ÍNDICE DOS CAPÍTULOS
PREÂMBULO
CAPÍTULO 1
Aqui começa o Espelho da Perfeição do estado de frade menor
PRIMEIRA PARTE
Da pobreza perfeita
CAPÍTULO 2
Como São Francisco declara a intenção e vontade que teve desde o princípio até o fim sobre a pobreza
CAPÍTULO 3
Como São Francisco respondeu a um ministro que queria ter livros com a sua permissão e como os ministros, à sua revelia, suprimiram o capítulo referente às proibições evangélicas
CAPÍTULO 4
De um noviço que desejava ter um saltério com a sua permissão
CAPÍTULO 5
Da observância da pobreza nos livros, nos leitos, nas casas e nos utensílios
CAPÍTULO 6
Como obrigou os irmãos a abandonarem uma casa que chamavam casa dos frades
CAPÍTULO 7
Como quis demolir uma casa que o povo de Assis havia construído junto a Santa Maria da Porciúncula
CAPÍTULO 8
Como São Francisco repreendeu seu vigário por ter feito construir uma pequena casa para os frades rezarem o oficio
CAPÍTULO 9
Como o santo não quis permanecer numa cela mais bem acabada ou que chamavam "sua cela"
CAPÍTULO 10
Como escolher, nas cidades, terreno para construir conventos e como construí-los segundo as intenções de São Francisco
CAPÍTULO 11
Como certos frades, sobretudo prelados e homens de ciência, se opuseram aos desejos de São Francisco no que se referia à construção de casas e conventos
CAPÍTULO 12
Como tinha por roubo receber e gastar esmolas além das necessidades
CAPÍTULO 13
Como Cristo lhe revelou que os frades não deviam possuir coisa alguma, em comum ou em particular
CAPÍTULO 14
Como amaldiçoava o dinheiro e castigou um frade por ter pegado numa moeda
CAPÍTULO 15
Como julgava necessário evitar a maciez e a variedade das túnicas e suportar com paciência as contrariedades
CAPÍTULO 16
Como se recusa a conceder a seu corpo algumas satisfações por julgar que os outros frades tinham mais necessidade delas do que ele
CAPÍTULO 17
Como se envergonhava de encontrar alguém mais pobre do que ele
CAPÍTULO 18
Como encoraja os primeiros irmãos a pedir esmolas e como os instrui neste ofício
CAPÍTULO 19
Como não queria que os frades se preocupassem em demasia com o dia de amanhã
CAPÍTULO 20
Como repreendeu, pela palavra e pelo exemplo, os frades que haviam preparado suntuosamente a mesa no dia de Natal, por causa da visita de um ministro
CAPÍTULO 21
Como o Senhor Bispo de Óstia comoveu-se até às lágrimas com a pobreza dos frades
CAPÍTULO 22
Como vários cavaleiros obtiveram o que lhes era necessário, pedindo esmola de porta em porta, a conselho de São Francisco
CAPÍTULO 23
Como foi pedir esmola antes de sentar-se à mesa do cardeal de Óstia
CAPÍTULO 24
De certo frade que não rezava, nem trabalhava, mas que comia demais
CAPÍTULO 25
Como foi com entusiasmo ao encontro de um pobre que passava com esmolas, louvando a Deus
CAPÍTULO 26
Como o Senhor lhe revelou que seus religiosos deviam chamar-se "frades menores" e anunciar por toda parte paz e salvação
SEGUNDA PARTE
Da caridade, da compaixão e da afabilidade para com o próximo
CAPÍTULO 27
Como condescendeu com um irmão que morria de fome, comeu com ele e exortou os frades a serem discretos e prudentes na penitência
CAPÍTULO 28
Como condescendeu com um irmão enfermo e comeu com ele um cacho de uvas
CAPÍTULO 29
Como se despojou de suas vestes a si e a seu companheiro, para vestir uma pobre mulher
CAPÍTULO 30
