. mas o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Se não queres que lhe dê, é preciso absolutamente que se faz dar algum retalho ao pobre”. Então aqueles frades deram um pano de suas roupas, em nome do bem-aventurado Francisco.

Quando os frades lhe arranjavam uma capa, tanto quando ia pelo mundo pregando [a pé ou montado num burrico] - porque depois que começou a ficar doente não conseguia ir a pé e por isso precisava, às vezes, montar num burrico, porque a cavalo só queria montar quando houvesse uma necessidade estrita e maior, e isso pouco antes de sua morte, quando começou a ficar muito doente - ou estivesse em algum lugar, não queria recebe-la senão daquele jeito, isto é, que se encontrasse com um pobrezinho ou este fosse procura-lo, pudesse dá-la se lhe fosse manifestamente necessária e se o espírito lhe desse testemunho a respeito.



[92]

Certa ocasião, no começo da religião, quando morava em Rivotorto com os dois frades que ram os únicos que tinha naquele tempo, eis que alguém, que foi o terceiro frade, veio do século para assumir sua vida. E aconteceu que, como ficasse vestido por diversos dias com as roupas que trouxera do século, um pobrezinho veio ao lugar pedindo esmola ao bem-aventurado Francisco. O bem-aventurado disse ao que foi o terceiro frade: : Dá ao pobrezinho a tua capa”. Ele tirou na mesma hora de suas costas, com grande alegria, e deu ao pobre. Por isso pareceu-lhe que na mesma hora deus lhe havia colocado uma nova graça em seu coração nessa ocasião, pois dera a capa ao pobre com alegria.



[93]

Em outra ocasião, quando permaneciam junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula, uma mulher, velhinha e pobrezinha, que tinha dois filhos na Religião dos frades, foi àquele lugar pedindo alguma esmola ao bem-aventurado Francisco, principalmente porque naquele ano não tinha do que poder viver. O bem-aventurado Francisco disse a Frei Pedro Cattani, que era então ministro geral: “Será que nós temos alguma coisa para dar à nossa mãe?”. Porque dizia que era mãe sua e de todos os frades da religião a que fosse mãe de algum frade. Frei Pedro respondeu-lhe: “Na casa não temos nada que possamos dar-lhe, principalmente porque ela quer uma esmola que possa ser suficiente para o que é necessário ao seu corpo. Na igreja só temos um Novo Testamento, em que lemos as leituras de matinas”.

Pois naquele tempo os frades não tinham breviários nem muitos saltérios. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Dá a nossa mãe o Novo Testamento, para que o venda para a sua necessidade; creio firmemente que vai agradar mais a Deus e à bem-aventurada Virgem que se nele lesses”. E assim o deu a ela. Pois o bem-aventurado Francisco pode dizer-se o que foi dito do bem-aventurado Jô: Minha comiseração saiu e cresceu comigo desde o útero de minha mãe (cfr. Jô 31,18). Por isso, para nós que estivemos com ele, seria muito longo escrever e contar não só o que ouvimos de outros a respeito de sua caridade e piedade para com os pobres, mas também o que vimos com nossos olhos.



[94]

No mesmo tempo, vivendo o bem-aventurado Francisco no eremitério de Sapo Francisco de Monte Colombo, aconteceu que uma certa doença dos bois, chamada vulgarmente “basabove”, da qual nenhum pode escapar, atacou os bois de Santo Elias, que fica perto do eremitério, de modo que todos eles começaram a adoecer e morrer. Mas uma noite foi dito em visão a um homem spiritual daquela vila: ”Vá ao eremitério onde mora o bem-aventurado Francisco e a água usada para lavar seus pés e mãos, jogue-a sobre os bois, e vão ficar imediatamente libertados”.

O homem levantou-se bem cedinho, foi ao eremitério e disse tudo isso aos companheiros do bem-aventurado Francisco. Eles, na hora da refeição, recolheram numa vasilha a água que tinha sido usada para ele lavar as mãos; de tarde também pediram que os deixasse lavar seus pés, sem falar nada daquele assunto. E assim deram depois ao homem a água usada para lavar as mãos e os pés do bem-aventurado Francisco; e levou e aspergiu-a como água benta sobre os bois, que estavam deitados quase mortos, e sobre todos os outros. E na mesma hora, pela graça de Deus e pelos méritos do bem-aventurado Francisco ficaram todos livres. Naquele tempo o bem-aventurado Francisco tinha cicatrizes nas mãos, nos pés e no lado.



[95]

Nesses mesmos tempos, como o bem-aventurado Francisco estava doente da enfermidade dos olhos e por alguns dias permanecesse no palácio do bispo de Rieti, um clérigo da diocese de Rieti, chamado Gedeão, homem muito mundano, jazia doente havia muitos dias por uma enfermidade grande e com a maior dor dos rins. De tal modo que não podia se mexer nem se virar na cama sem ajuda, nem levantar-se ou andar a não ser carregado e, quando ia carregado, ia encurvado e quase dobrado por causa das dores dos rins: pois nem podia levantar-se um pouco.

Um dia fez-se levar até onde estava o bem-aventurado Francisco, lançou-se aos seus pés e pediu com muitas lágrimas que fizesse o sinal da cruz sobre ele. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Como vou te fazer o sinal se vivestes outrora sempre segundo os desejos da carne, não levando em conta nem temendo os juízos de Deus? Mas vendo-o tão afligido pela grande doença e pelas dores, ficou com pena dele e lhe disse: “Eu te assinalo em nome do Senhor. Mas se aprouver ao Senhor libertar-te, toma cuidado para não voltar ao vômito, porque na verdade eu te digo que, se voltares ao vômito, virão coisas piores que as de antes e vais incorrer num juízo duríssimo, por causa de teus pecados e por ser ingrato e ignorar a bondade do Senhor”.

E quando o bem-aventurado Francisco fez o sinal da cruz sobre ele, ele se ergueu e se levantou, libertado interiormente na mesma hora. Quando se ergueu, os ossos de suas costas soaram como se alguém estivesse quebrando lenha seca. Mas como depois de alguns dias voltou ao vômito e não observou o que o Senhor lhe tinha dito por seu servo Francisco, aconteceu que um dia, quando foi jantar na casa de outro cônego, seu companheiro, e tivesse dormido lá nessa noite, caiu de repente o telhado da casa em cima de todos. Mas os outros escaparam da morte, só o coitado foi atingido e morto.



[96]

Depois da volta de Sena e de Celle de Cortona, o bem-aventurado Francisco foi para junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, e depois foi ficar no lugar de Bagnaria, acima de Nocera. Fazia pouco tempo que tinha construído aí uma casa para os frades, para que ali morassem. E lá ficou por muitos dias. E como seus pés, e também as pernas, já tinham começado a inchar por causa da hidropisia, começou a ficar muito doente nesse lugar. Quando as pessoas de Assis ouviram dizer que ele estava doente lá, vieram rapidamente alguns soldados de Assis àquele lugar para leva-lo para Assis, com medo de que morresse ali e outros ficassem com o seu santíssimo corpo. E aconteceu que quando o estavam levando doente, descansaram num castro do condado de Assis, querendo almoçar aí.

O bem-aventurado Francisco com seus companheiros descansou na casa de um homem que o acolheu com alegria e caridade. Mas os soldados foram pelo castro para comprar o que era necessário para seu corpo, mas não encontraram. Voltaram ao bem-aventurado Francisco dizendo-lhe, em brincadeira: “Irmão, vai ser preciso que nos d6es de tuas esmolas, porque não encontramos nada para comprar”. E o bem-aventurado Francisco disse-lhes com grande fervor de espírito: “Não encontrastes porque confiastes em vossas moscas, isto é, no dinheiro, e não em deus; mas voltai pelas casas às quais já fostes pedindo para comprar e, sem ficar envergonhados, pecai-lhes esmolas por amor de Deus, que o Espírito Santo vai inspira-los e encontrareis com abundância”. Por isso eles foram e pediram esmolas, como lhes dissera o santo pai, e aqueles homens e mulheres lhes deram abundantemente, de tudo que tinham, divertindo-se a valer.

E e voltaram muito alegres ao bem-aventurado Francisco contando-lhe o que tinha acontecido. E tiveram isso por um grande milagre, considerando que na verdade aconteceu à letra o que lhes tinha predito. Pois o bem-aventurado Francisco tinha como a maior nobreza, dignidade e cortesia segundo deus e também segundo este século, pedir esmolas por amor de Deus. Porque tudo que o Pai celeste criou foi para a utilidade do homem, por amor do seu dileto filho, e continua a concede-lo de graça e por esmola depois do pecado, aos dignos e indignos, por amor de seu dileto Filho. Por isso o bem-aventurado Francisco dizia que o servo de Deus deve ir pedir esmolas por amor de deus como mais liberdade do que uma pessoa que, por sua cortesia e liberalidade, querendo comprar alguma coisa, saísse dizendo: “A quem me der tal moeda, darei cem marcos de prata, e até mil vezes mais: porque o servo de Deus oferece o amor de Deus que é merecido pela pessoa que dá esmolas, em cuja comparação tudo que existe neste século e também o que há no céu não é nada”.

Por isso, antes que os frades se tivessem multiplicado [e mesmo depois que se multiplicaram], quando o bem-aventurado Francisco ia pregando pelo mundo, se alguma pessoa nobre e rica com devoção insistisse com ele para comer em sua casa e lá hospedar-se, porque em muitas cidades e castros em que ia pregar ainda não havia lugares dos frades, no seu tempo, ainda que soubesse que a pessoa que o estava convidando tinha preparado abundantemente tudo que é necessário ao corpo por amor do Senhor Deus, ele, para dar bom exemplo aos frades e pela nobreza e dignidade da senhora pobreza, na hora da refeição ia pedir esmolas.

E algumas vezes dizia aos que o tinham convidado: “Eu não quero deixar a minha dignidade real, a herança, a vocação e a minha profissão e dos frades menores. Isso quer dizer ir pedir esmolas, mesmo que não traga mais do que três esmolas, porque quero exercer o meu ofício”. E ia pedir esmolas contra a vontade de quem convidara, que saía com ele, e recebia as esmolas que o bem-aventurado Francisco conseguia e, por devoção a ele, guardava-as como relíquia. Quem escreveu viu isso muitas vezes, e deu testemunho.



[97]

Pois até, certa vez, quando foi visitar o senhor bispo de Hóstia, que depois foi papa, saiu como que furtivamente, por causa do senhor bispo, na hora da refeição, e foi pedir esmolas. Quando voltou, o senhor bispo estava sentado à mesa e comia, principalmente porque tinha alguns cavaleiros seus consangüíneos para o almoço.

