segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Diário de um Consagrado

O Consagrado foi escolhido por Deus, e disse um Sim a uma consagração total de sua vida. Mas que vive em plenitude sua humanidade, com o coração em Deus, mas com os pés na terra. O suor e as lágrimas de um consagrado é sua alegria, pode até parecer contraditório, mas é isto mesmo, a pessoa quando toma consciência que está se consumindo pelo Reino de Deus, reconhece em que lugar está sua recompensa.

Mas também apresentar que o consagrado do Senhor é um ser humano que se diverte e vive bem sua vida aqui na terra.

Demonstrando a simplicidade e a normalidade da vida de um consagrado do Senhor. Na qual sua experiência cotidiana com o Senhor é o seu único sustento.

Diário de um Consagrado,CN

Quando sou fraco é que o Senhor se faz forte em mim…

Na Canção Nova se diz que descansamos carregando pedra. Porém que cansaço gostoso quando é feito para o Senhor, quando se tem no coração que as coisas não são feitas para pessoas, mas para Deus; quando se descobre que a meta não é este mundo mas a salvação de almas. Isto me faz contemplar uma dimensão da realidade celeste manifestada na terra pela fé, porque sentimos a presença de Deus em nós no serviço que realizamos com amor.

Diário de um Consagrado,CN

A história do meu irmão é um tesouro precioso

Ontém em casa tivemos a graça de partilhar nossa história de salvação. E puder perceber o tesouro que é a vida de cada irmão e irmã, como Deus tece um fio de ouro que conduz a nossa vida. Nisto percebi também que não devo julgar ou falar mal dos irmãos. Ficar julgando os defeitos e limites do próximo.


Ouvindo a história de cada um além de ter sido cura para mim, pude compreender certas atitudes deles. Pude perceber nisto que não existem pessoas más, mas existem feridas. Ninguém é perfeito, caminhamos nesta vida na busca de restauração interior para alcançar a graça deste homem novo. Eu não estou pronto como exigir que o irmãos estejam…
Nesta partilha cresceu em meu coração o amor por cada um, por adentrar no sagrado dos meus irmãos.

Portanto, antes de julgar o seu irmão, procure conhecer sua história…

Diário de um Consagrado,CN

O que faço quando acordo com mal humor…

Quando acordo de mal humor, o que procuro em um primeiro momento é silenciar. Não devo descarregar no irmão os meus males. Se não tenho palavras que faça bem para as pessoas é melhor ficar calado. Meu pai fundador me ensina que o “problema é meu, mas a cara é do outro”. Como disse faço silêncio e em oração procuro entender o “por que” do mal humor, que pode ter várias causas desde os problemas pessoais, uma enfermidade, um sono mal dormido etc…

Em mim o remédio para curar o meu mal humor é o silêncio. Qual é o seu remédio?

Diário de um Consagrado,CN

Quando a Vida Fraterna nos refaz.

Quem nunca chegou cansado e esgotado em casa depois de um dia intenso de serviço?
Ontem cheguei assim em casa. A única coisa que queria era simplesmente deitar na minha cama e dormir. Mas havia sido marcado uma reunião fraterna. Por obediência tinha que ir. Irmãos que experiência maravilhosa fiz com a vida fraterna nesta reunião , a convivência me refez, arrancou-me do desânimo e do cansaço. Recebi de Deus através de meus irmãos uma efusão de ânimo e alegria.

Graças a Deus na Canção Nova nossos princípios de vida são vivenciais, são encarnados. Ontem tive a graça de ser refeito pela Vida Fraterna, junto de meus irmãos e irmãs, experimentei a eficácia sobrenatural da fraternidade.
Não se entregue ao desânimo e ao cansaço do cotidiano, que suga nossa alma, mas permita Deus fazer em ti um Batismo de alegria e amor pelos irmãos, por aqueles que te ama.

Viva a Vida Fraterna….

Diário de um Consagrado,CN

O Consagrado é gente…

O homem é um ser ilógico e contraditório. Não pode ser medido de maneira exata pela matemática, porque não é constante. O ser humano pode estar alegre ou triste; com bom humor ou mal humor; ser afável mas também pode ser rude, pode ser justo mas muitas vezes injusto; pode ter atitudes boas e más, ser santo e pecador. Dentro do homem parece que existem dois seres que lutam constantemente entre si, o que o faz ser tão inconstante.
Tudo isso para dizer que o consagrado também é ser humano e vive todas as dimensões humana de uma pessoa. Ele também tem dor de barriga, sente raiva, às vezes até briga, fora tudo isto também sofre pra caramba…Para quem não sabe o consagrado também peca. Por fim o consagrado é um ser humano.

Mas claro que sua natureza humana não pode ser desculpa para não lutar e vencer suas tendencias más. Porém deve se quebrar os “tabus” de se pensar que um consagrado é uma pessoa anormal que habita um mundo a parte. Não! O consagrado habita este mundo e partilha de tudo aquilo que todas pessoas vivem, inclusive das tendencias boas e más.

Sou consagrado, sou humano, sou gente pôxa… Quero ser santo, quero ser um homem novo. Mas desculpe o transtorno estou em construção.

Diário de um Consagrado,CN

A pobreza do consagrado…

Existem muitos mendigos que tem um coração de rico, são orgulhosos, prepotentes, auto suficientes e apegados as coisas deste mundo; mas também fez experiência com ricos com o coração pobre, desapegados, simples e humildes.

Na nossa pobreza experimento estas situações, não tenho nada em mim que não foi dado por Deus. Assim é nossa pobreza, não tenho nada, porém nada me falta.

Deus me trata como filho e me dá sempre o melhor, como já disse nunca me falta nada, nunca passei fome, sede ou frio… mas se um dia precisar passar por isso, sei que já tenho tudo. “A quem tem Deus nada falta só Deus basta”.

Por isso, peço a Deus que eu não seja um mendigo de coração rico, orgulhoso e apegado as coisas passageiras deste mundo. Mas tenha uma pobreza interior que muitas vezes os homens não enxergam, mas que Deus vê…E isto é o que importa.

Diário de um Consagrado,CN

Irmão me perdoe…Eu errei….

Devemos saber pedir perdão, mas também devemos saber perdoar. A pessoa que sabe perdoar percebe que isto é cura e libertação. Ao perdoar, como um juiz, nós absolvemos o irmão em nosso coração, apagamos a condenação que pesava sobre ele. Quando uma pessoa vem nos pedir perdão é porque já reconheceu o seu erro, está com o coração contrito. Por mais que você perceba que não há sinceridade naquele pedido de perdão. Aceite! No minimo este seu ato de amor será cura e libertação para você.

Se você não tem forças para perdoar, por ter sofrido um grande dano, peça auxílio do Espírito Santo, que nos ajuda a ir além de nossas forças e capacidades humanas.

Aqui aproveito para pedir perdão para todos aqueles que causei algum mal…

Diário de um Consagrado,CN

Viver Reconciliado é remédio para alma

Na Canção Nova vivemos o princípio do Viver Reconciliado. Nossa é uma de nossas regras de vida é não ir dormir sem colocar os pingos nos “is” com aqueles que tivemos algum entreveiro. Como diz as escrituraas: “Não se ponha o sol sobre o vosso ressentimento.”

Este é um remédio muito eficaz de cura e libertação para todos. Quando vamos dormir sem se reconciliar com aqueles que fizemos mal ou nos fizeram mal, fica como que um azedume dentro de nós. As coisas vão fermentado como lixo velho e vamos ficando mal.

Não sei se acontece isto com você, mas quando tenho algum desentendimento com algum irmão, às vezes fico tentado fugir da pessoa, porém quanto mais eu procuro fugir, mas a bendita sempre aparece nos lugares onde estou.
O que devo fazer? Devo me reconciliar. Porém como me reconciliar? Nem sempre vou me reconciliar logo depois de um desentendimento. Eu paro, vou para Capela, escuto Deus, esfrio a cabeça, deixo baixar a poeira, depois procuro em Deus um jeito mais oportuno de me reconciliar com a pessoa.

Diário de um Consagrado,CN

O irmão espelha aquilo que sou…

A psicologia mostra-nos que temos mecanismos de defesa em nossa mente que são inconscientes. Um do qual quero falar diz muito de mim que é a “projeção” ou espelho.
Muitas vezes vejo certos defeitos no irmão que me incomoda muito. Isto faz com que eu fale, pense e queira mal a este irmão.

Passando com uma psicologa, ela me fez perceber que estas pessoas das quais eu tinha dificuldades eram simplesmente reflexo do que sou. Eu via defeitos em certos irmãos que me incomodava demais, porém tinha o mesmo defeito, ou até mesmo desejava ser o que a pessoa era. Como disse: tudo no inconsciente, não no consciente.

Na verdade eu me via no espelho, e no meu inconsciente não aceitava os meus próprios defeitos. Um exemplo foi que no meu pré-discipulado na Comunidade Canção Nova, tinha muita raiva de um irmão, falava mal e julgava, para ser sincero eu não suportava este irmão. Isto me incomodou, e parei para rezar, nisto Deus me falou:” Este irmão é você…aquilo que você deseja ser…”

Relutei dentro de mim, mas percebi que era tudo verdade. Porque o irmão cantava, rezava, pregava, era extrovertido e etc…Tomando consciência disso a imagem do irmão mudou dentro de mim, hoje é uma pessoa que admiro e grande amigo.

Por isso hoje antes de criticar ou julgar o irmão, eu paro para perceber que estes defeitos do irmão podem ser na verdade meus defeitos…

Irmãos façamos uma pequena reflexão e procuramos observar se os defeitos que você vemos no irmão, se na verdade não são os nossos defeitos. Na verdade ninguém gosta de ficar vendo os seus defeitos e limites no espelho, buscamos ver nossa beleza, mas quem quer ver os defeitos…

Diário de um Consagrado,CN

Quando um irmão frita o outro…

Fritamos o irmão quando não respeitamos os seus limites, achando-nos donos plenos da verdade, como se fossemos quase semi-deuses da razão.

Na vida fraterna é preciso ter caridade e saber tratar cada um de maneira individual. Porque se não for assim, corre-se grande risco de “matar” o próximo.

É nossa obrigação, como cristão, tratar cada pessoa de maneira individual, como Jesus trata. Eu não posso querer que o irmão seja igual a mim. O irmão tem o ritmo dele e eu o meu. Ele tem as qualidades dele e eu as minhas, ele tem os defeitos dele e eu os meus. Quando não individualizo o irmão, eu estou fritando-o, estou matando-o.
Em primeiro lugar vem a pessoa. A começar de mim, preciso aprender a tratar as pessoas de maneira singular…

Diário de um Consagrado,CN

Você quer receber muitas, poucas ou nenhuma graça? É questão de lógica…

 “Quereis que o Senhor dê muitas Graças? Visitai-o muitas vezes. Quereis que Ele vos dê poucas Graças? Visitai-o poucas vezes. Quereis que o demônio vos assalte? Visitai-o raramente Jesus Sacramentado. Quereis que o demônio fuja de vós? Visitai a Jesus muitas vezes (…) ” Dom Bosco

O Senhor Eucarístico que está sempre ali no sacrário a nos esperar, para renovar nossas forças para o dia-dia.
 Não é o Senhor que precisa de mim, sou eu que preciso dele…

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Como ser santo?

Santidade não é fuga do mundo
Quer saber como ser santo? Faça bem todas as coisas. Leve Jesus para todos os lugares. Convide-O para estar em todos os lugares. Santidade não é fuga do mundo, mas transformação deste mundo. É saber que podemos curtir aqui, mas sem sermos "curtidos”. É saber que podemos deixar marcas de Céu na vida de todos aqueles que estão ao nosso redor. Isso é ser santo. Fazer bem todas as coisas e amar. Esse é o segredo da santidade, a verdade de uma humanidade que vive a si própria na plenitude. O amor é tudo o que as pessoas procuram.



Somos o que queremos ser. Somos, por assim dizer, obra de nossas mãos. Em cada escolha nossa, deixamos um rastro de nosso jeito de ser pessoa e, assim, deixamos um jeito de ser santo. O amanhã depende muito de como vivemos o hoje. Não deixe a vida o levar; leve a vida! Não a desperdice!



Vamos viver com entusiasmo, com alegria, mas, sobretudo, com senso de responsabilidade.



Existem muitas pessoas que pensam viver, mas, na verdade, estão fingindo. Ao mesmo tempo, muitos acreditam que, para ser santos, devam deixar de viver. Não é nada disso. A ordem é: Viva! Viva a vida! Deseje o Céu!



É hora de nos levantarmos e propormos uma santidade linda, apresentada pela Igreja Católica há mais de dois mil anos e que é possível. Vamos santificar nossos namoros, nosso trabalho, nossas amizades, nossas baladas. É possível! O mundo e Deus esperam isso de nós! A juventude é uma riqueza que nos leva à descoberta da vida como um dom e uma tarefa.



Você se lembra do jovem do Evangelho que era muito rico e um dia perguntou para Jesus o que era preciso para ganhar a vida eterna? Se quiser, confira essa passagem em Mateus (19, 16-22); ele percebeu a riqueza de sua juventude. Foi até Jesus, o Bom Mestre, para buscar uma orientação. Mas, no momento da grande decisão, não teve coragem de apostar tudo em Jesus Cristo. Saiu dali triste e abatido. Faltou-lhe a generosidade, o que impediu uma realização plena. O jovem fechou-se em sua riqueza, tornando-se egoísta.



Não podemos desperdiçar a nossa juventude. Devemos vivê-la intensamente, apostando tudo em Jesus e sendo gente, humanos. Sempre com a certeza de que é possível sermos santos de calça jeans.



(Trecho extraído do livro "Santos de Calça Jeans" de Adriano Gonçalves).





Adriano Gonçalves

adriano@geracaophn.com

Adriano é apresentador do programa Revolução Jesus. Vai ao ar todas as quartas-feiras a partir das 23h e com reprise aos domingos a partir das 17h na TV Canção Nova. Programa jovem que tem como finalidade levar o telespectador a um encontro profundo e determinante com Jesus.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Frases de Santo António

É viva a Palavra quando são as obras que falam."




"Quando te sorriem prosperidade mundana e prazeres, não te deixes encantar; não te apegues a eles; brandamente entram em nós, mas quando os temos dentro de nós, nos mordem como serpentes."



"Uma água turva e agitada não espelha a face de quem sobre ela se debruça. Se queres que a face de Cristo, que te protege, se espelhe em ti, sai do tumulto das coisas exteriores, seja tranqüila a tua alma."



"A paciência é o baluarte da alma, ela a fortifica e defende de toda perturbação."



"Ó meu Senhor Jesus, eu estou pronto a seguir-te mesmo no cárcere, mesmo até a morte, a imolar a minha vida por teu amor, porque sacrificaste a tua vida por nós."



"Ó Senhor, dá-me viver e morrer no pequeno ninho da pobreza e na fé dos teus Apóstolos e da tua Santa Igreja Católica."



"Neste lugar tenebroso, os santos brilham como as estrelas do firmamento. E como os calçados nos defendem os pés, assim os exemplos dos santos defendem as nossas almas tornando-nos capazes de esmagar as sugestões do demônio e as seduções do mundo."



"Quem não pode fazer grandes coisas, faça ao menos o que estiver na medida de suas forças; certamente não ficará sem recompensa"





Santo António de Lisboa



Santo António era português, nasceu em Lisboa em 15 de Agosto de 1195 e seu nome de baptismo era Fernando de Bulhões. Filho de Maria Teresa de Taveiro e Martinho de Bulhões conheceu a Fé Cristã na casa rica e nobre, em que morava. Fernando estudou na Escola dos Cónegos da Catedral de Lisboa, onde teve uma profunda educação religiosa. Aos 15 anos decidiu ser padre e depois dessa decisão, teve 10 anos de estudos. Em Coimbra estudou teologia, foi ordenado Sacerdote (Congregação dos Agostinianos) e especializou -se, mais tarde, nas Sagradas Escrituras, de que tanto gostava.





Um certo dia o então Padre Fernando vê bater à porta de seu convento cinco frades franciscanos que estavam se preparando na oração e na penitência para uma acção missionária em Marrocos. Durante esse tempo, manteve com eles uma relação de amizade e admiração. Quando os frades resolveram viajar para a África, despediram-se do Padre Fernando alegres e partiram com os pés descalços, que retratavam a vida pobre e singela, alegre e cheia de simplicidade e fé que levavam. Fernando de Bulhões viu então o quanto a sua vida era diferente daquela. Mediocridade, comodismo e distância dos problemas do povo cristão e não cristãos foram os principais problemas percebidos por ele.





Em 1220, recebeu a notícia de que os cinco missionários franciscanos que tinham ido a África, estavam de regresso... mortos!

Após cruéis sofrimentos, tinham sido assassinados por pregarem o Evangelho em terras da África. Ao ver o exemplo dos cinco missionários, decidiu então tornar-se frei. Vestiu o hábito franciscano, deixou o nome de Fernando e adoptou o de António.





Após uma frustada tentativa de viajar a Marrocos, em companhia do Frei Filipino, foi forçado a aportar na Sicília, em 1221. Pensa-se que no mesmo ano, encontrou São Francisco em Assis, no famoso Capítulo

das Esteiras.





Santo António morreu em 13 de junho de 1231, em Pádua, aos 36 anos de idade e com uma vida de intensa pregação da Palavra de Deus por toda a Itália. Foi sepultado na igrejinha do Convento de Santa Maria de Torricelle. Um mês depois, os habitantes de Pádua pediram ao Papa Gregório IX que elevasse António às honras do altar. Reconhecidas a doutrina e a Santidade de António de Pádua, foi canonizado antes de completar-se 1 ano de sua morte (11 meses). Em 16 de janeiro de 1946, o Papa Pio XII proclama Santo António, Doutor da Igreja, com o título de Doutor Evangélico.

Quinze dias com Santa Catarina de Sena

*** Quinze dias com ***


Santa Catarina de Sena





O ponto de partida para estes dias de oração, é um convite a inverter a marcha. Nós dizemos: «Eu sou», «Eu existo», «Eu amo», «Eu não amo», «Eu vivo», «Eu rebento» … e às vezes, desabafamos: «Estou farto». Em suma, mesmo de rastos, o nosso «Eu» anda de boa saúde. «E Deus, no meio de tudo isso? Será que está presente»? Os dois primeiros dias levar-nos-ão a uma descentralização e a uma concentração. Deus diz: «Eu sou» e mostra-nos, com amor, que nós não somos senão por Ele. Esta revelação leva-nos a vincular alegremente a nossa vida, não ao «eu», mas ao «Tu»: fomos feitos para contemplar e admirar, pois «somos feitos só de amor».



«O insensato diz: “Deus não existe”» (Sl 13), porque julga que a liberdade tem esse preço. Catarina ajuda-nos a receber a nossa vida do Criador, pois a nossa liberdade tem nele a sua fonte. Penetremos, pois, no conhecimento de nós próprios em Deus em nós. Geralmente o sentimento de não ser nada é experimentado como uma descida aos infernos, uma «queda» das alturas, uma experiência do vazio em que giramos em torno de nós próprios. Mas neste caso, a revelação do nosso nada é fonte de alegria, pois nos é dada no encontro com um Deus «apaixonado pela sua criatura», não tendo nós contribuído para tal de «maneira nenhuma».

A seguir a estes primeiros passos no conhecimento e no reconhecimento, penetremos mais ainda na intimidade de Cristo, a fim de nos deixarmos transformar por Ele. A maneira mas segura de nos parecermos com Ele, é reparar no empenho com que se deu. O caminho mais curto, é «atravessara ponte» - largar as mãos e deixar-se levar – e contemplar com que liberdade Cristo se ofereceu na cruz para nos acolher no seu lado aberto e no inundar do seu amor.



A cruz é o eixo central destes quinze dias, porque ela é o lugar do « Deus». É aí que o conhecimento interior de Cristo se aprofunda até à comunhão suprema: «Permanecei no meu amor» (Jo 15,9). O símbolo duradouro desta intimidade é o sangue de Cristo que irriga as nossas vidas pelos sacramentos.



Foi também na cruz que Jesus suportou a nossa falta de fidelidade no momento da crise e o endurecimento de muitos no momento do Dom supremo. Ao longo destes dias, estará em foco a «sombra do amor próprio», as tentações de abandono, e o amor tão fascinante de Cristo na cruz para com os pecadores que nós somos.



O fruto final desta contemplação é a oferta de si mesmo - «toma a minha vida» - por amor de Cristo e do seu Corpo – a Igreja e a humanidade inteira com a qual Ele faz corpo. Este oferecimento inscreve-se na liberdade espantosa com que Maria se ofereceu quando da Anunciação: nesse dia, Deus inscreve-se nessa total disponibilidade humana e, humildemente, faz a sua morada entre nós.



1- Quem sou eu?



Quem não pergunta pela sua identidade? A todos nos preocupa. Tem tal influência na nossa vida que, se tivermos uma má imagem de nós mesmos, nos socorremos – por causa da nossa vulnerabilidade – da aprovação alheia, submetendo-nos à sua autoridade. Adoptamos, então, um comportamento de dependência relativamente às pessoas (necessidade de reconhecimento, de protecção…), bem como às actividades e aos objectos. Quanto mais eu for, para mim próprio, um desconhecido, mais procuro alguma maneira de ser reconhecido por alguém. É como se a minha vida só aos seus olhos existisse.



«Quem sou eu?» - pergunta-se Catarina a si mesma, aos 18 anos de idade. A resposta a essa pergunta será o fundamento da sua vida espiritual. Tal interrogação não provém, de modo nenhum, da necessidade de introspecção. Uma noite, estando toda absorta nas suas conversações com o Senhor, dialogava com Ele com um certo atrevimento; de repente, porém, receando estar a ir longe demais, exclamou: «Alma miserável, quem és tu para que Deus se digne conversar contigo face a face?... Senhor, quem sou eu? E diz-me também, Senhor, quem Tu és».



É sob o olhar de Deus, e não dos homens, que Catarina se interroga; é ao Senhor que faz a pergunta. A resposta será divina. A interrogação não provém do desdém, mas do espanto (pelo seu atrevimento) e da admiração (por Deus conversar com ela face a face). A possibilidade de dialogar com Deus não oculta o risco de se elevar até Ele, tomando parte no que há de mais sagrado, ou seja, na sua Palavra? E quando Deus me fala, não correrá o risco de descer até mim?



Catarina é acometida por um acesso de humildade. Não tenta compreender-se por si só, como se a lua se iluminasse a si própria. Permanece na luz de Deus e, na relação filial que com Ele mantém, recebe a resposta: «Sabes, minha filha, quem tu és e quem Eu sou»? A palavra do Senhor introdu-la no mundo das bem-aventuranças: «Se possuíres esse duplo conhecimento, serás feliz». Tal como no monte das bem-aventuranças, a seguir a cada proclamação «felizes…», fica-se à espera de assistir ao desfilar dos princípios de sabedoria do mundo; o que se segue, porém, deixa-a desconcertada: «Tu és aquela que não é. Eu sou aquele que sou».



«Tu és aquela que não é»: um género de declaração que, normalmente, deveria deprimir-nos ou, pelo menos vexar-nos. Mas em Catarina produz o efeito contrário! A descoberta do seu nada diante de Deus, vai dotá-la de uma tal liberdade frente a si própria e frente aos outros, que será a força motriz da sua audácia apostólica. Juntamente com a descoberta de nada ser por si mesma, recebe a humildade e a gratidão.



O esquecimento de si perante «Aquele que é», proporciona a alegria de saber que tudo é graça e audácia de viver como feliz devedor.

A obsessão connosco mesmos, equivale a que nos fixemos na própria baixeza. Provoca um sentimento de perturbação um tanto niilista. Acarreta desprezo de si e pusilanimidade: sob o álibi da fraqueza, permito-me desistir de tudo. Também acarreta orgulho, pois faz que me considere juiz de mim próprio. E finalmente, ingratidão, pois sob o pretexto de não me vangloriar, esqueço-me de dar graças por tudo quanto recebi.



Em todo o Diálogo, Catarina admira-se do facto de a nossa existência depender do amor transbordante da Trindade. É deste amor que recebemos a nossa identidade. Nada somos por nós mesmos. Esta dependência, vivida com gratidão, é o segredo da alegria. Quando cortamos o cordão umbilical que nos liga ao Criador, quando a relação com Deus se deteriora, as coisas começam a correr mal no nosso íntimo. Dizemos: «Não valho nada… Sou uma nulidade»! e desanimamos, porque nos vemos só a nós mesmos! Mas a partir do momento em que nos recebemos como criaturas das mãos do Criador, tudo muda.



Esta experiência foi a alavanca de toda a vida de Catarina. Às vezes temo-nos em tão pouco consideração que sentimos demasiadamente o peso da vida… Deixamos de dar «glória» a Deus. Suportamos nós todo o peso. Como duas pessoas que se baloiçam numa tábua fixa num eixo, elevando-se alternadamente: se colocássemos o peso do lado de Deus, é evidente que seríamos elevados. Como numa brincadeira de crianças. Ao ser elevados, arrastaríamos connosco a humanidade. Em hebraico, a palavra «glória» o que tem valor, o que tem «peso». Quando damos glória a Deus, a nossa vida torna-se leve, precisamente por colocarmos todo o peso do lado de «Aquele que é» e que nos eleva.



A vida transforma-se, então, num «Magnificat» e a pergunta «Quem sou eu?» passa a ser daquelas que todos os namorados formulam: «Que seria de mim sem ti, e sem saber que me amas com tanto amor»? Olha à tua volta e vê quantas pessoas têm a sensação de não existirem para ninguém. Não será o auge do desamparo? Quantas não têm a sensação de só existirem pela sua graça? «A minha natureza é o fogo», diz ela. Desposada por Cristo na fé, torna-se «um outro Ele, pela união de amor».



«Quando tu e os meus outros servos, tiverdes assim conhecido a minha Verdade, ficareis dispostos a suportar, até à morte, todas as tribulações, injúrias, opróbrios, em palavras e em acções, pela honra e glória do meu nome. É assim que receberás e suportarás as dores». (D 4).



Aos trinta e três anos, a vida de Catarina está consumada. Consumou-se na compaixão, isto é, na comunhão com Cristo que sofre com a ingratidão das pessoas que não reconhecem tudo quanto Deus lhes deu. A primeira coisa que Deus lhes ofereceu, foi a existência; a segunda, foi a «re-criação» no amor de Cristo, que deu a sua vida por nós, na cruz.



* * *



Entra em oração com Catarina:



«Ó Pai eterno…

A luz da fé

alimenta e faz crescer o fogo na alma,

que não pode arder no fogo da caridade

se a luz não lhe revelar o teu amor por nós.

Tu, luz, alimentas e fazes crescer o fogo na alma

Como a lenha alimenta o fogo material.

Ó luz maior que todas as luzes!

Ó bondade maior que toda a bondade!

Ó sabedoria maior que toda a sabedoria!

Ó fogo que ultrapassa todo o fogo!

Porque só Tu és Aquele que é,

e tudo o resto, não é nada,

a não ser na medida em que Tu lhe deres o ser» (O 17).



Deixa penetrar em ti estas palavras: «Tu conheces-Me em ti, e desse conhecimento, obterás tudo quanto te é necessário». Liberta-te de tudo o que não é.