O bem-aventurado Francisco pôs as esmolas em cima da mesa do senhor bispo, e foi ficar na mesa junto do senhor bispo, porque o senhor bispo sempre queria que, quando o bem-aventurado Francisco estivesse em sua casa na hora da refeição, senta-se ao seu lado. E o senhor bispo ficou um pouco envergonhado por isso,, porque Francisco tinha isso pedir esmolas, mas não disse nada, principalmente por causa dos convidados. Depois de ter comido um pouco, o bem-aventurado Francisco pegou suas esmolas e deu, da parte do Senhor Deus, um pouco para cada cavaleiro ou capelão do senhor bispo. Todos receberam igualmente com muita devoção: alguns comeram, outros guardaram por devoção para com ele. Até tiravam seus chapéus por devoção a São Francisco quando recebiam as esmolas.

O senhor bispo ficou contente pela devoção deles, principalmente porque aquelas esmolas não eram de pão de trigo. Depois da refeição, o bispo levantou-se e entrou em sua sala, levando consigo o bem-aventurado Francisco, e levantando os braços abraçou o bem-aventurado Francisco por causa da enorme alegria e exultação, dizendo-lhe: “Por que, meu irmão simplório, me fizeste passar essa vergonha de ir pedir esmola na minha casa, que é a casa dos teus frades? Respondeu-lhe o bem-aventurado Francisco: “Ao contrário, senhor, eu vos prestei uma grande honra, porque quando um súdito exerce e cumpre seu ofício e a obediência ao seu senhor, honra ao seu senhor e aos seu prelado”. E disse-lhe: “Eu tenho que ser a forma e o exemplo de vossos pobres, principalmente porque sei que na vida e na Religião dos frades há e haverá frades menores de nome e de fato, que pelo amor do Senhor Deus e pela unção do Espírito Santo, que os ensina e há de ensina-lo ssobre tudo, vão se humilhar m toda humildade, submissão e serviço de seus irmãos.

Também há e haverá daqueles que, ou detidos pela vergonha e por causa do mau exemplo acham e acharão indigno humilhar-se e rebaixar-se para ir pedir esmolas e fazer esse tipo de obras servis. Por isso é preciso que eu ensine por obra os que estão e estarão na Religião, para que não possam desculpar-se nem neste século nem no futuro diante de Deus”. Estando, pois, junto de vós, que sois nosso senhor e apostólico, e junto de magnatas e ricos segundo o século, que por amor do Senhor Deus não só me recebem com tanta devoção em suas casas mas até me obrigam a ficar com eles, não quero ter vergonha de ir pedir esmolas. Até quero ter e manter segundo deus como uma grande nobreza, dignidade real e honra daquele sumo rei que, mesmo sendo o senhor de tudo, por nós quis fazer-se o servo de todos. E sendo rico e glorioso em sua majestade, veio pobre e desprezado em nossa humanidade.

Por isso quero que saibam os meus frades atuais e futuros que acho que é a maior consolação da alma e do corpo quando me assento à mesa pobrezinha dos frades, e vejo na minha frente as esmolas pobrezinhas que ganham de porta em porta por amor do Senhor Deus, mais do que quando me assento à vossa mesa ou dos outros senhores, preparada com abundância de todos os pratos, ainda que me estejam fazendo essa oferta com muita devoção. Porque o pão da esmola é um pão santo, santificado pelo louvor e pelo amor de deus, porque quando um frade vai pedir esmola deve dizer primeiro: Louvado e bendito seja o Senhor Deus, e depois deve dizer: Dai-nos esmolas por amor do Senhor Deus”.

E o senhor bispo ficou muito edificado com essa refeição de palavras do santo pai. E lhe disse: Filho, faz o que é bom aos teus olhos, porque o Senhor está contigo, e tu com Ele”. Pois era vontade do bem-aventurado Francisco, e ele disse isso muitas vezes, que um frade não devia passar muito tempo sem ir pedir esmolas, para que depois não ficassem envergonhado de ir. Até, quanto mais nobre e grande tivesse sido o frade no século, tanto mais ficava edificado e contente quando ia pedir esmolas e fazer esse tipo de obras servis, por causa do bom exemplo. Porque era assim que se fazia no tempo antigo.

Por isso, no começo da Religião, quando os frades moravam em Rivotorto, havia um frade entre eles que orava pouco, não trabalhava e não queria ir pedir esmolas, porque ficava com vergonha; mas comia bem. Por isso, levando em conta essas coisas, o bem-aventurado Francisco soube pelo Espírito Santo que se tratava de um homem carnal. Donde lhe disse; “Vá pelo teu caminho, irmão mosca, porque queres comer o trabalho de teus irmãos, e queres ser ocioso na obra de Deus, como o irmão zangão, que não quer produzir e trabalhar e come o trabalho e o lucro das boas abelhas”. E assim ele foi pelo seu caminho; e como era carnal, não implorou misericórdia.



[98]

Em outra ocasião, junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula, um homem espiritual voltava um dia de Assis com esmolas, quando lá estava o bem-aventurado Francisco. Quando vinha chegando pelo caminho perto da igreja, começou a louvar a Deus em voz alta, com muita alegria. Ouvindo-o, o bem-aventurado Francisco saiu para fora imediatamente, foi encontra-lo no caminho e com grande alegria beijou seu ombro, em que carregava a sacola com as esmolas. Tomando a sacola de seu ombro, colocou-a nas próprias costas e carregou-a para a casa dos frades, diante dos quais disse: “Assim quero que um irmão meu vá e volte contente e alegre pela esmola”.



[99]

Quando o bem-aventurado Francisco jazia muito doente no palácio do bispado de Assis, naqueles dias em que tinha voltado de Bagnara, temendo que o santo morresse de noite, sem que eles soubessem, e os frades levassem ocultamente o santo corpo para coloca-lo em outra cidade, os habitantes de Assis estabeleceram que todas as noites ele fosse guardado diligentemente por homens por fora do muro ao redor do palácio. O bem-aventurado Francisco, embora estivesse muito doente, para consolar seu espírito, para que alguma vez não desfalecesse por suas grandes e variadas numerosas enfermidades, fazia com que seus companheiros cantassem muitas vezes, de dia, os Louvores do Senhor, que ele mesmo compusera muito tempo antes em sua enfermidade.

De maneira semelhante também de noite, principalmente para a edificação daqueles guardas que vigiavam durante a noite, fora do palácio, por causa dele. Como Frei Elias estivesse achando que o bem-aventurado Francisco estava se confortando e alegrando tanto no Senhor, no meio de tão grande doença, disse-lhe um dia: “Caríssimo irmão, estou muito consolado e edificado com toda essa alegria que demonstras por ti e por teus companheiros em tão grande aflição e doença; mas, embora as pessoas desta cidade te venerem como santo, na vida e na morte, como acreditam firmemente que vais morrer logo por causa de tua grande e incurável doença, ouvindo cantar esses Louvores podem pensar ou dizer dentro de si: “Como demonstra tanta alegria esse que está perto da morte? Pois deveria pensar na morte”. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Tu te lembras de quando tiveste uma visão em Foligno e me contaste que alguém te disse que eu não deveria viver mais do que dois anos?

Antes que tivesses aquela visão, pela graça do Espírito Santo, que sugere todo bem no coração e o coloca na boca de seus fiéis, muitas vezes, de dia e de noite, eu considerava o meu fim. Mas, desde aquela hora em que tiveste a visão, fui todos os dias mais solícito em considerar o dia da morte”. E disse com grande fervor de espírito: “Irmão, deixa que eu me alegre no Senhor e em seus louvores, no meio de minhas doenças. Porque, com a cooperação da graça do Espírito Santo, estou tão unido e e íntimo com o meu senhor, que por sua misericórdia bem que posso me alegrar no Altíssimo”.



[100]

Outra vez, naqueles dias, um médico chamado Bom João, da cidade de Arezzo, conhecido e amigo do bem-aventurado Francisco, visitou-o no mesmo palácio. O bem-aventurado Francisco interrogou-o sobre sua doença, dizendo: “Que te parece, irmão João, sobre esta minha doença da hidropisia?”.

Pois o bem-aventurado Francisco não queria chamar ninguém de Bom, nem que tivesse esse nome, por reverência ao Senhor, que disse: “Ninguém é bom a não ser Deus (cfr. Lc 18,19). De maneira semelhante não queria chamar ninguém de pai ou mestre, nem o escrevia nas cartas, por reverência ao senhor que disse: E não queirais chamar a ninguém de pai nesta terra, nem vos chameis de mestres (cfr. Mt 23,9.10) etc. Disse-lhe o médico: “Irmão, tu estarás bem, pela graça do Senhor”.

Pois não queria dizer que ele ia morrer logo. O bem-aventurado Francisco disse-lhe outra vez: “Diz-me a verdade: que te parece”. Não tenhas medo, porque pela graça de Deus eu não sou covarde, para ficar com medo da morte, pois, com a ajuda de Deus, pro sua misericórdia e graça, estou tão ligado e unido com o meu Senhor, que estão tão contente com a morte como com a vida, e ao contrário.”. Então o médico disse abertamente: “Pai, de acordo com a nossa física, tua doença é incurável e ou no fim do mês de setembro ou no dia de outubro, vais morrer”.

O bem-aventurado Francisco, que estava deitado na cama, doente, com a maior devoção e reverência pelo Senhor, abrindo os braços e as mãos, disse com grande alegria interior e exterior: “Seja bem-vinda, minha irmã morte!”.



[101]

Frei Ricério da Marca de Ancona, nobre de parentela mas ainda mais nobre de santidade, a quem o bem-aventurado Francisco amava com grande afeto, visitou certo dia no mesmo palácio ao bem-aventurado Francisco. Entre outras palavras, em que comentou com o bem-aventurado Francisco sobre a situação da Religião a observância da Regra, também o interrogou sobre isto, dizendo: “Conta-me, pai, que intenção tiveste desde o princípio quando começaste a ter irmãos, e a intenção que tens agora, e achas que vais ter até tua morte, para que eu possa me certificar de tua intenção e vontade primeira e última, e saber se nós, irmãos clérigos, que temos tantos livros, podemos tê-los, embora digamos que são da Religião”.

Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: Irmãos, eu te digo que está foi e é minha primeira e última intenção e vontade, se os frades acreditassem em mim, que nenhum frade deveria ter senão a roupa, como a Regra nos concede, com o cíngulo e os calções”. Por isso, houve uma vez em que disse: “A religião e a vida dos frades menores é um pequeno rebanho, que o Filho de Deus pediu a seu Pai celeste nesta última hora, dizendo: Pai, gostaria que constituísses e me desses um povo novo e humilde neste última hora, que seja diferente na humildade e na pobreza de todos os outros que precederam e que ficasse contente de possuir só a mim.

E o Pai disse a seu dileto Filho: Filho, foi feito o que pediste”. Por isso o bem-aventurado Francisco dizia que “por isso quis o Senhor que se chamassem frades menores, porque este é o povo que o Filho de deus pediu a seu Pai. O próprio Filho de deus disse sobre eles no Evangelho: Não tenha medo, pequeno rebanho, porque aprouve a vosso Pai dar-vos o reino (Luc 12,32), e continuando: O que fizestes a um dos menores destes meus irmãos, foi a mim que fizestes (cfr. Mat 25,40). Porque ainda que se entenda que o Senhor disse isso a respeito de todos os pobres espirituais, na verdade predisse principalmente que a Religião dos frades menores viria a existir em sua Igreja”.

Por isso, como foi revelado ao bem-aventurado Francisco que a religião deveria chamar-se dos frades menores, assim fez escrever na primeira Regra, quando a levou para apresentar ao senhor papa Inocêncio III, e ele aprovou e concedeu a ele e depois anunciou a todos em um concílio. Semelhantemente, também a saudação que o senhor lhe revelou que os frades deviam dizer, como mandou escrever em seu testamento dizendo: “O Senhor me revelou que eu deveria dizer como saudação: O Senhor te dê a paz (cfr. Nm 6,26; 2Ts 3,16)“.

Por isso, no começo da religião, quando o bem-aventurado Francisco foi com um frade que foi um dos doze primeiros frades, esse frade saudava os homens e as mulheres pelos caminhos e os que estavam nos campos dizendo: O senhor vos d6e a paz”. E como as pessoas ainda não tinham ouvido tal saudação feita por nenhum religioso, ficavam muito admirados com isso. Houve até algumas pessoas que lhes disseram, como se estivessem indignadas: “O que quer essa saudação?”. De modo que aquele frade começou a ficar muito envergonhado por causa disso.

Daí disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, deixa dizer outra saudação”. O bem-aventurado Francisco respondeu-lhe: “Deixa que eles falem, porque não entendem o que é de Deus. Mas não fiques com vergonha, porque eu te digo, irmão, que nobres e príncipes deste século ainda vão demonstrar reverência a ti e aos outros frades por essa saudação”. E disse o bem-aventurado Francisco: “Não é uma grande coisa que o Senhor tenha querido um pequeno povo entre todos os outros que precederam, que ficasse contente de possuir só a Ele, altíssimo e glorioso?”.

Mas se algum frade quiser dizer: por que o bem-aventurado Francisco, no seu tempo, não fez os frades observarem uma pobreza tão estrita como a que disse a Frei Ricério, e não mandou observá-la, nós que estivemos com ele responderemos a isso, como ouvimos de sua boca, porque ele mesmo disse isso e muitas outras coisas aos frades e também mandou escrever na Regra muitas coisas que pedia ao Senhor com assídua oração e meditação, pelo bem da religião, afirmando que essa era certamente a vontade do Senhor. Mas, depois que as mostrava a eles, pareciam-lhes graves e insuportáveis, ignorando então o que aconteceria na ordem depois da morte dele.

E como temia muito um escândalo em si e nos frades, não queria discutir com eles; mas condescendia, ainda que sem querer, à vontade deles, e se escusava diante de Deus. Mas, para que não voltasse vazia para deus a palavra que punha em sua boca para a utilidade dos frades, queria cumpri-la em si, para conseguir por isso a mercê de Deus, e no fim aquietava-se nisso e consolava seu espírito.



[102]

Por isso, em certa ocasião, quando voltou do ultramar, um ministro conversava com ele sobre o capítulo da pobreza, querendo saber qual era sua vontade e compreensão sobre isso, principalmente porque então estava escrito na Regra um capítulo de proibições do santo Evangelho, isto é: Nada levareis no caminho (Lc 9,3) etc. O bem-aventurado Francisco respondeu: “Eu assim quero entender, que os frades não devam ter nada além da roupa, com a corda e os calções, como está na Regra, e os que tiverem necessidade, os calçados”. Disse-lhe o ministro: “Que é que eu vou fazer, que tenho tantos livros, que valem mais do que cinqüenta libras? Mas perguntou isso porque queria tê-los com a consciência sossegada, principalmente porque tinha remorsos por possuir tantos livros, sabendo que o bem-aventurado Francisco entendia tão estritamente o capítulo da pobreza.

 Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Irmão, não posso nem devo ir contra minha consciência e a profissão do Santo Evangelho, que professamos”. Ouvindo isso, o ministro ficou triste. Mas o bem-aventurado Francisco, vendo-o tão perturbado, disse-lhe com fervor de espírito, como se falasse a todos os frades: “Vós, frades menores, quereis ser vistos pelos homens e chamados de observadores do santo Evangelho, mas nas obras quereis ter bolsas (cfr. Jo 12,6)”. Na verdade os ministros sabiam que, segundo a Regra dos frades, deveriam observar o santo Evangelho, mas fizeram remover da Regra aquele capítulo que dizia: Nada levareis no caminho (Lc 9,3) etc.; julgando, portanto, que não estavam obrigados à perfeição do santo Evangelho.

Por isso o bem-aventurado Francisco, sabendo disso pelo Espírito Santo, disse diante de alguns frades: “Os irmãos ministros acham que podem enganar a Deus e a mim”. E disse: “Até para que saibam e conheçam todos os frades que são obrigados a observar a perfeição do santo Evangelho, quero que seja escrito no começo e no fim da Regra que os frades sejam obrigados a observar o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. E para que os frades nunca tenham desculpas diante de Deus, quero mostrar-lhes com obras, e observar sempre, com a ajuda do Senhor, aquilo que o Senhor pôs em minha boca, que lhes anunciei e anuncio, para salvação e utilidade minha e dos frades”. Por isso, desde o começo ele observou o santo Evangelho à letra, desde quando começou a ter frades até o dia de sua morte.



[103]

De maneira semelhante, numa ocasião ouve um irmão noviço que sabia ler o saltério, mas não bem; e como gostava de ler, pediu ao ministro geral licença para ter um saltério, e o ministro lhe concedeu. Mas ele não o queria ter se não recebesse licença para isso do bem-aventurado Francisco, principalmente porque tinha ouvido dizer que o bem-aventurado Francisco não queria que seus frades fossem desejosos de ciência e de livros; mas queria, e pregava aos frades, que se esforçassem por ter e imitar a pura e santa simplicidade, uma santa oração e a senhora pobreza, sobre as quais construíram os santos e os primeiros frades, e achava que esse era o caminho mais seguro para a salvação da alma.

Não que desprezasse ou olhasse com desagrado a santa ciência; até venerava com o maior afeto os que eram sábios na Religião e todos os sábios, como ele mesmo testemunhou em seu Testamento, dizendo: “A todos os teólogos e aos que nos administram as palavras divinas devemos honrar e venerar como a quem nos administra o espírito e a vida”. Mas, olhando para o futuro, conhecia pelo Espírito Santo e disse muitas vezes aos frades que muitos frades, com a desculpa de edificar os outros, abandonarão sua vocação, isto é a pura e santa simplicidade, a santa oração e nossa senhora pobreza. E acontecerá com eles que, de onde acharam que depois se imbuiriam de devoção e acenderiam para o amor de Deus por causa da compreensão das Escrituras, justamente por isso ficarão interiormente frios e como que vazios.

E assim não poderão voltar à antiga vocação, principalmente porque perderam o tempo de viver segundo a sua vocação. E temo que não lhes seja tirado o que parecia que possuíam, porque abandonaram sua vocação. E dizia: “Há muitos que põem na ciência todo o seu esforço e toda a sua solicitude, dia e noite, deixando sua santa vocação e a devota oração. E quando pregarem a alguns ou ao povo e virem ou ficarem sabendo que alguns ficaram edificados ou se converteram à penitência por causa disso, vão se inchar e orgulhar-se pelas obras e o lucro alheio. Porque é o Senhor que edifica e converte aqueles que eles crêem que eles acham que se edificam com suas palavras e se convertem à penitência, com as orações dos frades santos, mesmo que eles não saibam disso, pois assim é a vontade de Deus, que não percebam disso para não se orgulharem. Estes são os meus frades da távola redonda, que se escondem nos desertos e nos lugares afastados, para se dedicarem mais diligentemente à oração e à meditação, chorando os seus pecados e os dos outros, cuja santidade é conhecida por Deus, algumas vezes pelos frades, mas é ignorada pelos outros.

E quando suas almas forem apresentadas a Deus pelos anjos, então o Senhor vai mostrar-lhes o fruto e o resultado de seus trabalhos, isto é, muitas almas que forma salvas por suas orações, dizendo-lhes: Filhos, olhem estas almas salvas por suas orações, e porque fostes fiéis no pouco, eu vos constituirei sobre muitas coisas (cfr. Mt 25,21)”. Por isso, o bem-aventurado Francisco dizia sobre aquela passagem: Enquanto a estéril teve muitos filhos e a quem tinha muitos filhos ficou doente (cfr. 1Re 2,5), que a estéril era o bom religioso, que edifica a si mesmo e aos outros pelas santas orações e e virtudes. Dizia muitas vezes essas palavras diante dos frades em suas conversas com eles, e principalmente no capítulo dos frades junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula, diante dos ministros e dos outros frades.

Por isso formava para as obras todos os frades, tanto ministros como pregadores, dizendo-lhes que por causa da prelatura e do ofício e solicitude de pregar não deviam absolutamente deixar a santa e devota oração, ir pedir esmolas e trabalhar com suas mãos, como os outros frades, por causa do bom exemplo e do lucro de suas almas e das dos outros. E dizia: “Os frades súditos ficam muito edificados quando seus ministros e pregadores se entregam de boa vontade à oração, e se prostram e se humilham”. Por isso ele, como um fiel zelador de Cristo, enquanto foi sadio de corpo, fazia em si o que ensinava a seus frades. Como aquele frade noviço, de que falamos acima, morava num eremitério, aconteceu que certo dia esteve lá o bem-aventurado Francisco.