«Ao conhecer o seu nada, a alma é levada, pouco a pouco, a conhecer a bondade de Deus para com ela, e desse conhecimento advém-lhe uma profunda humildade que, como a água benfazeja, extingue o fogo do orgulho e acende o fogo da caridade ardente…

Ao ver o amor infinito que Deus lhe tem, a alma não pode deixar de O amar» (C 43).



Volta a tua vida para Aquele a quem dizes:

«Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito, ao Deus que é…».

«Tu és o fogo sempre a arder. «Trindade… Inflama os nossos corações» (O 13).



2- A casa do conhecimento próprio e de Deus



É dentro de mim que eu moro e é aí que Deus se faz convidado. É a dimensão espiritual da minha existência, o lugar onde procuro conciliar a minha sede de absoluto com os valores terrenos. É a minha inferioridade. Às vezes ando fora de mim, seja por os conflitos interiores me perseguirem, seja por o mundo me absorver a tal ponto que deixo de ser quem sou. Posso ter muitas casas, mas tenho uma única residência.



«Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém abrir, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» (Ap 3, 20). Ninguém mostrou tanto respeito pela liberdade humana como Deus. Ele, que tem todas as chaves na mão, espera à porta da sua serva. Catarina enche-se de admiração perante o mistério da nossa liberdade: «Ele bateu à porta da tua vontade, ó Maria…, e se não tivesses querido abrir, Deus não teria encarnado em ti».

«Ó Maria, templo da Trindade, receptáculo da humildade» (O 21)!



«Quando orares, entra no teu quarto mais secreto» (Mt 6,6). Que quarto? O teu quarto alto, o teu cenáculo!



Catarina explana as metáforas bíblicas que se referem à vida interior: a casa do conhecimento próprio, a cela interior. Não contando com o apoio da vida em comunidade, arranjou uma cela na casa paterna. Aqueles lugares são uma imagem das condições em que vive a sua intimidade com Deus, no meio do mundo.



Conhece bem todos os cantos da casa, pois é ela que faz as limpezas, abre a porta e serve a família e os amigos, como hospedeira de Cristo e dos apóstolos. Vivendo a graça de Marta nos vários andares, vive a de Maria na cela que instalou na cave, onde ouve o Senhor falar-lhe e dar-lhe «a melhor parte».



Reconhecendo-me amado(a), já não me reconheço, pois o amor transfigura! «Ó abismo de caridade, pareces louco pelas tuas criaturas, como se não pudesses viver sem elas, quando afinal és o nosso Deus. O que Te faz ter tanta misericórdia? O amor, e não a necessidade que porventura terias de nós» (O 7). «Quando a alma vê e pensa que Deus a ama tanto, não pode deixar de O amar».



A experiência fundamental do conhecimento próprio, portanto, não é o fracasso nem o pecado, não é o homem nu e descaído; é, antes a alegria de se saber amado. Esse conhecimento é dinamizado por uma concepção optimista do homem e pela confiança na sua liberdade, sempre capaz de fazer o bem. «Deus, olhando para si mesmo, apaixonou-se pela beleza da sua criatura e, num transporte de amor, criou-a à sua imagem e semelhança» (C 210). É certo que o pecado manchou a semelhança, mas a imagem permanece: que maravilha sou! Esse conhecimento é um Dom. O seu objectivo final é Deus: «Depois conhecerei como sou conhecido» (1Cor 13,12).



O homem, privado dessa luz, é cruel para consigo mesmo: não vê que Deus o elevou, com muito amor, a uma condição muito superior àquela a que antes poderia aspirar. Fica cativo das suas exigências e mesmo e para com os outros. Submete-se a mutilações para se conformar com o modelo que lhe oferecem aqueles com quem se relaciona e mutila o outro para o tornar conforme a si mesmo. A raiz da crueldade para com os outros é, em primeiro lugar, a crueldade para consigo: o homem tem uma ideia muito pobre da sua dignidade. Despreza-se!



Ao iniciar a fase mais intensa da sua vida apostólica, passando a ser cada vez mais itinerante, Catarina nunca sai da sua cela interior. Sofre por constatar este paradoxo: muitos religiosos, que beneficiam de uma cela murada, desejam deixá-la ao menor pretexto. Não tendo cela interior, muitas colunas da Igreja caíram… «Escrevo-te com o desejo de te ver habitar na cela do conhecimento de Deus a teu respeito. Nesta cela, adquirem-se a humildade e a caridade ardente. Quem se conhece, conhece Deus e a bondade de Deus para com ele e, por isso, ama-O. Não se perturba com as perseguições do mundo, mas dispõe-se a suportar os defeitos do próximo. Fez da sua cela um céu e prefere aí permanecer cheio de aflições e sujeito às tentações do demónio, do que procurar, fora, a paz e o repouso… Fora da sua cela, morre como o peixe fora da água» (C 123).



* * *



«Ó Pai compassivo e misericordioso,

tem piedade de nós, concede-nos misericórdia,

porque somos cegos,

privados de toda a luz,

sobretudo eu, pobre e miserável,

sempre cruel para comigo mesma.



Já que, na tua luz, vês as nossas necessidades,

faz que conheçamos a tua eterna bondade

para que a amemos…



A luz está à porta da alma e logo que se lha abre,

aflui como o sol que bate na janela fechada

e entra na casa aberta.

Convém, pois, que a alma tenha vontade

de Te conhecer

e abre os olhos da inteligência;

então, ó verdadeiro Sol,

entras na alma e espalhas os teus esplendores;

dissipas as trevas e derramas a claridade;

expulsas humildade do amor próprio,

para não deixares ficar senão

o fogo da caridade;

fazes que o coração seja livre

pois, na tua luz, ele reconhece

quão grande é a liberdade que nos deste,

arrancando-nos à escravidão do demónio

em que vivia a humanidade

por causa da sua própria crueldade».



Aqueles que andam cegos pelo amor próprio, não conhecem nada: nem a si mesmos, nem a Deus; caso contrário, não seriam tão cruéis para consigo mesmos, «tornar-se-iam bons na tua bondade».



«Oh! Como a tua luz é necessária!

De todo o meu coração Te suplico que a dês a todas as criaturas racionais» (O 18).



3- Memória, inteligência e vontade cheias de Deus ou de mim?



Catarina quer tornar-nos mais capazes de Deus. Investiga o funcionamento da memória, da inteligência e da vontade, a sua harmonia e os seus conflitos. A memória influencia a minha vida. Tudo o que esqueço ou que retenho, modela a minha inteligência. O que me marcou, ilumina ou obscurece a maneira de me ver a mim mesmo e de ver Deus e os outros. Se a minha inteligência estiver embaciada, a minha vontade fica «desordenada».



Memória, inteligência e vontade são as três maravilhosas faculdades que orientam a minha existência, são como que magnetizadas por Deus, como as limalhas de ferro são atraídas por um íman. Retirai o íman, e a memória, esvaziada «da lembrança de Deus e dos seus benefícios», só retém o imediato: «O que vejo, quero possuí-lo; ou o azedume: «O que vejo, não posso possuí-lo»; ou o desdém: «Isso, não posso esquece-lo». Um, tem a memória curta e julga que não deve nada a ninguém; outro, tem memória de elefante, e não retém senão os golpes e as feridas. Outro ainda, bebe, droga-se, droga-se, estonteia-se, para tentar esquecer… mas em vão.



A memória humana é como um recipiente: vale aquilo que nele se mete. Com que o enchemos? «É as prática do amor – diz Deus – que enche a memória com a minha lembrança e com a recordação de todos os meus benefícios. Essa lembrança enche a inteligência de zelo e de reconhecimento. A alma não pode viver sem amor. Quer sempre amar qualquer coisa. É feita de amor, pois criei-a para amar» ( D 51).



O afecto alimenta-me a memória. Recorda e torna a recordar, como fazem os namorados, tudo quanto Deus dá na sua criação e nas alianças que tem multiplicado, apesar dos pecados e das desordens da humanidade: «A minha alma estremece ao recordar… A minha alma estremece ao recordar… A minha alma está abatida, por isso penso muito em Ti» (Sl 41). A memória detém-se muitas vezes nos dons, sem reconhecer o doador que doa e… perdoa! «É por isso que ás vezes – diz Deus a Catarina – retiro à alma as consolações, para que Me procure e não se detenha unicamente nos meus benefícios». A minha memória pode ser uma casa de comércio: «Rezo até chegar a obter…Depois, até me esqueço de agradecer». Mas a minha memória é um templo, um lugar de comunhão com o Pai, que me criou para a vida eterna… com Ele. Lembrando-me do sofrimento do Filho, compreendo a minha ingratidão e a minha ofensa. Lembrando-me do Dom do Espírito à Igreja e da sua presença na minha vida, a minha memória extasia-se, a minha inteligência ilumina-se e a minha vontade põe-se a caminho.



A memória, a inteligência e a vontade mantêm-me, em conjunto e uma por meio da outra, orientando para Deus ou para mim mesmo, à maneira de uma antena parabólica. Sou responsável pelas minhas faculdades e é a minha liberdade que as orienta e as desorienta: «As delícias do mundo, quando se está separado de Mim, estão repletas de espinho e veneno. A inteligência engana-se na sua maneira de ver; a vontade, no seu amor…; a memória, no que retém. Há uma tal união entre estas três potências, que não posso ser ofendido por uma sem que o seja pelas outras…Cada uma é causa de bem ou de mal para a outra, conforme a decisão do livre arbítrio» (D 51).



Cada geração tem os seus traumatismos e todas as vidas são mais ou menos atingidas, uns sofreram a peste, outros a fome, os campos de concentração, o divórcio, o incesto… Não há nenhuma vida que não seja marcada por feridas ou deslizes mais ou menos ocultos, assumidos ou recalcados. Podem sempre dar origem a atitudes de perdão, solidariedade, compreensão mútua, conversão… A história conserva, muito discretamente, a memória destas maravilhas pouco mediáticas. Talvez nos impressione mais a influência do mal por ser visível e sensível. O vazio interior é propício à perturbação… «Como sabes, quando se bate em alguma vazilha vazia, faz ressonância, mas se estiver cheia, já não ressoa. O mesmo se passa com a memória quando está cheia da luz da inteligência ou do amor da vontade: as tribulações – e as alegrias – podem bater nela, mas não a fazem vibrar, nem de alegria desordenada, nem de impaciência: está cheia de Mim, que sou todo o bem» ( D 54).



Todos nós deveríamos aprender a gerir a recordação das provações. Estas podem tornar-se como um tampão e não deixar Deus entrar. O amor-próprio perturba e impede que se veja a graça, aliás constantemente oferecida. Na oração, Catarina faz memória de Deus, incessantemente, e das maravilhas que Ele está sempre a renovar, tanto na ordem da criação como na da redenção, pelo Dom do Espírito, e da Igreja, com os sacramentos que administra em ordem à vida eterna ocontrição. «Portanto, para lhe resistir e Me agradar, é preciso que, com humildade sincera, entregueis o vosso amor e o vosso desejo à minha incomensurável misericórdia. Com efeito, tu sabes que o orgulho do demónio não suporta a humildade espiritual; e que, quando a alma confia verdadeiramente na grandeza da minha bondade e misericórdia, ele fica cheio de confusão» (D 66). Deus lembra a Catarina que o demónio quis deprimi-la, fazendo-a crer que a sua vida fora um logro. Ela reagiu, elevando-se. «Tu fizeste o que devias fazer; e Eu nunca recuso a minha bondade a quem quiser recebê-la. Elevaste-te humildemente para a minha misericórdia e disseste: “Confesso ao meu criador que a minha vida se passou nas trevas; refugiar-me-ei, porém, nas chagas de Cristo crucificado, banhar-me-ei no seu sangue; destruirei, desse modo, toda a iniquidade, e alegrar-me-ei com o desejo do meu criador”, Bem sabes que o demónio se pôs em fuga».



Em vez de me debruçar sobre o meu eu miserável, elevar-me-ei para a misericórdia, refugiar-me-ei nela com filial confiança, sabendo que um filho ou uma filha tem sempre lugar no coração de Deus. Alegrar-me-ei «com o desejo do meu criador»!



A seguir à cilada do desânimo, surge, igualmente sedutora, a da auto-satisfação. «Ele quis – continua Deus – encher-te de orgulho, dizendo: “Tu és perfeita e agradável a Deus…, deixa de lamentar os teus defeitos”! Então dei-te a luz e tu viste o que devias fazer: humilhar-te. Respondeste ao demónio: “… João Baptista… fez muita penitência; e eu, que cometi tantas faltas, tereis reconhecido quem é esse Deus a quem ofendi e quão miserável sou por O ofender”? Então o demónio, não podendo suportar, nem a humildade do teu espírito nem a tua esperança na minha bondade, gritou-te: “Maldita sejas… Se te aterrorizo com confusão, elevas-te para a misericórdia; se te exalto, desces humildemente até ao inferno e, mesmo no inferno, feres-me com o cajado do amor”» (D 66)! É o demónio que, ao ser expulso da minha cela e ao ficar derrotado, entrega a chave da vitória. Deus concede-me que o persiga com o cajado do amor e conclui: «Se apenas te conhecesses a ti mesmo, cairias no desânimo; se apenas conhecesses a bondade de Deus, cairias na presunção».



Na casa do conhecimento, Deus ensina-me os perigos de desânimo e da auto-satisfação. Em ambos os casos, só me vejo a mim próprio. No segundo, Deus enviar-me-á, provavelmente, algumas tribulações terapêuticas, para que me volte para Ele. Quanto ao primeiro caso, é verdadeiramente patético. O desesperado sofre mais com a própria desgraça do que com a ofensa feita a Deus: só sente compaixão por si mesmo. Chega ao cúmulo da julgar o seu pecado maior do que a misericórdia divina! Paradoxo do orgulho: na sua cegueira, em nome da sua fraqueza, arroga-se o direito de emitir o seu julgamento «último»! Por isso, Deus diz: «O desespero de Judas entristeceu-me mais a Mim e foi mais penoso para o Meu filho, do que a sua traição» (D 137). Tu, inversamente, nunca te esqueças de que Deus habita em ti e que podes sempre refugiar-te aberto para ti. «Se não vos tornardes como crianças…».



* * *



Conhece-te em Deus e Deus em ti. Com alegria, cultiva o que em ti há de divino: «Sois feitos só de amor».



Quando te vires de rastos, ganha altura. Cristo também te diz a ti: «Ocupa-te de mim, que Eu me ocuparei de ti». Quando «o teu coração estiver em baixo e se sentir em apertos», faz como Zaqueu, trepa à «árvore da cruz» (C 119).



Quando a tua consciência se sentir satisfeita, trata de não desprezar o sangue derramado por ti. Desce até ao vale da humildade: perante o teu nada, Deus «aniquilou-se» (Fl 2,7) para te exaltar. Deus, que é mais humilde do que nós, habita na tua cela e revela-Se a ti próprio.



«Ó de deliciosa bondade… Não conhecemos de Ti

senão o que nos dás a conhecer;

e Tu no-lo dás na medida em que dispusermos

o pequeno recipiente da nossa alma

para Te receber.

Ó dulcíssimo amor, nunca Te amei totalmente

durante todo o tempo da minha vida.



Recomendo-Te os meus filhos

que me colocaste sobre os ombros.

Ai de mim! Deveria despertá-los

e estou sempre a dormir.

Pai dulcíssimo e misericordioso, desperta-os Tu,

para que o olhar da sua inteligência

Se fixe para sempre em Ti.



Pequei, Senhor, tem piedade de mim.

«Deus, vem em nosso auxílio,

Apressa-Te em socorrer-nos» (O 18)!



4-O rio da mentira e a ponte da verdade



Antes de passar deste mundo para o Pai, Jesus disse: «E para onde eu vou, vós sabeis o caminho… Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,4-6). Jesus quer associar-nos ao seu retorno ao Pai. E tal como Ele, Catarina deseja ardentemente que enveredemos pelo Caminho por cima das ondas.



A existência crista depara-se com uma encruzilhada de dois caminhos. Por um deles, seríamos arrastados pela corrente do mundo, à maneira de um rio que desaguasse num oceano de morte. É o caminho da mentira. Pelo outro, seríamos conduzidos pela graça, como por uma ponte sobre um rio impetuoso que acarretasse consigo todo o lodo. É o caminho da Verdade. Essa ponte permite que passemos de uma margem para a outra, do nosso reino, para o reino de Deus, de uma vida centrada em nós mesmos, para a vida em Cristo. O caminho da Verdade leva à paz e à vida em plenitude.



Catarina, que viajava muito, emprega os termos «pontes» e «caminhos» para nos conduzir ao Pai, passando por Cristo. Conhece a ponte de Avinhão, com vinte e cinco arcos (restam apenas quatro) e o impressionante caudal do Reno. Atravessou, em todas as estações do ano, as pontes sobre o Arno, em Florença e em Pisa, repetidamente arrasadas pelas cheias. Muitas vezes, as pontes medievais eram cobertas por um tecto. Albergavam lojas e até capelas.

Eram construções magnificas que desembocavam junto da porta da cidade. Ainda hoje, a construção de uma ponte suspensa perto da foz de um rio, ou lançada ao ar entre duas ilhas suscita, forçosamente, a nossa admiração. A sua inauguração salta para a ribalta da actualidade e os órgãos de comunicação publicitam que: «Vale a pena fazer um desvio». As obras-primas dos homens, porem, não resistem ao desgaste do tempo nem aos desacatos das guerras.



Catarina exprime a mediação de Cristo servindo-se da imagem de uma ponte que, não sendo feita pela mão do homem, resiste a todas as cheias da história. As pedras dessa ponte foram cimentadas com o sangue de Cristo, e a união da sua divindade com a nossa humanidade, nunca será destruída; a aliança renovada no seu sangue, nunca será quebrada. É uma ponte coberta, «resguardada pela misericórdia»; um viaduto ao longo do qual há armazéns de abastecimento: as «lojas» dos sacramentos, particularmente da Eucaristia. Tudo foi previsto para facilitar a caminhada do peregrino, para o alimentar, dessedentar e tratar. Uma ponte assim, é uma pura obra-prima da graça! Será que desperta a nossa gratidão? Será que compreendemos a mensagem do Evangelho: «Vale a pena fazer um desvio»? «Ninguém pode vir ao Pai senão por Mim» (Jo 14,6).



Deus, por intermédio do seu Filho, transporta-nos de uma margem para a outra, para que possamos atravessar o rio a pé enxuto, como os Hebreus por ocasião da Páscoa. O orgulho, porém, priva-nos da simplicidade, e não seguimos pela ponte. Preferimos salvar-nos sozinhos, correndo o risco de nos afogarmos, em vez de enveredar pelo caminho aberto e oferecido por Cristo. Catarina serve-se da imagem da ponte para exprimir a experiência da graça que nos leva, como Teresa de Lisieux utilizará, numa época mais recente, a do elevador: porque nos esfalfamos a subir a escada, se Cristo nos estende os braços nos falta a humildade de nos deixarmos levar.



A impotência e a graça



A ponte simboliza o caminho da verdade, já que «a mentira tinha cortado a estrada para o céu». Cristo, pela sua verdade, restaurou o caminho. Na extremidade da ponte, Ele é a porta da muralha. «Se alguém entrar por Mim, estará salvo» (Jo 10,9). O caminho fluvial simboliza o engodo fascinante de tudo quanto o mundo contém de ilusões e de correntes incontroladas. «Aqueles que passam por baixo da ponte, afogam-se, por a água de nada lhes serve; corre sem cessar; e o homem também corre, sem cessar, atrás de coisas que não consegue agarrar nem reter» (D 27). «Foi para dar remédio a tantos males que vos dei o meu Filho e que fiz d’Ele uma ponte… Reconhece, pois, tudo quanto a criatura Me deve e quanto a alma se mostra descortês ao preferir afogar-se em vez de utilizar a ajuda que Eu próprio lhe ofereci» (D 21).



Graça e ingratidão



A questão central sobre a qual Catarina reflecte, é o facto de a graça ser oferecida e ser desprezada. É como se Cristo não tivesse vindo; como se a ponte da sua encarnação e da sua cruz não tivesse servido de nada. «Vê como é grande a ignorância e a cegueira do homem que, apesar de lhe ter sido construído um viaduto, teima em passar pela água. O caminho da ponte é tão delicioso para aqueles que o utilizam, que toda a amargura se transforma em doçura e todo o peso excessivo se torna leve… Não há língua capaz de exprimir, nem ouvidos capazes de ouvir, nem olhos capazes de ver, a alegria que sente quem segue por esse caminho… Muito louco é quem despreza tão grande bem, passando por debaixo da ponte, avançando no meio de mil fadigas, sem nenhuma consolação nem nenhum bem… Quero que, juntamente com todos os meus outros servidores, andeis continuamente contristados por causa das ofensas que Me são feitas, continuamente compadecidos do mal que se fazem a si mesmos, e da ingratidão com que Me ultrajam» (D 28).



A questão da unicidade do caminho para ir até ao Pai, é muito actual. Com efeito, parece que, hoje em dia, se pode ir até ao Pai por todos os caminhos, sem passar nem pela Ponte, nem pela Porta. Isto é, a mediação de Cristo parece supérflua. Não é por se afirmar, de acordo com o Evangelho, que Jesus é o único caminho para o Pai, que todos os outros caminhos são, só por isso, condenáveis. Nós acreditamos que todas as pessoas, seja qual for a sua crença, são filhas de Deus, são amadas por Ele e podem chegar ao Pai pela mediação de Cristo, mesmo que «o Caminho» não lhes tenha sido revelado. Mesmo sem serem, explicitamente, membros da Igreja, passam misteriosamente por Cristo. Porque Cristo morreu por todos e a graça de ir até ao Pai é dada, «por Ele», a todos.



Catarina fala a cristãos: desprezar a Ponte, é rejeitar Cristo e menosprezar a sua graça. A indiferença propositada é um ultraje feito ao amor do Pai manifestado em Cristo. A ingratidão, de que Catarina se acusa a si própria quando não se conhece a si mesmo. É por isso que Catarina insiste tanto nesta verdade libertadora: «Eu sou aquela que não é. Tu és Aquele que é».



* * *



«Ó Deus amor,

Tu que és Verdade, fala da Verdade.

Eu não sei dizer nada,

eu que não sou senão trevas,

pois não procurei o fruto da Cruz.

Procurei as trevas e saboreei as trevas…

Ah! Se o maléfico amor próprio

não cegasse os olhos

que a graça do baptismo iluminou!

Deixamos de Te ver,

a Ti e a todos os outros bens verdadeiros

e chamamos bem ao mal, e mal ao bem;

e assim decaímos

para a última ignorância e ingratidão.

Mais valia não ter recebido a luz.

Um crente falso é inferior ao infiel

e pior será o seu castigo;

no entanto, se lhe restar algum lampejo de fé,

tem mais facilidade em recorrer ao remédio

para se curar» (O 27).





5-A Ponte de Três Degraus



Com a revelação da ponte. Catarina recebe o convite para lhe subir os degraus. Esta ponte «preenche o espaço entre o céu e a terra, graças à união que consumei com o homem, feito do barco da terra» Vem do alto e sobe-se-lhe a partir de baixo. Como? Cristo diz de si mesmo: «Quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» (Jo 12,32); nada atrai mais o amor do que o amor.



Os pés pregados



«O primeiro degrau são os pés, que significam o desejo. Com efeito, assim coo os pés suportam o corpo, o desejo suporta a alma. Os pés pregados servem-te de degraus para chegar ao lado, o qual te revela o segredo do coração. Com efeito, logo que te ergues sobre os pés do desejo, a alma começa a sentir o desejo do coração aberto do Meu filho: é nele que encontra o perfeito e inefável amor… Então a alma, ao ver-se amada a esse ponto, enche-se de amor» (D 26).



No primeiro degrau, a alma despoja-se dos desejos desordenados para fixar o seu desejo em Cristo. No segundo, reveste-se de amor, cujo segredo encontrou no lado de Cristo. Aí, «o coração inebria-se» a tal ponto que deixa de se ver a si próprio; fica «como se estivesse embriagado» (C 75). O esquecimento total de si mesmo conduz à etapa seguinte.



«Tenho subido o segundo degrau, a alma chega ao terceiro, isto é, à boca, onde encontra a paz, depois da grande batalha que travou contra os seus próprios pecados… A ponte, portanto, tem três degraus, para que, tendo subido os dois primeiros, se chegue ao último. Este é tão alto que a água não pode atingi-lo. Não há nele nenhum vestígio de pecado». (D 26).

Estes três degraus correspondem às etapas da vida espiritual que a tradição designa por purificação, iluminação e união com Deus.



O lado aberto: aí, vês o segredo



«Que revelação! – escreve Catarina ao irmão Nicolau – Foi por um amor imenso que Se imolou e que fez de Si próprio, isto é, do seu próprio corpo, um degrau para nos tirar do caminho das aflições e nos dar o repouso! Oh!, querido filho, quem duvidará de que o início deste caminho seja muito duro? Mas quando se chega aos pés da afeição… toda a amargura se transforma em doçura» – «Foi a regra que Ele ensinou uma vez a uma das suas servas (Catarina), dizendo-lhe: “Eleva-te, minha filha, eleva-te acima de ti própria, eleva-te até Mim. Foi para te poderes elevar, que fiz do meu corpo um degrau para ti, quando me pregaram na cruz. Procura elevar-te, primeiramente até aos meus pés, isto é, até à afeição e ao desejo de Mim… É assim que começarás a conhecer-te a ti mesma. Depois, alcançarás o meu lado aberto, cuja chaga te mostrará o meu segredo: que tudo o que fiz, o fiz por amor do teu coração; por isso, que a tua alma se inebrie”» (C 64).



Um dia, Catarina perguntou a Cristo porque é que tinha deixado que Lhe abrissem o lado já depois de morto; o Senhor respondeu-lhe que foi para nos permitir víssemos «o segredo do coração», pois o sofrimento dura só algum tempo, ao passo que o seu amor é infinito. «Quis, pois, que vísseis o segredo do coração, mostrando-vo-lo aberto, a fim de que vísseis que vos amava mais do que vos podia mostrar com o sofrimento finito» (D 75). Este lado aberto, onde o ser humano é esperado para ser envolvido em ternura, é chamado aposento nupcial. Nesta contemplação há um crescendo que nos faz passar do exterior para o interior. Cristo não atrai somente para junto d’Ele, mas para entrar n’Ele: esta atracção é um êxtase.



Admirável simbolismo: ao passo que Deus fechou o lado de Adão depois de ter tirado Eva – osso dos seus ossos e carne da sua carne -, Catarina vê o lado de Cristo sempre aberto, para que a humanidade possa entrar nele e possa, nele, purificar-se das suas ofensas, saciar-se, e unir-se à divindade. «O fogo intensificava-se em mim e eu estava cheia de admiração. Porque via os cristãos e os infiéis entrar no lado de Jesus crucificado. O desejo e o ardor do amor faziam-me ir com eles e entrar também em Cristo» (C 133).



«O beijo da sua boca» (Ct 1,2)



A paz que Cristo oferece na cruz, permanece, mesmo no meio de angústias e dos ultrajes: «A tribulação pode acometer a alma sem que ela se perturbe. Se estiver no meio da prosperidade do mundo, não se lhe apega de maneira desregrada, porque se despojou de si mesma no primeiro degrau. Este é o lugar onde se une e se torna semelhante a Jesus crucificado» (C 75). «Gozamos então de um tal repouso e de uma tal beatitude que, estando tão alto, nenhuma amargura nos pode atingir» (C 74).