Então aquele frade falou com ele, dizendo: “Pai, para mim seria uma grande consolação ter um saltério, mas, embora o ministro geral queira conceder-me isso, quero tê-lo de acordo com a tua consciência”. Esta foi a resposta que o bem-aventurado Francisco lhe deu: “Carlos imperador, Rolando e Olivério, e todos os paladinos e robustos varões, que foram poderosos no combate, perseguindo os infiéis com muito suor e trabalho até a morte, conseguiram uma gloriosa e memorável vitória sobre eles, e no fim os próprios santos mártires morreram no combate pela fé em Cristo; e sãos muitos os que só pela narração deles, do que eles fizeram, querem receber honra e louvor humano”. E por isso escreveu qual o significado dessas palavras em suas Admoestações, dizendo: “Os santos fizeram as obras e nós, recitando-as e pregando-as, queremos receber por isso honra e glória”. Como se dissesse: a ciência incha, mas a caridade edifica (cfr. 1Cor 8,1).



[104]

Outra vez, quando o bem-aventurado Francisco estava sentado junto ao fogo, esquentando-se, ele (o noviço) tornou a falar-lhe sobre o saltério. E o bem-aventurado Francisco lhe disse; “Depois que tiveres o saltério, vais ficar com vontade e querer um breviário. Depois que tiveres o breviário, te sentarás na poltrona como um grande prelado, dizendo ma teu irmão: Traz-me o breviário”. E dizendo isso, com grande fervor de espírito pegou cinza com a mão e colocou-a em cima da cabeça, levando a mão em volta da cabeça, como alguém que se lava, dizendo para si mesmo: “Quero um breviário! Quero um breviário!”. E falando assim muitas vezes, repetiu-o passando a mão pela cabeça. Aquele frade ficou estupefato e envergonhado.

Depois, o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, eu também fui tentado a ter livros, de modo semelhante; mas para conhecer a vontade de Deus a respeito disso, peguei um livro em que estavam escritos os Evangelhos do Senhor e orei ao Senhor para que se dignasse mostrar sua vontade a para mim a respeito dessas coisss na primeira vez que abrisse o livro. Terminada a oração, na primeira vez que abri o livro encontrei aquela palavra do santo Evangelho: A vós foi dado conhecer os mistérios do reino de Deus; aos outros, porém, em parábolas (Lc 8,10; cfr. Mc 4,11)”. E disse: “São tantos os que sobem à ci6encia que feliz será quem e fizer estéril por amor do Senhor Deus”.



[105]

Depois, passados vários meses, quando o bem-aventurado Francisco estava perto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, perto de sua cela no caminho atrás da casa, e aquele frade falou-lhe de novo sobre o saltério. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Vá fazer como te disser o teu ministro”. Ouvindo isso, o frade começou a voltar pelo caminho por onde tinha vindo. Mas o bem-aventurado Francisco, permanecendo no caminho, começou a pensar no que tinha dito àquele frade, e logo gritou para ele, dizendo: “Espera-me, irmão, espera!”. e assim foi até junto dele, dizendo: “Volta comigo, irmão, e mostra-me o lugar em que te disse que fizesses do saltério o que te dissesse o teu ministro”.

 Quando chegaram ao lugar onde tinha dito aquela palavra, o bem-aventurado Francisco inclinou-se diante do frade e, ficando de joelhos, disse: “Minha culpa, irmão, minha culpa, porque quem quiser ser frade menor não deve ter senão as túnicas, como a regra lhe concede, o cordão e os calções e, os que forem obrigados por manifesta necessidade ou doença, os calçados”. Por isso, a todos os frades que iam a ele para ter seu conselho a respeito disso, dava-lhes essa resposta”. Por isso dizia: “Uma pessoa tem tanto conhecimento de ciência quanto põe em prática; e um religioso é tão bom orador quanto ele mesmo pratica”. Como se dissesse: uma árvore boa não é conhecida senão pelo seu fruto (cfr. Mt 12,33; Lc 6,44)”.



[106]

Outra vez, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo palácio, disse-lhe um dia um dos que eram seus companheiros aí: “Pai, perdoa-me, porque o que quero te dizer já foi considerado por diversas pessoas”. E disse: “Tu sabes como outrora, pela graça de Deus, toda a religião vigorou na pureza da perfeição, isto é, como todos os frades observavam com fervor e solicitude a santa pobreza em tudo, em edifícios pequenos e pobrezinhos, em utensílios pequenos e pobrezinhos, em livros pequenos e pobrezinhos, e em roupas pobrezinhas, e como nessas coisas, também nas outras coisas exteriores tinham uma única vontade, solícitos por observar tudo que diz respeito a nossa profissão e vocação, e ao bom exemplo; e assim eram unânimes no amor a deus e ao próximo.

Agora, porém, faz pouco tempo, essa pureza e perfeição começou a variar de diversas formas, ainda que os frades digam muitas coisas e d6eem muitas desculpas, dizendo que por causa da multidão essas coisas não podem ser observadas pelos frades. Muitos frades até acham que o povo fica mais edificado com essas coisas, e lhes parece mais honesto viver e comportar-se de acordo com essas coisas; por isso têm como se fosse nada o caminho da simplicidade e daquela pobreza, que foram o início e o fundamento da nossa religião. Por isso, considerando essas coisas, achamos que elas te desagradam; mas ficamos muito admirados, se te desagradam, porque suportas e não corriges”.

O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “O Senhor te perdoa, irmão, porque queres me contradizer, ser meu adversário e me implicar nessas coisas que não são do meu ofício”. E disse: “Enquanto eu tive o ofício de cuidar dos frades, eles permaneceram em sua vocação e profissão, embora eu tenha sido adoentado desde o começo de minha conversão a Cristo, e com pouca solicitude da minha parte conseguia satisfaze-los com o exemplo e a pregação.

Mas depois que eu vi que o Senhor multiplicava todos os dias o número dos frades, e que eles, por causa da tibieza e do vazio de espírito começaram a desviar-se do caminho reto e seguro pelo qual costumavam andar, e passaram a ir por um caminho mais largo, como disseste, não cuidando de sua profissão, vocação e bom exemplo, e não abandonaram o caminho que tinham começado, apesar da minha pregação e exemplo, recomendei a Religião ao Senhor e aos ministros dos frades. Porque, embora no tempo em que renunciei e deixei o ofício dos frades, eu tenha me desculpado diante dos frades no capítulo geral, pois por causa de minha doença não podia mais ter o cuidado e a solicitude por eles, agora, se os frades andassem e tivessem andado de acordo com a minha vontade, por sua consolação eu não quisera que tivessem outro ministro senão eu, até o dia de minha morte. Porque desde que um fiel e bom súdito conhece a vontade de seu prelado e a observa, o prelado precisa ter pouca solicitude por ele. Eu até teria tanta alegria pela bondade dos frades e me consolaria por causa do meu proveito e do proveito deles que, se jazesse doente na cama, não seria pesado para mim satisfaze-los”. E disse: “Meu ofício é espiritual, isto é, uma prelatura sobre os frades, porque dominar e corrigir os vícios.

Por isso, se não posso dominar e corrigir os vícios pela pregação e o exemplo, não quero ser um carrasco para bater e chicotear, como o poder deste século”. Porque confio no Senhor que os inimigos invisíveis, que são os esbirros do Senhor ainda vão vingar-se deles para punir neste século e no futuro os que transgridem os mandamentos do Senhor, fazendo-os serem corrigidos pelas pessoas deste século com impropério e vergonha para eles; e voltarão a sua profissão e vocação. Entretanto, até o dia de minha morte não vou parar de ensinar os frades a andarem pelo caminho que o Senhor me mostrou, pelo meu exemplo e ação. E eu lhes mostrei e informei, de modo que não têm desculpas diante do Senhor, e eu, diante de Deus não vou mais ter que prestar contas deles”.

Por isso, fez então escrever em seu Testamento que todas as casas dos frades deviam ser de barro e paus, como um sinal da santa pobreza e humildade, e que as igrejas que fossem construídas para os frades fossem pequenas. Quis até que essa reforma começasse, principalmente no que diz respeito às casas construídas de barro e paus, e a todos os bons exemplos, no lugar de Santa Maria da Porciúncula, que foi o primeiro lugar onde, depois que os frades ali moraram, pó senhor começou a multiplicar os frades para que fosse um exemplo para sempre para os outros frades que estão e virão para a Religião. Mas alguns disseram que não lhes parecia bom que as casas dos frades devessem ser construídas de paus e barro, porque em muitos lugares e províncias a madeira é mais cara do que as pedras.

 E o bem-aventurado Francisco não queria disputar com eles, porque estava muito doente e próximo da morte, pois pouco viveu depois disso. Por isso escreveu depois no seu Testamento: “Cuidem os frades de não receber absolutamente as igrejas e moradias que forem construídas para eles se não forem como convém à santa pobreza que na Regra prometemos, sempre nelas se hospedando como peregrinos e forasteiros. Mas nós que estivemos com ele quando escreveu a Regra e quase todos os seus outros escritos, damos testemunho de que fez escrever muitas coisas na Regra e em seus outros escritos das quais alguns frades, principalmente prelados, foram contrários. Por isso aconteceu que essas coisas em que os frades foram contrários ao bem-aventurado Francisco durante sua vida, agora, depois de sua morte, são muito úteis a toda a Religião.

Mas como ele temia muito o escândalo, condescendia, mesmo sem querer, com a vontade dos frades. Mas muitas vezes dizia estas palavras: “Ai dos frades que são contrários a mim nisso, porque eu sei que é a vontade de Deus para a maior utilidade da Religião, ainda que, contra o meu querer, condescenda com a vontade deles”. Por isso, dizia muitas vezes a seus companheiros: “Nisso está minha dor e minha aflição, porque obtenho essas coisas de Deus por sua misericórdia com muito trabalho de oração e meditação, para a utilidade presente e futura de toda a religião, e Ele me dá a certeza de que são segundo a sua vontade. E alguns frades, pela autoridade e providência da sua ciência, esvaziam e são contrários a mim, dizendo: “Estas coisas devem ser tidas e observadas, e estas não!”. Mas porque, como foi dito, tinha tanto medo de escândalo, permitia fazer muitas coisas que não estavam de acordo com a sua vontade e condescendia com a vontade deles.