Uma tal quietude equivaleria à fuga do mundo? Seria uma espécie de tranquilizante para atenuar a sensação dos golpes recebidos? Aproximar-se da boca de Cristo suscita, em Catarina, três interpelações.



Primeiramente, Cristo exclama: «Tenho sede». Esta sede da nossa salvação fá-lo sofrer mais do que tudo. É infinita, «ao passo que o sofrimento do corpo é finito» (C 8).



Como podemos dessedentá-Lo? Pagando-lhe «amor com amor»: servindo o próximo até arrostar com a própria morte, se necessário.



Quando é que Lhe oferecemos fel e vinagre? «Sempre que nos entregamos ao amor de nós próprios, à negligência…, sempre que, acordados, rezamos pouco, sempre que não andamos famintos da glória de Deus e da salvação das almas» (C 8).



«Quando tomou o vinagre, Jesus disse: “Tudo está consumado”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito» (Jo 19,30). Foi a consumação. O espírito de paz daí resultante, é comunicado aos homens. «Admirai esta paciência! Não dá ouvidos às injúrias com que O atormentam na cruz. Ao ouvir os gritos dos judeus que, por um lado, vociferam: “Crucifica-O”! e por outro, clamam que desça da cruz, limita-se a dizer: “Pai, perdoa”. Permanece imóvel, apesar de Lhe dizerem que desça: persevera até ao fim e é com uma alegria imensa que profere estas palavras: “Consummatum est” (= Tudo está consumado). Julgar-se-ia, talvez, que fossem palavras de tristeza, mas foram… palavras de alegria» (C 101). Cristo desejara tanto a nossa salvação, que exulta com o cumprimento da sua missão. A verdadeira paz coincide com a alegria do Servo.



– «Pai, nas tuas mãos…». Receber estas últimas palavras da boca de Cristo, faz-nos comungar no abandono filial a que sempre aspirara. A paz faz-nos viver na humildade de uma entrega total a Deus.



* * *







O primeiro degrau é o vestíbulo onde te despojas do pecado e da vontade própria para nada mais desejares além de Cristo.



O segundo, é o aposento nupcial onde te revestes «do traje nupcial da divina caridade»; convencido de que sendo assim tão amado, deixas-te consumir por esse fogo, a ponto de te abrasares no mesmo amor.



O terceiro é «o leito tranquilo onde a alma repousa» (C 74), o lugar onde te entregas totalmente a Deus, na paz da obediência», porque já não te pertences. A paz proveniente de uma tal união, não é o repouso ilusório da satisfação espiritual nem da preguiça apostólica. A comunhão com Cristo na cruz, liberta do receio de perder a vida ou qualquer outra vantagem, e torna o coração aguerrido para a missão. «Nenhuma amargura, nenhuma tristeza, nenhuma privação conseguem afligir» aquele que recebeu o «beijo» da paz. «Possui a suprema alegria… pois em Deus, que é o alegria suprema, não há nem tristeza nem amargura» (C 107).



Uma tal união, não só modifica o nosso próprio ser e o nosso comportamento, mas também o curso da história: o relacionamento dos homens entre si e com Deus, a sua relação com as coisas e com a criação inteira. «Arrastado pelo seu desejo de amor, o coração do homem é atraído, com todas as potências da alma: memória, inteligência e vontade. Assim harmonizadas e reunidas no mesmo nome, todas as suas acções materiais e espirituais são atraídas… e unidas a Mim pelo desejo de amor… já que se elevou tão alto para seguir o Amor Crucificado». – «Bem vês assim que, uma vez o homem atraído, tudo é atraído, pois todas as coisas foram feitas para ele. Portanto, era preciso que a ponte fosse levantada ao alto e que tivesse degraus, para se lhe poder subir mais facilmente» (D 26).







6- O Livro vivo



Para guiar a nossa oração procuramos, muitas vezes, um bom livro… E para estimular a nossa conversão, uma boa testemunha. Analfabeta, Catarina é incapaz de ler livros, mas por isso mesmo, possui o Dom de ler no corpo de Jesus, morto e ressuscitado, todo o amor que nos tem. Sabe que o único mestre capaz de ensinar, é «a doce Verdade».



Verdade é um nome próprio, uma pessoa que ama e se dá a conhecer. Por isso, o conhecimento não nasce primeiramente na cabeça, mas no coração, e «o amor segue o conhecimento». Os livros e a ajuda exterior são úteis, mas dependem do uso que deles se fizer. Empregam-se os meios e goza-se de Cristo. Mas às vezes, preferimos saborear os meios e desprezamos Cristo. A ajuda de um conselheiro espiritual ou de alguém «que fala bem», é preciosa, mas pode conduzir a um apego alienante em vez de conduzir a Cristo. «Não vos deixeis tratar por “mestres” – não chameis “mestre” a ninguém –, pois um só é o vosso Mestre – Cristo» (Mt 23,10).



Catarina, apesar de ter tido conselheiros espirituais e ter mantido contacto com monges cultos, afirma muitas vezes: «O que tenho e sou, não o devo a nenhum homem, mas unicamente a Cristo». Como sensibiliza os corações, tem também os seus fãs! A um padre, responde: «Recebi a sua carta. Compreendi o que diz. Bem sabe que eu só posso ver e dizer coisas a partir da minha própria miséria, ignorância e pouca inteligência; o resto provém da soberana e eterna Verdade. É a Ela que há-de atribuir-se, não a mim» (C 96).



A um dos seus correspondentes, apreensivo por ter lido – ou escrito – um livro considerado pouco ortodoxo, responde: «Deus deu-nos os olhos da inteligência e, interiormente, a luz da fé, que não pode ser-nos tirada, nem pelo demónio nem pelas criaturas, se não a perdermos nós, por amor próprio. Deu-nos o livro escrito, o Verbo, Filho de Deus: foi escrito no madeiro da cruz, não com tinta, mas com sangue; e as iniciais são as dulcíssimas e sagradas chagas de Cristo. E que ignorante ou que espírito grosseiro haverá, incapaz de ler esse livro? Nenhum, exceptuando aqueles que se amam a si próprios, não por falta de ciência, mas por falta de vontade» (C 307).



«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do céu e da terra,

porque escondeste estas coisas aos sábios

e aos inteligentes

e as revelaste aos pequeninos» (Lc 10,21).



«O Mestre subiu à tribuna da Cruz e ensinou-nos a sua doutrina, que escrevera no seu corpo. Fez de Si mesmo um livro, cujas letras são tão visíveis que toda a gente pode lê-las perfeitamente, apesar da fraqueza da sua inteligência e dos seus olhos. Portanto, que a sua alma o leia; que o leia e que, para melhor o ler, suba, com os pés da afeição, até ao amor de Jesus crucificado; caso contrário, não poderá ler bem. Alcancemos o salão principal, que encontramos na chaga do seu lado, onde nos revela o segredo do seu coração…» (C 255).



Nós não conseguimos amar sem egoísmo. O rigor da Lei faz-nos gostar do fruto proibido. S. Paulo, que nos convida a receber a graça, diz que Cristo anulou a dívida causada pela impossibilidade de cumprir a Lei, cravando na cruz o documento de acusação (Cl 2,14). Catarina extasia-se diante do Crucificado: esse documento, todo rasgado, – escreve – «era em pele cordeiro» (C 251).



* * *



«Ó Divindade eterna!...

Nem a memória pode reter-Te,

nem a inteligência compreender-Te,

nem o coração amar-Te como convém.

Ó natureza divina, que ressuscitas os mortos

e és a única que dá a vida,

quiseste unir-Te à natureza humana

ferida de morte,

para lhe devolver a vida.

Ó Verbo eterno, uniste conTigo

tão estreitamente a natureza mortal,

que, depois, foi impossível separá-la de Ti:

sobre a cruz, a natureza mortal suportava a dor,

mas a natureza divina vivificava-a,

de modo que eras, simultaneamente,

feliz sofredor.

o próprio sepulcro não quebrou

a união das duas naturezas.

Ó misericórdia inefável! Foi o teu próprio Filho,

o teu Filho por natureza, que foi castigado

por causa da falta do filho de adopção!

E não apenas o seu corpo

suporta o suplicio da Cruz;

a sua alma é torturada pelo desejo.

Ó Pai eterno,

como são profundos e incompreensíveis

os teus Juízos!

O homem insensato não pode compreendê-los.

E todavia, estes insensatos põem-se a julgar

as tuas obras

e a vida dos teus servos.

No entanto, apenas vêem a aparência,

incapazes de darem conta

do insondável abismo do teu amor,

e da abundância de caridade

derramada na alma dos teus servos» (O 27).







7-A pedra de diamante:



Miséria e Misericórdia



«Misericórdia para o mundo» – pede Catarina a Deus. A guerra esmaga milhares de civis, os malfeitores impunes triunfam, os pequenos sofrem por a sua dignidade ser achincalhada, há inocentes que são condenados… No turbilhão das paixões, da vaidade ou da barbárie, o coração do homem perde o Norte. «O insensato diz no seu Coração: Deus não existe!» (Sl 52). Às vezes, a alma fecha-se como uma ostra: «A nossa maquinação é perfeita. O coração de cada um permanece impenetrável» (Sl 32).



Catarina não precisa de ler os jornais nem de ver o telejornal para passar dias e noites em oração, a interceder pelos pecadores empedernidos. Cuida dos pobres e dos doentes e, neste mundo de miséria, é sobretudo sensível às doenças da alma. A inveja, o ódio, o ciúme, a opressão, o azedume, são a face oculta dos males da sociedade. Catarina conhece a vaidade dos príncipes da Igreja, a tibieza dos religiosos, a soberba dos governantes. O tempo é breve; os assassinatos, frequentes; e ela vê passar as carroças dos condenados à morte. O que a angustia, não são tanto os crimes e a devassidão, mas sobretudo a impenitência dos medíocres e o desespero dos filhos perdidos que ânsia por reencontrar. Contempla o amor salvador do seu Redentor, une-se às intenções e sofre com Ele a morte e a paixão de ver como o sangue de Cristo corre pelo chão, como o seu amor é desprezado e como os homens preferem o seu amor próprio. Nada mais pretende do que trabalhar pela salvação das almas: «Tenha gosto em estar com os publicanos e pecadores; quanto aos outros, ame-os muito e conviva pouco com eles», recomenda… ao seu confessor!



Só o amor pode quebrar a dureza do coração. Catarina recebe nas mãos a cabeça de Nicolau Tuldo, um prisioneiro político condenado à morte, que acompanhou até à execução. Este jovem nobre de Perúcia ficou tão revoltado com o excessivo rigor da sentença, que não deixava que ninguém se aproximasse do seu desespero. Foi graças à consolação que lhe proporcionavam as visitas de Catarina e à sua promessa de o acompanhar até ao suplício, que morreu «nas melhores disposições», depois de se ter confessado. «Chegou, por fim – escreve a Raimundo –, como um cordeiro pacifico e, ao ver-me, pôs-se a sorrir. Quis que eu lhe fizesse o sinal da cruz e, ao recebê-lo eu disse-lhe baixinho: “Meu querido irmão, vai para as núpcias eternas”… Estendendo-se com uma grande serenidade e eu destapei-lhe o pescoço. Debruçada sobre ele, recordei-lhe o sangue do Cordeiro. A sua boca nada dizia senão “Jesus, Catarina” e, enquanto pronunciava essas palavras, recebi a sua cabeça nas minhas mãos». A apóstola da misericórdia viu Cristo receber o sangue do condenado: «Nesse sangue estava a chama do santo desejo que a graça nele ocultara». Ele recebeu «o desejo, a sua alma, que colocou na abertura do seu lado, no tesouro da sua misericórdia» (C 143).



Lado aberto e coração fechado. Há um contraste permanente, na mensagem de Catarina, entre o lado aberto de Cristo e o coração fechado do homem. Aqueles que se obstinam no endurecimento, na ingratidão ou no desespero, «colocaram sobre o coração, por intermédio do livre arbítrio, a pedra de diamante que, se não for quebrada com o sangue, nunca será quebrada» (D 4). Diamante: a mais dura de todas as pedras! Nada há de mais resistente. Quer se trate de criminosos, cínicos, revoltados, desesperados ou de almas consagradas endurecidas pela falta de caridade, Catarina emprega, para todos, a mesma linguagem: «Peço-vos, em nome de Jesus crucificado, que essa pedra seja despedaçada pela abundância do sangue generoso do Filho de Deus. O seu calor é tanto, que não há frialdade nem dureza que lhe possam resistir» (C 146, a uma abadessa). A começar pelo papa e pelos arcebispos, todos precisam de que os seus corações de pedra se derretam à vista do amor do crucificado!



Exposto aos sarcasmos do seu povo, Cristo prometeu o Reino ao malfeitor contrito. «Tu não desprezas, meu Deus, um coração contrito» (Sl 50). «Hoje, se escutardes a sua voz, não endureçais os vossos corações» (Sl 95). «Tende cuidado, que não haja em vós um coração mau, a ponto de a incredulidade o afastar do Deus vivo. Exortai-vos, antes, uns aos outros… a fim de que não se endureça nenhum de vós, enganado pelo pecado» (Hb 3, 12-13).



O coração de alguns endureceu-se de tal maneira, que a pedra de diamante faz de pedra tumular: jazem na sombra da morte. A saída do túmulo só pode ser obra de Deus, Sol nascente, que nos vem visitar. É pela oração que Catarina consegue conversões. A de Nanni, um nobre criminoso, cujo coração estava empedernido por ódios mortais, mostra como ela procede: utiliza, «alternadamente, palavras que ferem e outras que deitam bálsamo na ferida; mas ele, como uma áspide que não ouve, fechava completamente os ouvidos do coração». Logo que cede num ponto, o Espírito entra pela brecha. As muralhas desmoronam-se. O homem «rebenta» e rende-se… às mãos do transpassado. Catarina confidencia-lhe: «Irmão bem-amado, a misericórdia do Senhor fez-te ver, finalmente, o perigo que corrias. Falei-te, mas desprezaste as minhas palavras. Dirigi-me então ao Senhor, que não desprezou a minha oração. Faz penitencia… antes que sejas surpreendido pela provação» (Vida II, 7).



A nossa época nada tem a invejar aos ódios mortais da Idade Média. A justiça civil e a política, impõem tréguas. Mas o tempo faz fermentar, debaixo do solo, «o mau cheiro das almas», e a caldeira dos povos explode novamente: vinganças, genocídios, purificações étnicas, torturas… Nos conflitos familiares e eclesiais, o tempo não remedeia nada. Pelo contrário, cava fossos. Só o amor e a misericórdia quebram os corações e as lanças.



A contrição perfeita. Catarina alcança conversões pela oração e pela pregação: pede, para cada um, a perfeita contrição. O Irmão Raimundo conta que, aquando de uma das missões pacificadoras no condado de Sena, viu centenas de pessoas descer das montanhas, como se tivessem sido convocadas por uma «trombeta invisível». Ao verem Catarina, as pessoas deixaram-se impressionar pela sua pregação – como os Judeus pela de Pedro – sobre Cristo crucificado: «Ouvindo estas palavras, ficaram emocionados até ao fundo do coração e perguntaram: “que havemos de fazer”? – Arrependei-vos» … (Act 2,37). Pedro vinha a sair do cenáculo e Catarina, da sua cela interior. «Eu era um dos confessores presentes – prossegue Raimundo – e encontrei nesses penitentes uma contrição tão viva, que ninguém podia duvidar da grande abundância de graças descidas do céu aos seus corações». Este caso não foi único, pois em 1376, o papa Gregório XI concedera a Catarina, por uma bula, que fosse acompanhada por três confessores detentores de poderes para absolverem os grandes culpados, que tivessem cometido grandes pecados. A maior parte deles nunca se tinha confessado ou nunca se tinha aproximado da misericórdia de Cristo com um coração aberto.



* * *



Entra na tua cela interior e implora misericórdia para a Igreja e para mundo.



Tu recebes o sangue de Cristo no teu coração, por meio dos sacramentos. A negligência não te faz, às vezes, ser frio como o mármore? Cristo também te diz a ti: «Faz-te capacidade, eu far-Me-ei torrente».



«Estava doente, preso, e fostes visitar-me» (Mt 25,36). Aqueles que estão doentes de endurecimento e presos da sua teimosia, terão algum lugar na tua amizade e na tua oração, ou será o teu coração que precisa de se enternecer? «Nada há de mais frio que um cristão indiferente quanto à salvação dos outros» (João Crisóstomo).







8- As moscas fogem do fogo



O coração de Catarina inflama-se à vista do amor de Cristo: «O fogo que, até então, estava latente sob a nossa cinza, começou a manifestar-se com enorme veemência quando o seu santíssimo corpo foi entreaberto no madeiro da Cruz, para que o desejo da alma fosse atraído para as alturas e para que o olhar da inteligência pudesse perscrutar o fogo do amor» (O22).



Nós pensamos, às vezes, que foi a maldade dos homens que subjugou Cristo na cruz. Pelo menos, é o que nos parece. Mas para Catarina, só «a santíssima caridade subjugou Deus», não o pecado. Nem os instrumentos de tortura, pois «os pregos não teriam sido capazes de O prender à cruz. Só o vínculo da caridade foi capaz de nela O fixar» (C126).



Se contemplarmos o amor que Deus nos tem, nenhum ser humano nem nenhum demónio conseguirá refrear o nosso desejo «da glória de Deus e da salvação dos homens». Porque os demónios fogem daqueles cujo coração estiver abrasado de amor divino. Como os insectos fogem de uma panela a escaldar. Mas se estiver morna, as moscas acorrem, instalam-se e comem.



Às vezes – prossegue Catarina – as moscas entram na panela e logo saem, porque a encontram mais quente do que imaginavam. O mesmo acontece ao demónio, julga que a alma está morna; penetra nela, por múltiplas tentações, mas logo sai, vendo o fervor com que a alma «procura conhecer-se a si própria e encher-se de dor por causa das suas faltas». A alma unida a Deus e inflamada do santo desejo, põe em fuga os demónios, como as moscas fogem da panela ao lume, com medo de se queimarem.



«As Moscas, drama em três actos», foi a primeira peça de Sartre. Põe em cena a liberdade em teste de situação. Milhões de moscas foram enviadas pelos deuses à cidade de Argos, depois de Egisto ter morto o rei. Simbolizam os remorsos que pensam…



As moscas, como todas as invasões de insectos, são um flagelo. Simbolizam os indesejáveis e numerosos assaltos de demónio. No «Diálogo», o Pai exorta Catarina a enfrentar essa situação com coragem. Convida-nos mesmo a que nos alegremos por nela nos encontrarmos, «pois nunca a alma tem tanta certeza que Deus habita nela como no momento da batalha. Porquê? Vou dizer-to: ela fica a conhecer-se a si própria quando, nos combates, nem consegue fugir, nem impedi-los. Reconhece, então, que nada é. A sua vontade pode unicamente recusar-se a consentir; nada mais. Se fosse qualquer coisa por si mesma, libertar-se-ia do que não quer. É, pois pelo verdadeiro conhecimento de si mesma, que se torna humilde. É com a luz da santíssima fé que corre para mim, Deus eterno, cuja bondade lhe sustém a sua boa vontade e a impede de ceder às misérias que a atormentavam no momento da batalha» (D 90).



Na época «das aflições, da adversidade, ou das tentações dos homens e dos demónios», só o fervor afasta as moscas. Aliás, o assalto destas pode tornar-se um meio de aumentar a nossa união com Deus: Jesus foi conduzido ao deserto «pelo Espírito, para ser tentado pelo diabo» (Mt 4,1). Foi nesse frente-a-frente que revelou o seu amor filial. Sim, «o Senhor põe-vos à prova para verificar se O amais com todo o vosso coração» (Dt 13,4).



* * *







«Ó Trindade eterna, fogo, abismo de caridade…

poderias dar-me mais

do que dar-Te a Ti mesma?

Tu és um fogo que arde sempre

e nunca se extingue.

Tu és um fogo que consome

o amor próprio da alma.

Tu és um fogo que derrete todo o gelo.

Tu iluminas…» (O 10).



(Às almas a Ti doadas),

«não somente Te dás (em alimento),

mas Tu as fortaleces

contra os assaltos do demónio,

as perseguições das criaturas,

as sublevações da sua própria carne

e contra as causas de perturbação

e contra as desgraças, venham de onde vierem.

A sabedoria do teu Filho ilumina-as,

quer quanto ao conhecimento de si próprias,

quer quanto à tua verdade

e aos artifícios de Satanás.

O fogo do teu Espírito ateia-lhes no coração

o desejo de Te amarem

e de te seguirem na verdade,

em maior ou menor grau,

segundo a medida do amor

que põem em vir ter contigo…».







9- «Desce da Cruz»



Desistir, abandonar? A tentação é um declive, suave ou íngreme, que me afasta de Cristo. Para Catarina, a origem de toda e qualquer desistência é a sensualidade: a inclinação para viver como nos apetece, segundo o desejo dos nossos sentidos e para evitar sofrer. É uma existência dominada pelo desejo de conservar a vida e pelo medo de a Deus. Mas pode voltar-se contra o Criador e contra nós. O Tentador serve-se dele para nos restringir a liberdade, fazendo-os crer que somos livres de tudo e o centro de tudo.



No meio das tribulações, tanto suas como dos seus discípulos, Catarina fixa-se mais nas tentações de Jesus na cruz do que nas que suportou no deserto. Aliás, são idênticas: «O diabo retirou-se de junto d’Ele, até um certo tempo» (Lc 4,13). Incita Cristo a procurar uma maneira mais fácil de cumprir a sua angustia, Jesus está rodeado de pessoas que O insultam: «Desce da cruz» (Mt 27,40).



Abandonado por todos, é desafiado a abandonar tudo: «Se és Filho de Deus, não permaneças nesse estado. Arranja outra maneira de nos salvar. Dá-nos um sinal: lança-Te daí abaixo». Jesus também não fez o que Lhe apetecia quando Satanás Lhe propôs que revelasse quem era, incitando-O a lançar-Se do pináculo do templo.

«Desce da tua cruz»! Catarina conhece este desafio. Sabe até que ponto os discípulos Lhe estão sujeitos. As zombarias de que Jesus foi alvo no momento mais crucial do dom de Si mesmo, repercutem-se de século em século. Quanto mais entregarmos a vida, mais expostos lhes ficaremos. «Desiste da fidelidade a que te comprometeste no baptismo, no casamento, no celibato por amor…! Já chega de… Rasga a tua regra de vida, o teu contrato de casamento… Dá-nos um sinal da tua liberdade». Essa instigação, hoje continuada pelos médias, violenta-nos. Reduz o amor a obrigações exteriores que limitariam a nossa liberdade criativa. E se a minha fidelidade estivesse apenas presa por pregos? Não valeria mais arrancar os pregos?



Vendo tantas desistências, tantas fidelidades sem amor e opções dominadas pelo receio de sofrer, Catarina exclama: «O que é que manteve Cristo preso à cruz? Nem os pregos nem a cruz, teriam sido capazes de reter o Homem-Deus: só o vinculo do amor…» (C 88). Os pregos que parecem prendê-lo são, aos olhos da fé, «as chaves que nos abrem o Reino» (C 166). Na cruz, o Senhor responde livremente e por amor, a toda a sedução. É nela que exprime e recusa definitiva da tentação de contornar o sofrimento para seguir o seu próprio caminho.



A instigação à desistência provém do pai da mentira. A cruz triunfa sobre as ambiguidades da procura da própria satisfação. Sela a coerência de toda a vida de Cristo com a sua missão e o seu oferecimento: «Por eles, totalmente me entrego, para que também eles fiquem a ser teus inteiramente por meio da Verdade (Jo 17,19).



Esquivar-se é uma arte que o mundo aplaude. Catarina exorta-nos a ser perseverantes na oração, nas provações e na missão. Convida-nos a imitar a sabedoria de Cristo «que subiu à tribuna da cruz». Ele «fez do seu corpo um livro cujas letras são tão visíveis que toda a gente pode lê-las, perfeitamente, apesar da fraqueza da sua inteligência e dos seus olhos. Portanto, que a nossa alma O leia…» (C 255).



São concordes com o testemunho de Paulo, um dos seus santos preferidos, «mio Paoliccio», como lhe chamava: «Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos… Muitos, de quem várias vezes vos falei e agora até falo a chorar, são, no seu fim é a perdição, o seu deus é o ventre, e gloriam-se da sua vergonha – estão presos às coisas da terra… Caríssimos irmãos, permanecei firmes no Senhor» (Fl 3,10,18; 4,1).



Mesmo que não sejamos capazes de ficar unidos a Cristo nas provações, e nos desprendamos do madeiro quando nos acomete o temporal, sabemos que Ele nunca se desligará da nossa humanidade nem se desprenderá da cruz, sobre a qual foi imolado com a soberana liberdade do amor. Ele enxertou-se para sempre na nossa humanidade, para a remir, e na madeira seca das nossas vidas, para que dêem fruto.



* * *



«Ó amor, inestimável amor,

se no tempo em que o homem

era uma árvore morta,

fizeste dele uma árvore viva,

enxertando-Te nele. Tu, que és a vida…

Se, pois fizeste isso, podes agora

salvar o mundo inteiro

que não sabe enxertar-se em Ti.



Os homens deixam-se ficar

na morte da sensualidade

e ninguém vem à fonte

buscar Sangue para regar a sua árvore.



Ó Verbo eterno, ó amor inestimável,

assim como produziste, para nós,

frutos de fogos, de amor, de luz,

e o fruto da obediência pronta que Te fez correr,

louco de amor, para a infame morte de cruz,

e que deste estes frutos

devido ao enxerto da tua divindade

na nossa humanidade

e ao enxerto do teu corpo no madeiro da cruz;

do mesmo modo, a alma não pode

senão prestar atenção

à tua glória e à salvação das almas,

tornando-se fiel, prudente e paciente.



Pequei, Senhor, tem piedade de mim.

Ó Verdade eterna, une a Ti,

enxerta em Ti aqueles que me deste

e que amo com particular amor,>

para que produzam frutos de vida…» (O20)



10-Que é feito do teu primeiro amor?



Carta a uma alma em crise



A infidelidade é o quinhão de cada um de nós: esfriamento do amor, obscurecimento da verdade, desregramento da inteligência e do comportamento, pecado… o abandono de Deus afecta a fidelidade conjugal, a fidelidade à vocação pessoal e à eucaristia dominical, o amor á Igreja e ao próximo…



Às vezes sentimo-nos perdidos, com um sentimento de vazio interior. Ou então, surgem-nos interrogações sobre o modo como conduzimos a nossa vida e fugimos do nosso meio e da nossa interioridade com receio de deixar vir à superfície certos sentimentos que poderiam perturbar-nos a existência. Achamos que podemos permitir-nos esse luxo e adoptamos um comportamento de refugiados, exilados para longe de nós. A culpa de tudo «o que não corre bem», é das circunstancias e dos outros.