[107]

Como nosso santíssimo pai Francisco morasse, em certa época, junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, e costumasse, costumava, todos os dias, depois da refeição, trabalhar com seus frades em algum serviço, contra o vício da ociosidade, considerando, que o bem para si e para seus frades, que com a cooperação de Deus conseguiam no tempo da oração, não devia ser perdido depois da oração por palavras ociosas ou inúteis, para evitar o mal das palavras ociosas ou inúteis, ordenou estas coisas e mandou que fossem observadas pelos frades: “Se algum frade, estando à-toa ou fazendo algum trabalho entre os frades, proferir alguma palavra ociosa ou inútil, tenha que dizer uma vez o Pai-nosso, louvando a deus no começo e no fim de sua oração, mas de tal modo que, se tiver consciência e se acusar primeiro de sua falta, dirá o Pai-nosso e os Louvores a Deus, como foi dito, pelo bem de sua alma.

Mas se for primeiro advertido por algum dos irmãos, tenha que dizer o Pai-nosso, do modo predito, pela alma de quem o corrigiu. Mas se, por acaso, advertido por causa disso, desculpar-se e não quiser rezar o pai-nosso, tenha que rezar do mesmo modo dois Pai-nossos pela alma do frade que o corrigiu, se constar, pelo testemunho desse frade ou de um outro, que na verdade ele disse essa palavra ociosa ou inútil. Esses Louvores de Deus, como foi dito, no princípio e no fim de sua oração, devem ser ditos tão alto e manifestamente que os frades que lá estão possam entender e ouvir.

Esses frades, enquanto ele rezar, calem-se e escutem. Mas se algum deles, contrariando a isto, não ficar calado, terá que dizer um Pai-nosso do mesmo jeito, com os Louvores de Deus, pela alma do frade que estiver rezando. “E qualquer fradem quando entrar numa cela, numa casa ou em outro lugar qualquer e lá encontrar um ou mais frades, sempre deverá louvar diligentemente e bendizer a Deus”. Era costume do pai santíssimo dizer sempre esses Louvores, e com vontade e desejos ardentíssimos queria que também os outros frades fossem semelhantemente solícitos e devotos para rezá-los.



[108]

No tempo daquele capítulo celebrado no mesmo lugar, em que os frades foram enviados pela primeira vez a algumas províncias ultramarinas, quando acabou o capítulo, o bem-aventurado Francisco, permanecendo nesse lugar com alguns frades, disse-lhes: “Caríssimos irmãos, eu tenho que ser forma e exemplo de todos os frades. Portanto, se mandei meus frades para lugares longínquos onde vão trabalhar, passar vergonha, fome, e ter que agüentar numerosas necessidades, parece-me justo e bom que também eu vá semelhantemente para alguma província longínqua, principalmente para que os frades possam suportar mais pacientemente suas necessidades e tribulações, quando ouvirem dizer que eu também as suporto”. E lhes disse: “Ide, portanto, e orai ao Senhor para que me dê de escolher a província que for para maior louvor de deus e proveito e salvação das almas, e para bom exemplo de nossa religião”.

Pois era costume do pai santíssimo, não só quando ia pregar em alguma província longínqua mas também quando ia para as províncias próximas, orar ao senhor e mandar os frades orarem para que o Senhor dirigisse seu coração para ir onde quer que fosse melhor segundo Deus. Por isso os frades foram para a oração e, quando acabaram, voltaram para ele. Ele lhes disse: “Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, de sua gloriosa Virgem Mãe e de todos os santos, escolho a província da França, onde há um povo católico, principalmente porque entre os outros católicos da santa Igreja demonstram a maior reverência ao Corpo de Cristo; o que para mim é muito grato. Por isso vou ter a maior boa vontade de viver com eles”.

Pois o bem-aventurado Francisco tinha tanta reverência e devoção ao Corpo de Cristo, que quis que fosse escrito na Regra que os frades tivessem cuidado e solicitude para com ele nas províncias em que morassem, e admoestassem e pregassem sobre isso aos clérigos e sacerdotes, para que colocassem o Corpo de Cristo em um lugar bom e conveniente. E, se não agissem assim, queria que os frades o fizessem. Houve um tempo em que até quis enviar frades com âmbulas por todas as províncias, e onde encontrassem o Corpo de Cristo ilicitamente colocado, que eles mesmos lhe dessem um lugar honroso. Pois, por reverência ao santíssimo Corpo e Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, também quis pôr na Regra que os frades, onde quer que encontrem as palavras e nomes escritos do Senhor, pelos quais faz-se o Santíssimo Sacramento, mal guardadas ou desrespeitosamente espalhadas em algum lugar, as recolhessem e repusessem, honrando o Senhor nas palavras que disse.

Pois muitas coisas são santificadas pelas palavras de deus, e em virtude das palavras de Cristo confecciona-se o sacramento do altar. E embora não tenha escrito isso na Regra, principalmente porque aos frades ministros não parecia bom que os frades tivessem isso como um mandamento, no seu testamento e em outros escritos seus o santo pai quis deixar sua vontade sobre essas coisas. Também quis mandar alguns outros frades por todas as províncias com boas e bonitas ferramentas para fazer hóstias. Quando o bem-aventurado Francisco escolheu entre os frades os que queria levar consigo, disse-lhes: “Em nome do Senhor, ide dois a dois comportadamente pelo caminho, e principalmente em silêncio, de manhã até depois de tércia, orando ao Senhor em vossos corações. E as palavras ociosas e inúteis não sejam ditas entre vós. Pois mesmo que estejais caminhando, vossa conversação seja tão conveniente como se estivésseis no eremitério ou na cela, porque onde quer que estejamos ou caminhemos, temos a nossa cela conosco: pois o irmão corpo é nossa cela e a alma é o eremita que mora dentro da cela para orar a Deus e meditar.

Por isso, se a alma não permanecer no sossego e na solidão em sua cela, de pouco adianta para o religioso a cela construída com a mão. Mas quando chegaram a Arezzo, havia o maior escândalo e uma guerra quase na cidade inteira, de dia e de noite, por causa de duas facções que havia muito tempo se odiavam. Quando o bem-aventurado Francisco viu isso e ouviu tamanho rumor e clamor de dia e de noite, estando hospedado em certo hospital num burgo fora da cidade, pareceu-lhes que os demônios estavam exultantes com isso [e incitavam] todas as pessoas a destruir a cidade com fogo e outros perigos. Então, movido pela piedade para com aquela cidade, disse ao sacerdote Frei Silvestre, homem de Deus, de grande fé, de admirável simplicidade e pureza, que o santo pai venerava como um santo: ”Vá à frente da porta da cidade e mande em alta voz que todos os demônios saiam desta cidade. Frei Silvestre levantou-se e foi para diante da porta da cidade, gritando em alta voz: “Louvado e bendito seja o Senhor Jesus Cristo. Da parte de Deus onipotente e em virtude da santa obediência do nosso santíssimo pai Francisco, eu mando aos demônios que saiam todos desta cidade”.

 E aconteceu que, pela misericórdia divina e pela oração do bem-aventurado Francisco, mesmo sem nenhuma pregação, pouco depois voltaram todos à paz e à unidade. E como não lhes pôde pregar nessa ocasião, o bem-aventurado Francisco, mais tarde, quando estava pregando a eles certa vez, disse-lhes no primeiro sermão da pregação: “Eu vos falo como a presos dos demônios, porque vós mesmos vos amarrastes e vendestes, como animais no mercado, por causa da vossa miséria, e vos entregastes nas mãos dos demônios; isso aconteceu quando vos expusestes à vontade daqueles que destruíram e destroem a si mesmos e a vós, e querem destruir a cidade inteira. Mas vós sois pessoas miseráveis e ignorantes pois sois ingratos aos benefícios de deus, que, mesmo que alguns de vós não saibam, em certa hora libertou esta cidade pelos méritos de um santíssimo Frei Silvestre”.

Quando o bem-aventurado Francisco chegou a Florença, aí encontrou o senhor Hugolino, bispo de Óstia, mais tarde papa, que tinha sido enviado pelo papa Honório como legado ao Ducado e à Toscana, à Lombardia, à Marca de treviso até Veneza. O senhor bispo ficou muito alegre com a chegada dele. Mas quando ouviu o bem-aventurado Francisco dizer que queria ir para a França, proibiu que fosse, dizendo-lhe: “Irmão, não quero que vás para lá dos montes, porque há muitos prelados e outros que vão querer impedir os bens de tua religião na cúria romana.

Mas eu e outros cardeais, que amamos tua religião, com maior boa vontade a protegeremos e ajudaremos, se permanecerdes nos arredores desta província”. mas o bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Senhor, é uma grande vergonha para mim, que mandei meus frades para províncias remotas e longínquas, se eu ficar nas províncias daqui”. Mas o senhor bispo disse, contestando-o: “Por que mandaste teus frades tão longe para morrerem de fome e terem tantas outras tribulações?”. O bem-aventurado Francisco respondeu com grande fervor de espírito e espírito de profecia: “Senhor, julgais e credes que o Senhor enviou frades só para estas províncias? Mas eu vos digo em verdade que o Senhor escolheu e enviou os frades para o proveito e salvação das almas das pessoas de todo o mundo, e não vão ser recebidos só nas terras dos fiéis mas também dos infiéis. E enquanto observarem o que prometeram a Deus, assim o Senhor lhes dará o que for necessário tanto na terra dos infiéis quanto na dos fiéis”.

E o senhor bispo ficou admirado com suas palavras, afirmando que dizia a verdade. E assim o senhor bispo não permitiu que ele fosse para a França; mas o bem-aventurado Francisco mandou para lá Frei Pacífico com outros frades, voltando ele para o vale de Espoleto.



[109]

Certa ocasião, como se aproximasse o capítulo dos frades, que devia ser feito junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, disse o bem-aventurado Francisco a seu companheiro: “Não me parece que eu seja um frade menor a não ser que esteja no estado que vou te dizer”. E disse: “Eis que os frades, com grande devoção e veneração v6em e me convidam para o capítulo, e eu, movido por sua devoção, vou ao capítulo com eles. E, todos reunidos, pedem que anuncie a palavra de Deus entre eles; levantando-me, prego-lhes como me ensinar o Espírito Santo.

Acabada a pregação, digamos que pensem e digam contra mim: Não queremos que reines sobre nós (cfr. Lc 19,14); pois não és eloqüente e és simples demais, e ficamos com muita vergonha de ter um prelado tão simples e desprezível acima de nós; por isso não tenhas daqui em diante a pretensão de te chamar de nosso prelado. E sim me expulsam envergonhando-me. “Por isso não me parece que eu seria um frade menor se não me alegrar do mesmo modo, quando me desprezam e me expulsam com vergonha, não querendo que eu seja o seu prelado, como quando me honra e veneram, sendo, de qualquer forma, igual o proveito para eles.