A fuga para a frente, para a acção, ou para trás, para a descrença, prova que já não me atrevo a entrar na minha própria consciência. O acesso a mim mesmo, aos meus medos e às minhas aspirações, foi obstruído, por recear o conflito interior. Sinto-me esmagado…



Numa carta a um religioso, que adoptara uma atitude de fuga à própria vocação, Catarina recorda como a luz da fé é necessária para conhecer e amar a Verdade: «Não vejo como poderíamos ter a luz da inteligência sem a pupila da santíssima fé, que é o centro da nossa vida». Como dissipar a nuvem do amor próprio que nos impede de nos rendermos… à verdade? Reconhecendo as nossas faltas e a misericórdia infinita de Deus para connosco.

O conhecimento próprio e o da bondade de Deus, fazem nascer em nós uma profunda humildade e livram-nos da obstinação com a qual abafamos a consciência. «O pecado é normal no homem, mas a obstinação no pecado é obra do demónio». Esta longa carta (153), escrita em êxtase, a um religioso que abandonara a sua Ordem, aplica-se a todas as formas de infidelidade. Catarina expõe, nela, um admirável itinerário de conversão, a partir da concordância dos relatos de Marcos e João sobre a vista de Maria Madalena ao sepulcro, sobre o anúncio da ressurreição e a aparição de Cristo a Tomé.



Para facilitar, dividimos esta sequência em cinco etapas.



«É para a verdadeira Jerusalém que é preciso ir, é para a sua santa Ordem que tem de voltar; aí encontrará Jerusalém – a imagem da paz – isto é, a paz da consciência.

Entrará no sepulcro do conhecimento próprio, e perguntará como Maria Madalena: “Quem me tirará a pedra do sepulcro? Porque o peso dessa pedra é tão grande, o meu pecado é tão excessivo, que não poderei tirá-lo…”. Mas logo que tiver reconhecido e confessado a sua imperfeição, verá dois anjos a tirar a pedra.

– A providência enviar-lhe-á o anjo do santo amor e do temor de Deus, este amor nunca vem sozinho, mas trás à alma a caridade para com o próximo.



– O anjo do ódio, que Deus também lhe enviará para tirar a pedra, traz-lhe a humildade sincera e a paciência.



E então, com uma firme esperança e uma fé viva, nunca sairá do sepulcro do conhecimento próprio; permanecerá nele, com perseverança, até encontrar Cristo ressuscitado na alma, pela graça.

E quando O tiver encontrado, vai anunciá-Lo aos seus irmãos, que são as sólidas e doces virtudes, junto das quais quererá ficar sempre.

Então, Cristo aparece na alma de uma maneira sensível; deixa a alma aproximar-se d’Ele pela humilde e contínua oração.

É este o caminho, e não há outro».



Volta



Catarina exorta o discípulo infiel a voltar para a sai Ordem, para recuperar a paz da consciência. O itinerário do regresso implica uma deslocação real para a casa da paz original, que abandonou por infidelidade somente aí – cada um terá de ver o que essa «casa» significa ara si – e que a poderá recuperar. Encontrará, então, «a verdadeira Jerusalém», símbolo da paz e da morada de Deus.



Entra



Não basta reintegrar a sua comunidade, é ainda preciso entrar em si mesmo. A cela do conhecimento próprio tornou-se um sepulcro porque, no conflito interior, foi a morte que triunfou. Mas o sepulcro, na «verdadeira Jerusalém», é símbolo da sepultura de Cristo e da amizade que Maria Madalena, a pecadora, continuava a ter a Jesus, depois da morte deste. Na verdade, no sepulcro do conhecimento próprio, é o bem-amado que procuramos. O pecado tornou-nos fracos, impotentes. Tal como Maria Madalena, perguntamos: «Quem nos tirará a pedra»? Quem nos desobstruirá o acesso ao mais profundo de nós mesmos, onde Cristo está «morto e sepultado»? Morto, por nossa causa. Morto por nós e para nossa salvação.



Porque é que essa pedra será tão pesada? Porque o peso da mentira e a carga do meu pecado me oprimem. «Os meus pecados pesam sobre a minha cabeça e como um fardo excessivo me oprimem… Confesso a minha culpa, estou inquieto por causa do meu pecado… Vem depressa socorrer-me, Senhor, minha salvação» (Sl 38)! Receio tanto perder a imagem que tenho de mim mesmo! Estou bloqueado.

Logo que reconheci a minha fragilidade e confessei o meu pecado, a Providência enviou-me dois anjos. Um deles, traz-me o amor de Deus e também a caridade para com o próximo, isto é, a graça de amar aqueles com quem me vou reencontrar, depois de os ter ferido pela minha infidelidade.

O outro anjo traz-me o ódio (ao pecado) e a graça de me tornar humilde e paciente.



Para reentrar «na Ordem», portanto, não basta voltar para casa! A pedra do pecado tem que ser removida, com humildade e paciência. Amor e ódio são as duas facetas do mesmo radicalismo. A constância na conversão, é da ordem da graça. Confessando o meu pecado, atraio a graça que me liberta do sentimento de impotência, tão destrutivo para mim mesmo e para os outros.



Cristo ressuscitará no meu sepulcro? É que Ele não é indiferente à minha felicidade!



Persevera



É com uma firme esperança e uma fé viva, que quero procurar a verdade, sem a qual não existe fidelidade. «Tu aprecias a verdade no íntimo do ser e ensinas-me a sabedoria no íntimo da alma» (Sl 50). Permaneço, com perseverança, no sepulcro do conhecimento próprio até ser perdoado: até que me seja concedida a graça de reencontrar Cristo ressuscitado na minha alma. Esta paciência alimenta-se de uma esperança inabalável e de uma fé viva. «De manhã cedo imploro o teu auxílio. Espero… Meus olhos antecipam-se às vigílias da noite…

Tu, Senhor, estás perto» (Sl 119).



A perseverança é muito importante, pois o perigo que espreita o pecador convertido é que se torne presunçoso. Ela é sinal da minha humildade; por ela, renuncio a impor-me aos outros, a fixar-lhes a hora que me convém; deixo decantar o meu amor próprio e assumo uma atitude de espera. Senão, como «conciliar-me»?



Anuncia a ti mesmo a Boa Nova



Ao passo que Maria Madalena correu a anunciar a novidade aos apóstolos, eu evangelizo-me a mim mesmo: anuncio a ressurreição «aos meus irmãos, que são as sólidas e doces virtudes, junto das quais quero sempre ficar». A morte de Cristo abalou os apóstolos. A morte na alma, desconjunta-me: reserva, tagarelice interior e fluxo de reminiscências dolorosas; aprofunda o fosso entre mim e os outros. À luz da ressurreição, evangelizo-me a mim mesmo, permanecendo junto dos sólidos alicerces da minha vida: esperança, fé e caridade.



Aproxima-te



«Então Cristo aparece…». No Diálogo, Catarina fala da necessidade de refazer a unidade entre a memória dos benefícios de Deus, que alimenta a esperança, a inteligência iluminada pela fé e a vontade animada pela caridade. «Logo que estas três virtudes e potências da alma estiverem juntas, fico no meio delas pela minha graça», insiste Cristo (D 51 E 54; cf. Mt 18,19). Cristo «aparece, então, de maneira sensível, e deixa a alma aproximar-se d’Ele», não com incredulidade como Tomé, mas pela fé, pela humilde e contínua oração do pecador convertido. Aquele que se torna sensível à minha alma, mostra-se sensível à minha oração.

«É este o caminho – conclui Catarina – e não há outro».



* * *



Percorre novamente as cinco etapas desta revisão de vida e detém-te longamente na terceira.





«Sangue por sangue»



Quem não se sente incomodado pelo vocabulário utilizado por Catarina a respeito do sangue? A maior parte das suas cartas começam por: «Escrevo-lhe no seu precioso sangue…» Quase perdemos o apetite…



Ter ódio de, é uma expressão compreensível! As nossas videotecas estão cheias de histórias que sabem a morte e que fascinam os seus admiradores. Sem falar das práticas ocultas, que manipulam sangue humano ou de animais, nos ambientes urbanos da vidência. Na actualidade, os jornais televisivos não cessam de nos intoxicar com imagens de uma vida que quase sempre resvala para a ruína.



O sangue goza de boa saúde na nossa cultura. Faz parte da modernidade. Mas, ao mesmo tempo, deixou de ser aceite na cultura cristã: pelo menos nisto, sejamos «clean»! Esvaziando, com razão, o dolorismo, confessemos que, com esse pretexto, temos dificuldade em aceitar a Sexta-Feira Santa. O Domingo e a Eucaristia, porém, teriam algum sentido sem esse lugar alto da fé? As chagas do ressuscitado seriam apenas maquilhagem?



Que fazer do lado aberto de Cristo que os místicos contemplaram com tanto fervor? Não terá sofrido alguma alteração? Houve, efectivamente, uma alteração. O homem de hoje quereria que alguém se interessasse pelas suas feridas, que um coração amigo o escutasse e derramasse o bálsamo da sua atenção nas suas chagas ocultas de o fazem doente.



Catarina perscruta o mistério de Cristo que tomou sobre Si as nossas doenças para nos curar, graças às suas chagas (Is 53,4). Médico dos pecadores, assume as nossas enfermidades para voltar a dar-nos saúde:



«Fazendo-Te pequeno, fizeste o homem grande;

saturado de opróbrios, encheste-o de felicidade;

despojando-Te da vida, revestiste-o da graça;

coberto de vergonha, prestaste-lhe honra;

estendido sobre a cruz, abraçaste-o

e fizeste-lhe um abrigo no teu lado

para que aí encontre um refúgio

face aos inimigos.

Aí encontrou o banho no qual lavou,

da lepra do pecado, a face da sua alma» (O 12).



Esta linguagem inunda-nos de poesia, pois está repleta de amor. Em nada se assemelha a um modo de falar seco e tímido, mas suscita o enlevo. Situa-nos perante o Verbo feito carne. Esta linguagem da carne e do sangue será «forte demais»? Os apóstolos escandalizaram-se antes de nós (Jo 6,60)!



Enquanto os amantes dos banhos de sangue se instalam nas poltronas aveludadas de algum cinema ou nos seus próprios sofás, Catarina convida os seus discípulos a lavarem-se no sangue de Cristo. «Lava muitas vezes o rosto da tua alma com a confissão e a contrição do coração… encerra-te no deleitoso aposento nupcial, isto é, no lado de Jesus crucificado, onde poderás banhar-te no seu sangue, que derramou para lavar a lepra da tua alma» (C322).



Uma mulher sentia-se paralisada com a consciência da sua miséria. Catarina exorta-a a deixar de olhar para si mesma e de andar mergulhada em lamentações. O remédio? Tomar um bom banho! «Penso, com efeito, que é na recordação do seu sangue que se encontra o fogo da caridade ardente, a única capaz de expulsar a perturbação e a amargura…». Ó glorioso e precioso sangue. Tu quiseste ser para nós um banho e um unguento para as nossas chagas! É verdadeiramente um banho, minha filha, pois tal como num banho encontras calor (…), de igual modo, neste glorioso banho, encontras o calor da divina caridade».



O sangue derramado por nós não é de uma pessoa qualquer: «Fica ciente de que, se Ele fosse simplesmente homem e não Deus, o seu sangue não teria valido de nada». É pela união da divindade com a humanidade, que o sangue de Cristo vem a ser o rio da misericórdia infinita. «É em Cristo, pelo seu sangue, que temos a redenção, o perdão dos pecados, em virtude da riqueza da sua graça, que Ele abundantemente derramou sobre nós» (Ef 1,7).



Catarina vive mergulhada na caridade que levou Cristo a derramar o seu sangue «por muitos, para perdão dos pecados» (Mt 26,28). Todas as suas cartas começam por esta clave musical: «Escrevo-lhe no seu precioso sangue»! Escreve a todos com o amor de Cristo, mais do que com o amor humano que lhes tem. A nossa linguagem limita-se muitas vezes a exprimir os nossos sentimentos e paixões: «Ando preocupado contigo. Ou «Fiquei transtornado». Catarina escreve no sangue d’Ele, vê-nos no amor que Deus nos tem e não no dela. É outra de ver. É também a garantia do seu altruísmo e do seu discernimento.



11- Sangue e fogo



Há uma grande dose de euforia nesta linguagem, porque a euforia, como a loucura, faz parte do amor. «Ó louco de amor», chama ela a Deus! Com efeito, aquele que está eufórico não pensa em si mesmo, não vê senão aquele ou aquela que ama. Pouco lhe importa o preço ou o custo. «Inebrie-se do sangue de Jesus crucificado…. Não tome só um pouco, mas muito, se inebriar e se perder a si mesmo» (C 319). «Este sangue aquece, destrói toda a fraqueza, alegra a alma e o coração, pois foi derramado com o fogo da divina caridade. O ser humano que dele bebe, deixa de se ver a si mesmo, pois vê-se em Deus. Vê Deus em Deus, e o próximo em Deus» (C157).



Cristo «lutou com a morte» até sucumbir por nós: «Que o vosso coração não resista mais; que a cidadela da vossa alma se renda, porque o fogo foi posto em toda a parte». Foi essa a embriaguez que se apoderou dos apóstolos no dia de Pentecostes. O mundo julgava que estavam «cheios de mosto» (Act 2,13). Cheios do amor de Deus, deixam de ter receio de perder o amor próprio, os bens, as consolações, a saúde e a vida. Associar-se a Cristo no dom de si até à morte, é a maneira mais nobre de O seguir e de Lhe dar graças. «A mim, não podeis pagar todo o amor que vos testemunhei, mas dei-vos a mediação do próximo, a fim de fazerdes por ele tudo o que não podeis fazer por Mim». É nesta dinâmica que Catarina convida os chefes civis e eclesiásticos, os seus discípulos e todos os baptizados a amar a Deus e a servir o bem comum; a estar prontos para darem a vida, se necessário, «sangue por Sangue» (C37), em sinal de gratidão para com Aquele que nos amou primeiro.