Pois, se me alegro de seu proveito e devoção, quando me exaltam e honram, onde pode haver perigo da alma, é mais conveniente que eu deva me alegrar e ficar satisfeito com o meu proveito e a salvação de minha alma, quando me expulsam com vergonha, onde há lucro da alma”.



[110]

Certa ocasião, no verão, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo lugar e ficava na última cela perto da cerca da horta, atrás da casa, onde depois de sua morte ficou Frei Rainério, hortelão, aconteceu que certo dia, quando descia daquela cela, havia uma cigarra no ramo de uma figueira, que estava junto da cela, de modo que podia tocá-la. Por isso, estendendo-lhe a mão, disse-lhe: “Vem comigo, irmã cigarra”. Na mesma hora ela subiu nos dedos de sua mão, e ele começou a tocá-la com um dedo da outra mão, dizendo-lhe; “Canta, minha irmã cigarra”.

Ela obedeceu imediatamente e começou a cantar, e o bem-aventurado Francisco ficava muito consolado por isso e louvava a Deus. E assim por uma boa hora segurou-a em sua mão; depois recolocou-a no ramo da figueira, de onde a tirara. e assim por oito dias contínuos, quando descia da cela encontrava-a no mesmo lugar e todos os dias tomava-a na mão e, assim que dia para ela cantar, tocando-a, ela cantava. Depois de oito dias, disse a seus companheiros: “Vamos dar licença a nossa irmã cigarra que vá para onde quiser; pois já nos consolou bastante; e a carne poderia sentir vanglória por causa disso”.

E quando lhe deu licença, ela foi logo embora e não apareceu mais. E os companheiros ficaram admirados com isso, porque ela assim lhe obedeceu e foi mansa com ele. Pois o bem-aventurado Francisco se alegrava tanto com as criaturas por amor do Criador, que o Senhor, para consolação de seu exterior e de seu interior fez-se com que fossem mansas para eles as criaturas que são selvagens para os homens.



[111]

Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco estava no eremitério de Santo Eleutério perto de um castro chamado Quintiliano, na região de Rieti. Como não usava senão uma túnica, certo dia, por causa do grande frio e da grande necessidade, remendou sua túnica e a túnica de seu companheiro por dentro com alguns retalhos, de modo que seu corpo começou a se consolar um pouco. Pouco depois, quando voltava um dia da oração, disse com grande alegria a seu companheiro: “Eu tenho que ser forma e exemplo de todos os frades, porque ainda que meu corpo tenha necessidade de uma túnica remendada, preciso pensar nos meus frades, para os quais isso também é necessário, e eles talvez não tenham nem podem ter.

Por isso tenho que condescender com ele e preciso sofrer as mesmas necessidades que eles sofrem,, para que eles, vendo isso, consigam suportar com mais paciência”. Mas nós, que estivemos com ele, não poderíamos dizer quantas e quão grandes necessidades ele negou a seu corpo na comida e na roupa, para dar bom exemplo aos frades e para que suportassem suas necessidades com maior paciência. E nisso teve sempre o seu maior e mais importante cuidado bem-aventurado Francisco, principalmente depois que os frades começaram a se multiplicar e ele se demitiu do ofício de prelado, para ensinar os frades mais com obras do que com palavras o que deviam fazer e o que deviam evitar.



[112]

Por isso, em certa ocasião, considerando e ouvindo que alguns frades davam mau exemplo na religião, e também que os frades tinham se afastado do ponto mais alto de sua profissão, tocado por uma dor interior do coração, disse uma vez na oração ao Senhor: “Senhor, eu te recomendo a família que me deste”. E lhe foi dito pelo Senhor: “Diz-me, por que te contristas tanto quando algum frade sai da Religião e quando os frades não andam pelo caminho que te mostrei? Diz-me também: quem plantou a religião dos frades? Quem faz o homem converter-se para fazer penitência nela? Quem dá a virtude de nela perseverar? Não sou eu?”.

E foi-lhe dito em espírito: “Eu não te escolhi porque eras um homem letrado e eloqüente para cuidar de minha família, mas te escolhi simples, para que possas saber, tanto tu quanto os outros, que eu vou vigiar pelo meu rebanho; mas eu te coloquei como um sinal para eles, para que possam ver em ti as obras que eu faço em ti e também as façam. Os que andam pelo meu caminho têm a mim e me terão mais abundantemente. Mas dos que não querem andar pelo meu caminho, vai ser tirado o que parecem ter.

Por isso eu te digo, não fiques tão triste, mas age como tens de agir, faz o que tens que fazer, porque eu plantei a religião dos frades na caridade perpétua. Por isso fica sabendo que eu a amo tanto que,s e algum frade, voltando ao vômito, morrer fora da religião, colocarei outro na Religião para que receba a coroa dele no seu lugar; e se fosse o caso que esse ainda não tivesse nascido, eu o farei nascer. E para que saibas que amo espontaneamente a vida e a religião dos frades, imagine que em toda a vida e religião dos fardes não sobrassem mais do que tr6es irmãos, eu não os abandonarei nunca”.

E quando disse essas palavras o bem-aventurado Francisco ficou com seu ânimo consolado, porque estava se entristecendo demais quando ouvia dos frades algum mau exemplo. E embora não pudesse conter-se de uma vez, ficando sem se contristar quando ouvia algum mal, todavia, depois que foi confortado dessa forma pelo Senhor, recordava-o em sua memória e contava a seus companheiros. Por isso o bem-aventurado Francisco dizia muitas vezes aos frades nos capítulos e também nas suas conversas: “Eu jurei e estabeleci que ia observar a Regra dos frades,e todos os frades se obrigaram a isso de maneira semelhante; dessa maneira, desde que me demiti do ofício dos frades, aliás por causa de minhas doenças e para maior utilidade de minha alma e de todos os frades, não tenho outra obrigação com os frades a não ser a de dar bom exemplo.

Pois isso eu aprendi com o Senhor, e sei na verdade porque, mesmo que a doença não me desculpasse, a maior ajuda que posso dar à religião dos frades é entregar-me todos os dias à oração por ela junto do Senhor, para que ele a governe, conserve, proteja e defenda. Pois nisto me obriguei ao senhor e aos frades, isto é, que se algum dos frades perecer por meu mau exemplo, quero ter que prestar contas ao Senhor”. Por isso, embora algum frade lhe dissesse de vez em quando que devia intrometer-se nos assuntos da religião, ele respondia a essas palavras dizendo: “Os frades têm a sua Regra, e até fizeram um juramento; e para não terem desculpa, depois que aprouve ao Senhor estabelecer que eu fosse seu prelado, eu jurei do mesmo modo diante deles e quero observar até o fim. Por isso, uma vez que os frades sabem o que devem fazer e também o que devem evitar, não me resta senão ensina-los por obras, porque para isso fui dado a eles em minha vida e depois de minha morte”.



[113]

Certa vez, quando o bem-aventurado Francisco ia pregando por uma província, aconteceu que se encontrou com um homem pobrezinho; e, considerando sua grande pobreza, disse ao seu companheiro: “A pobreza desse homem traz-nos muita vergonha e repreende bastante a nossa pobreza”. O companheiro respondeu dizendo: “Como, irmão?”. E ele: “Para mim é uma grande vergonha quando encontro alguém que é mais pobre do que eu, pois escolhi a santa pobreza como minha senhora, minhas delícias e riquezas espirituais e corporais; E essa fama se espalhou por todo o mundo: que eu professei a pobreza diante de deus e dos homens. Por isso tenho que me envergonhar quando encontro alguma pessoa mais pobre do que eu”.



[114]

Quando o bem-aventurado Francisco foi a eremitério dos frades perto de Rocca di Brizio, para pregar às pessoas daquela província, aconteceu naquele dia em que devia pregar que um homem pobrezinho e enfermiço veio a ele. Quando o viu, começou a considerar sua pobreza e enfermidade, de modo que, movido de piedade, vendo a pobreza e enfermidade dele, começou a conversar com seu companheiro sobre sua nudez e doença, com pena dele. E seu companheiro disse-lhe: “Irmão, é verdade que este homem é bem pobre, mas talvez em toda a província não haja outro mais rico que ele na vontade”.

O bem-aventurado Francisco repreendeu-o porque não tinha falado bem, e por isso disse sua culpa. E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Queres fazer, por isso, a penitência que vou te indicar?”. Ele respondeu: “De boa vontade”. Disse-lhe então: “Vá tirar tua túnica, vá nu diante do pobre, lança-te aos pés dele e diz-lhe como pecaste contra ele, porque fizeste uma detração; e diz-lhe que ore por ti, para que deus te perdoe”. Por isso ele foi e fez tudo como lhe dissera o bem-aventurado Francisco; feito isso, levantou-se, vestiu a túnica e voltou para o bem-aventurado Francisco.

E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Quer que te diga como pecaste contra ele, e até contra Cristo?”. E disse: “Quando vês um pobre deves pensar naquele em cujo nome ele veio, isto é, Cristo, que veio assumir nossa pobreza e enfermidade; pois a pobreza e a doença deste homem é como um espelho para nós, no qual devemos espelhar e considerar com piedade a pobreza e enfermidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que carregou em seu corpo pela salvação do gênero humano”.



[115]

Certa vez, em um eremitério dos frades acima de Borgo San Sepolcro, vinham às vezes ladrões para pedir pão aos frades, porque naquela província escondiam-s em grandes florestas e saíam às vezes nas estradas e nos caminhos para espoliar as pessoas. Por isso, alguns frades do lugar diziam: “Não é bom dar-lhes esmolas, principalmente porque são ladrões e fazem tantos e tão grandes males às pessoas”. Outros, levando em conta que pediam humildemente e por serem obrigados por grande necessidade, de vez em quando davam-lhes alguma coisa, sempre admoestando-os para se converterem à penitência. Nesse meio tempo, o bem-aventurado Francisco chegou àquele lugar e os frades o interrogaram se deviam dar pão ou não.

Disse-lhes o bem-aventurado Francisco: “Se fizerdes como vos direi, confio no Senhor que conquistareis suas almas”. E lhes disse: “Ide, adquiri pão e vinho dos bons, e levai-os para eles na floresta, onde sabeis que eles vivem, clamando e dizendo: Irmãos ladrões, vinde a nós, porque somos irmãos e vos trazemos bom pão e bom vinho. Eles virão imediatamente a vós, e vós estendereis uma toalha no chão, e poreis em cima pão e vinho, para servi-los humilde e alegremente, enquanto estiverem comendo.