* * *



Dá graças pelo teu baptismo: «Foi na sua morte que fomos baptizados» (Rm 6,3), a fim de que a nossa vida deixe de estar centrada em si mesma.



Banha-te na minha misericórdia de Cristo, no sacramento do perdão. Se a tibieza se apoderou de ti, recuperarás o calor.



Alimenta-te do seu corpo e do seu sangue, preço da tua liberdade, fonte de justiça, força dos mártires e penhor de vida eterna. «Deste sangue», receberás tudo. E a gratidão inebriar-te-á.







12- Por amor da Igreja



Catarina tem apenas seis anos de idade quando o Senhor lhe aparece, em Sena, sobre a Igreja de S. Domingos, revestido das insígnias do papa e rodeado de Pedro, Paulo e João. A influência desta visão foi sendo notória, progressivamente, nos traços específicos da sua vocação: a espiritualidade dominicana e, sobretudo, o amor da Igreja, simbolizada nos três apóstolos, particularmente a sua dedicação ao papa, em quem reconhece «o doce Cristo na terra», como lhe chama.



Numa carta a Nicolau d’Osimo, secretário e protonotário, primeiro de Gregório XI e depois de Urbano VI, revela o seu amor à Igreja, a fim de encorajar o seu correspondente a ter outro tanto: «Uma vez – diz, referindo-se a si mesma – esta serva de Deus desejava ardentemente dar o seu sangue, destruir e consumir tudo quanto nela houvesse, pela Esposa de Cristo, a santa Igreja» (C 85). Depois relata o modo como esse amor nasceu. Como sempre, parte da sua cela interior. Com a inteligência, procura compreender o próprio nana e a bondade de Deus para consigo. Vendo que Deus, por amor, lhe dera o ser, e depois lhe adicionara tantas graças e tantos dons, só via uma única maneira de lhe agradecer: amá-Lo, em retorno. Mas como manifestar esse amor, não podendo ser útil a Deus em coisa nenhuma? Finalmente, parece ter encontrado: procurar amar alguém que Deus ame e a quem possa manifestar amor: a pessoa humana. No amor e no serviço do homem, encontrou então o meio de provar a Deus quanto O amava. Assim pagaria Amor com amor.



Consagra-se, então, à salvação do próximo, disposta a dar a vida para a obter. Imita, pois, o Verbo feito carne que se entregou pela salvação de todos. Amar a Igreja, é amá-la como Cristo a amou e se entregou por ela. Catarina está pronta para, por sua vez, dar também a vida. Em primeiro lugar, morrendo a si mesma.



Encorajada pela graça de uma excepcional intimidade com o Senhor, vê, com enorme perspicácia, que muitas vocações não se alicerçam em Cristo e são minadas pelo espírito do mundo. Dói-se pela sua Igreja. Mas o Senhor ensina-lhe que ela própria tem uma «doença oculta» (D 108) de que não tem consciência: julgar a Igreja e os seus ministros com os seus próprios critérios. Catarina tem de aprender a apreciar os padres, não pelo que fazem – pois cometem pecados – mas pelo que são aos olhos de Cristo: «são os meus ungidos e os meus sóis»; espalham o calor do amor divino por meio dos sacramentos, seja qual for a indignidade do seu comportamento. A este nível, ela não pode julgá-los. Catarina dedica-se então a apresentá-los ao Senhor, «dirigindo-Lhe humildes e continuas súplicas» para que Ele os santifique. «A alma totalmente imersa em Deus, que toda a sua inteligência, amor e memória estão totalmente em Deus e só d’Ele se ocupam. Não se vê a si mesma nem vê os outros senão em Deus, e não pensa neles nem em si própria senão em Deus» (LM 1,10).



Ver a Igreja «em Deus» não impede Catarina de lhe dirigir censuras que ainda hoje nos desconcertam, pois os sentimentos de tristeza, como as censuras de Cristo ao seu povo, podem co-existir com uma ternura redobrada. A sua crítica não é destrutiva, como se proviesse do amor próprio e de uma falsa compreensão da Igreja, que levaria a uma outra forma de tirania. Catarina vê a situação pecaminosa da Igreja à luz do amor louco de Deus e de Cristo apaixonado pela nossa salvação.



Ama a Igreja a ponto de querer sofrer e morrer por ela, pela sua reforma e pela sua unidade. Oferece-se, com enorme frequência, pois a Igreja está literalmente anémica: «A esposa está muito pálida», espiritual e moralmente muito enfraquecida; é contestada em toda a parte e desde 1378 que está rasgada de alto a baixo entre dois papas: Urbano VI, em Roma e Clemente VII, em Avinhão. Catarina sofre com a falta de santidade, tanto sua como da hierarquia e dos fiéis. Esforça-se por levar a bom termo o combate pela unidade em torno de Urbano VI, que nem sempre é comedido e a quem aconselha que se rodeie de sábios e de contemplativos, em vez de políticos e cardeais intriguistas. Tanto ela como a sua família espiritual, fixar-se-ão em Roma, a pedido do papa. São cerca de trinta, e levam uma vida evangélica e apostólica. Todos os dias, apesar da sua fraca saúde e da fadiga causada pelo jejum e pelas vigílias, Catarina vai rezar junto do túmulo de S. Pedro. É a sua maneira de «remar» na barca do apóstolo. Na antiga basílica, o mosaico de Giotto, «La Navicella» (= A Nave), representa a Igreja no meio da tempestade. A 29 de Janeiro de 1380, Catarina tem uma visão. Sente a barca da Igreja sobre os seus ombros. Sob o seu peso, sucumbe. Os discípulos julgam-na morta. Nessa agonia interior, Catarina sente-se responsável pela situação dramática da Igreja. Comunga na paixão de Cristo.



A 29 de Abril de 1380, morre, rodeada dos seus discípulos, como sua mãe. Não cessou de recomendar a Deus cada um dos seus discípulos, de implorar o perdão dos seus pecados e de rezar pela Igreja: «Tende a certeza – disse – de que, se morro, a única causa da minha morte é o amor `Igreja, que me queima e me consome».



* * *



«Pai eterno, elevo para ti a minha voz,

para que tenhas misericórdia deste pobre mundo;

dá-lhe a luz de que precisa

para reconhecer o teu vigário (Urbano VI).

Tu o dotaste de um coração

verdadeiramente viril!

Pois bem, que a sua coragem seja agora

temperada com a tua humildade.

Toma a minha vida, faz dela o que quiseres,

Desde agora e para sempre.

Consagro-a à tua glória,

implorando-Te humildemente,

por virtude da tua paixão,

que purifiques a tua Esposa

das suas manchas» (O 28).



«Vela pelos meus filhos. Não os deixes orfaos.

Que a tua graça os visite.

Une-os uns aos outros

com o doce vinculo da caridade,

a fim de que morram no amor desta doce Esposa.

Peço-te, Pai eterno, que nenhum deles

me seja tirado das mãos.

Perdoa-nos todas as nossas iniquidades.

E a mim, particularmente, perdoa

a minha ignorância,

perdoa a negligência de que me tornei culpada

para com a santa Igreja.

Estou longe de ter feito por ela

tudo o que podia e devia.

Senhor, pequei. Tem piedade de mim» (029)!







13-Maria, portadora do fogo



Uma súplica ousada no «dia das graças»



Foi no dia 25 de Março de 1347, festa da Anunciação, que Catarina nasceu. A sua vida foi como que modelada pelo grande mistério da Anunciação do Senhor. Como a Maria, guardadas as devidas proporções, Deus atraiu-a com um de predilecção e achou-se «inclinado para ela». No seguimento de Maria, Catarina tornou-se porta-voz do Verbo, portadora do fogo, distribuidora de paz, terra fecunda e templo da Trindade. No dia 25 de Março de 1379, aqueles que lhe eram próximos recolheram a sua oração que é, de algum modo, o seu Magnificat pela obra da salvação. Foi um ano antes de entrar na plena intimidade com Deus, onde continua a interceder por nós.



Catarina implora Maria «ousadamente» apesar – ou por causa – da sua indignidade e da sua condição pecadora. O «hoje de Deus» é mais importante que o passado. «Ó Maria, não foi hoje que, no teu seio, terra fecunda, germinou para nós o Salvador?... Peço-t(o) ousadamente: é o dia das graças».



Em Maria, tudo está ordenado para receber: «Templo da Trindade, terra fecunda, vaso de humildade, tu és o quadro no qual está gravado…». E tudo está ordenado para dar: «Portadora do fogo, distribuidora de misericórdia que fizeste germinar o fruto divino, distribuidora de paz, carro de fogo que levaste o fogo escondido, e nos deste o pão da tua farinha». Estas expressões têm um sentido ministerial, activo, dinâmico.



14-Maria, templo da Trindade



Maria não é vista em si mesma. É comtemplada na sua relação com a Trindade e no conjunto da humanidade. Absolutamente na linha do Vaticano II. Maria não está no centro da oração. Ela não é o sol; recebe a luz do Sol. Está no seu lugar preferido: o de serva do Senhor. Catarina vê-a como uma antena parabólica, toda orientada para Deus e para os homens: o que importa, é o desígnio da Trindade… e a extraordinária dignidade do ser humano.



Esta oração conduz-nos directamente ao coração de Deus. Em Deus, «nada falta» e no entanto: «Trindade eterna, o amor obrigou-te a tirar o homem do teu seio».



Catarina extasia-se perante a transcendência do homem «tirado do seio da Trindade» e perante a condescendência de Deus que formou o corpo do Verbo no seio da sua criatura.



Um encanto recíproco



Maria tem, aos olhos de Deus, um encanto irresistível. Catarina não diz como S. Lucas: «És cheia de graça. O Senhor está contigo» – que corresponde à expressão da vocação e da missão. Ela diz: «O Senhor encantou-te… a tua humildade e a tua caridade atraíram a divindade e inclinaram-na para ti». Por isso, conclui: «Eu sei que a ti nada te é recusado». Neste jogo de atracção mútua, o Criador apaixonou-se pela criatura. Poderia dizer-se: «ficou preso quem pensava prender». Porque, ao atrair a si a sua criatura, – «atraiu-a com um amor único» – Deus foi atraído por ela. Ou melhor: «inclinado para ela». Decididamente, uma inclinação…



Uma intimidade reatada



A intimidade entre Deus e o homem, quebrada pelo pecado, é reatada em Maria. Nela, o Verbo encarnado recebeu «a farinha do seu pão», para que a divindade fosse unida e fundida com a humanidade, de maneira que «nada, nem a morte, nem as nossas ingratidões pudessem quebrar a união… Envergonha-te, pois, alma minha», por causa desse admirável parentesco, pois «nesse dia foi contraído com Deus aquele intimo parentesco que, daí em diante, ficou eternamente indissolúvel».



Maria acolheu o Verbo sem a menor dúvida de que todas as maravilhas eram possíveis a Deus e ficou estupefacta com tão grande bondade. Catarina maravilha-se, por sua vez, e admira em Maria «a confirmação» da admirável dignidade humana: «Tu és o livro, ó Maria… Hoje foi escrita em ti a Sabedoria do Pai eterno. Sim, torna-se visível a dignidade do homem pois, ao considerar-te, ó Maria, vejo que a mão do Espírito Santo inscreveu em ti a Trindade. Se considero o teu grande desígnio, Trindade eterna, compreendo que, na tua luz, viste a dignidade e a nobreza da raça humana e, assim como o amor Te obrigou a tirar o homem do teu seio, esse mesmo amor obrigou-Te ainda a resgatá-lo quando andava perdido».



15-Participação de Maria e…



delicadeza de Deus



«Maria, redentora, em certo sentido, do género humano». É certo que só Cristo é Redentor, mas a cooperação de Maria é visível nos momentos-chave da história da salvação: anunciação, Encarnação e Redenção dos homens por Cristo. «Cristo foi Redentor pela sua paixão; tu, pela dor do corpo e da alma».



S. Lucas declara que Deus nada fez sem o consentimento da Virgem Maria. Catarina extasia-se perante a delicadeza do Todo-Poderoso para com o mistério da nossa liberdade: «Ele, o Pai eterno, bateu à porta da tua vontade, ó Maria, e se não tivesses querido abrir, Deus não teria encarnado em ti». O consentimento, sobretudo nos momentos difíceis, é geralmente considerado como fraqueza. Efectivamente assim é, quando cede à pressão do mais forte. Mas que força exprime quando abre a porta com uma autêntica liberdade interior?



O consentimento da Virgem Maria exprime a cooperação da liberdade finita da criatura com a liberdade infinita do seu Criador: «É nestes sinais que se vê a dignidade do homem… Em ti, ó Maria, é visível hoje a sua força e a sua liberdade. Porque… o Verbo não desce ao teu seio sem que tenhas dado o teu livre consentimento: o anjo espera à porta da tua vontade que te apraza abrir àquele que deseja vir a ti». Esta é «a prova incontestável da força e da liberdade humana, que nada pode obrigar a praticar o bem – nem o mal – sem o seu consentimento.



O «Sim» da liberdade



Maria, passiva na obra da salvação? De maneira nenhuma: «O Verbo não teria entrado se tu não Lhe tivesses aberto, com a tua resposta». É Maria que tem a chave! Aquela que os ícones celebram como «Porta do céu», contempla-a Catarina como porta da humanidade, diante da qual Deus se detém. Deus bate à porta da sua serva! O «Sim» da Anunciação tem origem no «Sim» de Cristo à vontade do Pai. E a vontade do Pai é conceder-nos misericórdia.



«Recorro a ti, ó Maria, e peço-te pela doce Esposa do teu dulcíssimo Filho e pelo seu vigário na terra», «por aqueles que tu própria me fizeste amar com um amor de predilecção» e «por aqueles que me deste». «Maria, portadora do fogo… carro de fogo… Inflama os seus corações, faz que sejam brasas ardentes, abrasadas no fogo do teu amor e no amor do próximo».