E depois da refeição, falar-lhes-eis algumas palavras do Senhor e por últimos pedir-lhes-eis por amor do Senhor este primeiro pedido: isto é, que vos prometam que não vão bater em ninguém, nem vão fazer algum mal a algum homem ou outra pessoa, porque, se pedirdes tudo ao mesmo tempo não vos escutarão. E eles, por causa das humildade e da caridade que lhes demonstrastes, logo vos prometerão. E no outro dia levantai-vos e, por causa da boa promessa que vos fizeram, acrescenteis ao pão e ao vinho ovos e queijo, e levai-lhes do mesmo modo e servi-os enquanto comerem. E depois da refeição dizei-lhes: Por que ficais aqui o dia inteiro morrendo de fome, e sofreis tantos males, e por vontade e atos fazeis tantos males, pelos quais perdeis vossas almas se não vos converterdes disso? Pois é melhor servirdes ao Senhor, e Ele vos dará neste século o que é necessário para o corpo, e no fim vai salvar vossas almas. E o Senhor os inspirará, por sua misericórdia, para que se convertam por causa da humildade e caridade que demonstrastes para com eles”. Então os frades se levantaram e fizeram tudo como lhes disse o bem-aventurado Francisco; e eles, pela misericórdia de deus e por sua graça, que desceu sobre eles, ouviram e observaram à letra, ponto por ponto todos os pedidos que os frades lhes fizeram.

Até mais: por causa da familiaridade e da caridade que os frades demonstraram para com eles, começaram a carregar lenha para eles nas costas para o eremitério. Tanto que pela misericórdia de Deus, por causa da caridade e de misericórdia que os frades lhes demonstraram, alguns entraram na Religião, outros acolheram a penitência, prometendo nas mãos dos frades que daí em diante não iam cometer aqueles males mas queriam viver do trabalho de suas mãos. Por isso os frades ficaram muito admirados e outros que ouviram e souberam disso, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco, como predissera a conversão deles, que eram homens tão pérfidos e iníquos, e como se converteram ao Senhor tão depressa.



[116]

Houve um frade de honesto e santo comportamento, que era solícito dia e noite pela oração. Observava um silêncio tão contínuo que, às vezes, quando se confessava com um irmão sacerdote, confessava-se com alguns sinais e não com palavras. Pois parecia ser tão devoto e fervoroso no amor de Deus que, às vezes, quando se sentava com os frades, embora não falasse, alegrava-se interior e exteriormente quando ouvia algumas boas palavras, de modo que atraia para a devoção a Deus todos os frades e outros que o viam. Por isso era visto de boa vontade pelos frades e pelos outros como um santo.

Já tinha persistido por diversos anos nesse comportamento, quando aconteceu que o bem-aventurado Francisco foi ao lugar onde ele estava e, quando ouviu dos frades como é que ele se comportava, disse aos frades: “Sabei em verdade que isso é uma tentação diabólica e um engano, porque não quer confessar-se”. Nesse meio tempo ali chegou o ministro geral para visitar o bem-aventurado Francisco , e começou a recomendá-lo diante do bem-aventurado Francisco. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Acredita em mim, irmão, porque esse frade é levado pelo espírito maligno e se engana”. Então o ministro geral respondeu: “A mim parece admirável e como que incrível que possa acontecer o que dizes num homem em que aparecem tão sinais e obras de santidade”.

Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Põe-no à prova, dizendo que tem que se confessar pelo menos duas ou uma vez por semana; se não te ouvir, saberás que é verdade o que eu te digo”. Quando conversava, um dia, com aquele irmão, o ministro geral disse-lhe: “Irmão, quero absolutamente que duas, ou pelo menos uma vez por semana te confesses”. Ele pôs um dedo na boca, virando a cabeça, fazendo sinais de que não o faria de nenhum jeito. Mas o ministro, temendo escandalizá-lo, deixou-o. Não muitos dias depois, ele saiu voluntariamente da Religião e voltou para o século, usando roupas seculares.

Aconteceu que, certo dia, quando dois dos companheiros do bem-aventurado Francisco andavam pó rum caminho, encontraram-se com ele, que caminhava sozinho, como um paupérrimo peregrino. Com pena dele, disseram: “Ó coitado, onde estão teu santo comportamento e tua honestidade?. Não querias mostrar-te a teus irmãos e falar com eles, e amavas a vida solitária; e agora vais andando por este mundo, como um homem que ignora Deus e seus servos”. Ele começou a falar-lhes, jurando-lhes muitas vezes em sua fé como as pessoas seculares.

Disseram-lhe os frades: “Pobre homem, por que com tuas palavras juras pela tua fé como as pessoas seculares, tu que, outrora, na Religião, calavas não só as palavras ociosas mas até as boas? Respondeu-lhes: “Não dá para ser de outro jeito”. Assim deixaram-no. E não muitos dias depois ele morreu. E ficaram muito admirados com isso os frades e outros, considerando a santidade do bem-aventurado Francisco que lhes predisse a sua queda, no tempo em que era tido como santo pelos frades e pelos outros.



[117]

Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco tinha ido a Roma para visitar o senhor Hugolino, bispo de Óstia, que depois foi papa, e ficou alguns dias com ele. Depois, com licença daquele apostólico, visitou o senhor Leão, cardseal da Santa Cruz. Pois esse cardeal era muito bondoso e cortês, gostava de ver o bem-aventurado Francisco e o venerava muito. Rogou-lhe com toda devoção que ficasse com ele por alguns dias, principalmente porque então era inverno, fazia muito frio e quase todos os dias havia muitos ventos e chuvas, como costuma haver nesse tempo.

E lhe disse: “Irmão, o tempo não está bom para andar. Quero, se te agrada, que fique comigo até que faça bom tempo para sair. Como eu dou comida todos os dias para alguns pobres em minha casa, receberás de mim o teu sustento como um dos pobres”. O senhor cardeal disse isso porque sabia que o bem-aventurado Francisco, por causa de sua humildade, queria sempre for recebido como um pobrezinho onde se hospedasse, embora fosse de tão grande santidade que era venerado como santo pelo senhor papa e os cardeais e por todos os grandes deste mundo que o conheciam. Disse mais: “Eu vou te dar uma boa casa afastada, onde poderás orar e comer, se quiseres”.

Com o cardeal estava Frei Ângelo Tancredi, um dos primeiros doze frades. Ele disse ao bem-aventurado Francisco: “irmão, perto daqui, no muro da cidade, há uma bela torre bem ampla e espaçosa por dentro, que tem nove galerias, em que podes ficar afastado como em um eremitério”. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Vamos vê-la”. Quando a viu, gostou; voltou ao senhor cardeal e lhe disse: “Senhor, acho que vou ficar alguns dias em vossa casa”. O senhor cardeal ficou muito contente com isso. Por isso Frei Ângelo foi e arrumou-a, para que o bem-aventurado Francisco com seu companheiro pudessem ficar lá de dia e de noite.

Pois o bem-aventurado Francisco não queria descer de lá nem de dia nem de noite enquanto ficasse na casa do senhor cardeal. Frei Ângelo propôs ao bem-aventurado Francisco e a seu companheiro que levaria comida de foram todos os dias para a refeição deles, porque nem ele nem outra pessoa devia entrar onde ele estava.

Então o bem-aventurado Francisco foi para ficar com o seu companheiro. Mas quando quis dormir lá na primeira noite, vieram demônios que bateram nele fortemente. Ele chamou imediatamente seu companheiro, que ficava longe dele, e disse: “Vem a mim!”. Ele se levantou logo e foi para junto dele. E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, os demônios me bateram muito; por isso quero que fiques comigo porque tenho medo de ficar aqui sozinho”. E o companheiro ficou com ele durante toda a noite. Pois o bem-aventurado Francisco tremia todo, como um homem que está com febre; e os dois ficaram acordados aquela noite inteira.

Nesse meio tempo, o bem-aventurado Francisco conversava com seu companheiro, dizendo: “Por que os demônios me bateram e lhes foi dado pelo Senhor o poder de me fazer mal?”. E começou a dizer: “Os demônios são os esbirros de nosso Senhor. Como o prefeito, quando alguém o ofende, manda o seu esbirro para puni-lo, assim o Senhor corrige e castiga os que ama por seus esbirros, isto é, pelos demônios, que neste ministério são seus ministros. Pois até o religioso perfeito peca muitas vezes ignorantemente. “Por isso, quando não conhece seu pecado, é castigado pelo diabo, para que veja e considere por esse castigo diligentemente, interior e exteriormente, as coisas em que ofendeu, porque quando o Senhor quer manter nesta vida presente alguma pessoa, não deixa nada nela sem vingar.

Mas eu, pela misericórdia e graça de Deus, não sei de nada em que tenha ofendido sem que me tivesse corrigido pela confissão e a satisfação. Até mais: por sua misericórdia deu-me este dom de me fazer conhecer na oração tudo em que eu posso agradar ou desagradar. Mas pode ser, como me está parecendo, que o Senhor me castigou por seus esbirros porque, embora o senhor cardeal ,e faça de boa vontade misericórdia e o meu corpo tenha necessidade de receber e eu possa receber confiantemente dele, meus frades, que vão pelo mundo suportando fome e muita tribulação, e outros frades que ficam em casas pobrezinhas e nos eremitérios, quando souberem que eu fico na casa do senhor cardeal, poderão ter uma ocasião de murmurar contra mim, dizendo: Nós agüentamos tantas necessidades, e ele tem suas consolações. Por isso sempre tenho que lhes dar bom exemplo, principalmente porque para isso fui dado a eles.

Pois os frades ficam mais edificados quando fico entre eles nos lugares pobrezinhos, do que em outros lugares, e suportam com maior paciência suas tribulações quando ouvem e sabem que eu também as suporto”. E embora o bem-aventurado Francisco fosse sempre enfermo, porque no século foi frágil e débil por natureza e todos os dias até o dia de sua morte, porque ainda estava mais doente, todavia considerava que devia dar sempre bom exemplo aos frades, e que devia tirar-lhes sempre a oportunidade de murmurar contra ele, isto é, que os frades não pudessem dizer: Ele tem tudo que é necessário, e nós não temos. Porque, sadio ou doente, até o dia de sua morte quis padecer tantas necessidades, que todos os frades soubessem, como nós, que estivemos com ele por algum tempo até o dia de sua morte, que, se quisessem lembrar-se, não poderiam evitar as lágrimas, e, quando sofressem algumas enfermidades e tribulações, teriam que suporta-las com mais paciência.

E, bem cedo, o bem-aventurado Francisco desceu da torre e foi ter com o senhor cardeal, contando-lhe tudo que tinha acontecido com ele e todas as palavras que conversara com seu companheiro. E também lhe disse: “As pessoas têm muita confiança em mim e acham que sou um santo homem, mas os demônios me expulsaram do cárcere”. Porque queria ficar lá afastado como em um cárcere, sem falar com ninguém a não com seu companheiro. E o senhor cardeal ficou muito contente com ele. Na verdade, como o conhecia e venerava como um santo, ficou contente de sua vontade, depois que não quis ficar lá. E assim o bem-aventurado Francisco, dispensado por ele, voltou para o eremitério de São Francisco de Fonte Colombo, perto de Rieti.



[118]

Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco foi ao eremitério de Monte Alverne; e como o lugar era muito afastado, ele gostou tanto que quis fazer aí a quaresma em honra de São Miguel. Pois fora para lá antes da festa da Assunção da gloriosa Virgem Maria, e contou os dias desde a festa de santa Maria até a festa de São Miguel, eram quarenta dias. E disse: “Em honra de Deus e da bem-aventurada Virgem Maria, sua mãe, e do bem-aventurado Miguel, príncipe dos anjos e das almas, quero fazer aqui uma quaresma”.

E aconteceu que, quando entrou na cela para lá ficar continuamente, rogou ao Senhor na primeira noite que lhe mostrasse de alguma maneira como poderia saber se era sua vontade que ficasse ali. Pois o bem-aventurado Francisco sempre foi solícito, quando estava em algum lugar continuamente em oração, ou quando saía pelo mundo em pregação, em conhecer a vontade do Senhor, segundo a qual mais pudesse agradá-lo. Porque algumas vezes temia que, com a desculpa de ficar mais afastado para orar, o corpo quisesse descansar, recusando o trabalho de ir pregando pelo mundo, pois para isso Cristo desceu do céu ao mundo.

Até mais, os que lhe pareciam amados pelo Senhor, fazia-os rogar ao Senhor que lhes mostrasse sua vontade, se devia sair pelo mundo pregando ou de vez em quando tinha que permanecer em algum lugar remoto para orar. Bem cedo, na aurora, quando estava em oração, vieram pássaros de diversos tipos para cima da cela onde ficava, não todos juntos, mas primeiro vinha um e cantava, demonstrando o seu doce verso, e depois ia embora. Depois vinha outro, cantava e ia embora; e assim fizeram todos.

O bem-aventurado Francisco ficou muito admirado com isso e teve a maior consolação, mas começou a meditar sobre o que seria isso. E foi dito pelo Senhor em espírito: “Isso é sinal de que o Senhor vai te fazer o bem nessa cela e vai dar-lhe muitas consolações”. E essa foi a verdade; pois entre muitas outras consolações ocultas e manifestas, que deus lhe fez, foi-lhe mostrada por Deus a visão de um Serafim, da qual teve muita consolação em sua alma, entre ele mesmo e o Senhor durante todo o tempo de sua vida. E aconteceu que, quando seu companheiro levou-lhe a comida, ele contou tudo que lhe tinha acontecido. E embora tivesse muitas consolações naquela cela,, os demônios também lhe causaram muitas tribulações, como contou ao mesmo companheiro.

Por isso, uma vez, disse: “Se os frades soubessem quantas tribulações me fazem os demônios, não haveria nenhum deles que não tivesse muita piedade e compaixão de mim”. E por isso, como disse muitas vezes aos seus companheiros, ele não podia prestar as satisfações e mostrar-lhes de vez em quando sua familiaridade, como os frades desejavam.



[119]

Em certa ocasião, o bem-aventurado Francisco permanecia na eremitério de Grécio. E como permanecia em oração de dia e de noite na última cela depois da cela maior, certa noite, no primeiro sono, chamou seu companheiro, que estava deitado perto dela, na cela maior e antiga. O companheiro levantou-se imediatamente e foi ter com ele. Entrou no átrio daquela cela, perto da porta, onde o bem-aventurado Francisco estava deitado, lá dentro.

E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, não pude dormir esta noite, nem ficar direito para a oração; pois minha cabeça e minhas pernas tremem e até parece que comi pão de joio”. O companheiro conversava com ele sobre isso, compadecendo-se. E o bem-aventurado Francisco disse: “Acho que o diabo estava neste travesseiro em que tenho a cabeça”. Pois o senhor João de Grécio, que o santo amava com muito afeto e a quem demonstrou muita familiaridade durante todo o tempo de sua vida, tinha adquirido no outro dia aquele travesseiro, que estava cheio de penas.

Pois, desde quando saíra do século, o bem-aventurado Francisco não quis dormir em colchão nem ter à cabeça um travesseiro de penas nem quando estava doente e nem em nenhuma outra ocasião; mas naquela hora os frades o obrigaram contra sua vontade, por causa de sua grande enfermidade dos olhos. Jogou-o para o seu companheiro. Seu companheiro levantou-se, pegou-o com a mão direita e o jogou sobre seu ombro esquerdo e, segurando-o com a mão direita, saiu daquele átrio. E perdeu a fala na mesma hora, e não podia mover-se do lugar nem mexer com os braços e as mãos, nem largar o travesseiro, mas lá ficou parado. Parecia-lhe que ra um homem colocado fora de si, que não sente nada nem em si nem nos outros. Tendo ficado assim por uma hora, eis que pela misericórdia divina o bem-aventurado Francisco o chamou. Voltou a si na mesma hora, foi e jogou fora o travesseiro. E voltou a bem-aventurado Francisco, contando tudo que lhe tinha acontecido.

O bem-aventurado Francisco disse: “À tarde, quando eu estava rezando Completas, senti quando o diabo entrou na cela”. Mas depois que soube que fora na verdade o diabo que o impedira, não o deixando dormir nem ficar em pé para a oração, começou a dizer a seu companheiro: “O diabo é espero e astuto demais: pois como, pela misericórdia de Deus e por sua graça não pode me fazer mal na alma, quer impedir a necessidade do corpo, para que eu não possa dormir nem ficar em pé para a oração, para impedir a devoção e a alegria do coração, e para que eu reclame da doença”.

Pois, apesar de ter tido por muitos anos a maior doença do estômago, do baço e do fígado, e a enfermidade dos olhos, era tão devoto e rezava com tanta reverência, que na hora da oração não queria encostar-se ao muro ou à parede, mas ficava semprsem capuz na cabeça e algumas vezes de joelhos, principalmente quando se entregava à oração na maior parte do dia e da noite. Até mais: quando ia a pé pelo mundo, sempre parava de andar para rezar suas horas; mas se estivesse cavalgando, porque sempre estava meio doente, desmontava para dizer suas horas.



[120]

Por isso, certa ocasião, quando estava voltando de Roma, quando esteve na casa do senhor Leão por alguns dias, no dia em que saiu de Roma, choveu o dia inteiro. E como estava muito doente, ia a cavalo. Mas para dizer as suas horas, desceu do cavalo, ficando em pé ao lado da estrada, apesar da chuva e de ter ficado todo molhado. E disse: “Se o corpo quer comer em paz e com sossego, a sua comida, que acaba sendo pasto dos vermes, com quanta paz e sossego deveria a alma receber sua comida, que é o próprio Deus!”. E dizia: “O diabo fica exultante quando consegue extinguir ou impedir a devoção e a alegria do coração do servo de Deus, que provém da oração limpa e das outras boas obras. 

Pois se o diabo pode ter alguma coisa de seu no servo de deus, se o servo de Deus não for sábio e se, o mais depressa que puder, não o apague ou destrua pela contrição, pela confissão e pela satisfação da obra, em pouco tempo faz de um cabelo uma trave, aumentando cada vez mais”. E disse: “O servo de Deus deve satisfazer a fome, o sono e as outras necessidades de seu corpo com discrição, para que o irmão corpo não possa murmurar, dizendo: “Eu não posso ficar em pé e insistir na oração, nem posso me alegrar em minhas tribulações e fazer outras obras boas, porque não me satisfazes”. Também dizia que se o servo de Deus não satisfaz seu corpo com discrição, de um modo bastante bomm e honesto, como puder, e o irmão corpo, na oração, nas vigílias e em outras obras boas da alma quiser ser preguiçoso, negligente e sonolento, deve castigá-lo como um animal mau e preguiçoso, porque quer comer e não produzir nem carregar a carga. 

Entretanto, se o irmão corpo não pode satisfazer suas necessidades na doença e na saúde por escassez e pobreza, quando pede o que precisa a seu irmão ou prelado, honesta e humildemente, por amor de Deus, e não lhe for dado, suporte pacientemente por amor do Senhor, o Senhor vai dar-lhe o mérito do martírio. E como fez o que podia, isto é, pediu o que necessitava, fica livre de pecado, mesmo que o corpo fique mais doente por causa disso”. 

Nisso o bem-aventurado Francisco sempre empenhou o maior e o principal esforço, embora seu corpo tenha sido muito afligido desde o princípio de sua conversão até o dia de sua morte, porque sempre foi solícito em ter e conservar, exterior e interiormente a alegria espiritual. Até diziaa que, se o servo de deus se esforçar sempre por ter e conservar a alegria interior e exteriormente, o que provém da limpeza do coração, os demônios não podem fazer-lhe nenhum mal, dizendo: “Porque o servo de Deus mantém a alegria na tribulação e na prosperidade, não conseguimos achar nenhuma porta para entrar nele, nem para prejudicá-lo”. Pois certa vez repreendeu um de seus companheiros porque lhe parecia que estava com tristeza e com a cara triste. E lhe disse: “Por que tens tristeza e dor por tuas ofensas? Guarda isso entre ti e deus e para a Ele para que por sua misericórdia te devolva a alegria de sua salvação; e diante de mim e dos outros procura ter sempre alegria, porque não convém que um servo de Deus mostre diante de seu irmão ou de outro um rosto amargo e atribulado. “Eu sei que os demônios me odeiam por causa dos benefícios que Deus me deu por sua misericórdia. Como não pode me fazer mal por mim, tentam e se esforçam por me prejudicar através de meus companheiros. 

Mas se não conseguem a mim e a meus companheiros, retiram-se com uma grande confusão. Se alguma vez eu me encontrasse tentado e abatido, se vir a alegria de meu companheiro, acho que por causa dessa alegria vou voltar da tentação e do aborrecimento para a alegria interior”.

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