Como tinha por roubo o não ceder seu manto a quem tivesse mais necessidade do que ele
CAPÍTULO 31
Como o santo deu, sob condição, o seu manto novo a um pobre
CAPÍTULO 32
Como, em virtude das esmolas de São Francisco, um pobre perdoou as Injúrias de seu amo e deixou de odiá-lo
CAPÍTULO 33
Como enviou sua capa a uma velha que, como ele, sofria dos olhos
CAPÍTULO 34
Como deu seu hábito aos frades que lhe pediam por amor de Deus
CAPÍTULO 35
Como deu, às escondidas, um pedaço de pano a um pobre
CAPÍTULO 36
Como ordenou a Frei Egídio, antes que este entrasse na Ordem, que desse sua capa a um pobre
CAPÍTULO 37
Da penitência infligida a um frade por haver este feito mau juízo de um pobre
CAPÍTULO 38
Como fez dar um Novo Testamento a uma pobre mulher, mãe de dois frades
TERCEIRA PARTE
Da perfeição da santa humildade e da obediência de São Francisco e de seus frades
CAPÍTULO 39
Como renunciou ao seu cargo à frente da Ordem e nomeou Frei Pedro Cattani ministro geral
CAPÍTULO 40
Como renunciou a seus companheiros e não quis ter nenhum companheiro particular
CAPÍTULO 41
Como renunciou a seu cargo à frente da Ordem por causa de alguns maus superiores
CAPÍTULO 42
Como pede humildemente carne para os enfermos e lhes ensina humildade e paciência
CAPÍTULO 43
Da humilde resposta de São Domingos e São Francisco quando lhes perguntaram, a ambos, se eles desejavam que seus filhos ocupassem prelaturas na Igreja
CAPÍTULO 44
Como quis que seus frades servissem aos leprosos a fim de consolidar a humildade
CAPÍTULO 45
Como quis que a glória e a honra de suas palavras e boas ações fossem atribuídas unicamente a Deus
CAPÍTULO 46
Como quis, até sua morte, ter um guardião escolhido entre os seus companheiros e viver sob sua autoridade
CAPÍTULO 47
Como ensinava a perfeita maneira de obedecer
CAPÍTULO 48
Como comparou a perfeita obediência a um cadáver
CAPÍTULO 49
Como considerava temerário dar ordens com precipitação em nome da obediência, como também não obedecer a estas mesmas prescrições
CAPÍTULO 50
Como respondeu alguns frades que queriam persuadi-lo a solicitar privilégio que lhes permitisse pregar livremente
CAPÍTULO 51
Como reconciliava os frades daquele tempo quando ocorriam entre eles motivos de mágoa ou ressentimentos
CAPÍTULO 52
Como Cristo se lamentou a Frei Leão, companheiro de São Francisco, da ingratidão e do orgulho dos frades
CAPÍTULO 53
Como o Seráfico Pai deu uma humilde mas sábia resposta a um doutor da Ordem dos Pregadores, o qual o havia interpelado sobre uma palavra da Sagrada Escritura
CAPÍTULO 54
Como deviam viver com humildade e em paz com os clérigos
CAPÍTULO 55
Como adquiriu humildemente do abade de São Bento de Assis a Igreja de Santa Maria dos Anjos, quis que seus frades a habitassem sempre e vivessem com humildade
CAPÍTULO 56
Da humilde reverência que testemunhou às igrejas, varrendo-as e limpando-as
CAPÍTULO 57
Do camponês que o encontrou varrendo, com humildade, uma igreja e que, tendo-se convertido, entrou na Ordem e se tornou um santo religioso
CAPÍTULO 58
Como puniu a si mesmo comendo na escudela de um leproso a quem havia ofendido
CAPÍTULO 59
Como afugentou o demônio pela humildade de suas palavras
CAPÍTULO 60
Da visão que teve Frei Pacifico, pela qual viu e ouviu que o trono de Lúcifer estava reservado ao humilde Francisco
CAPÍTULO 61
Como fez que o apresentassem despido com uma corda no pescoço diante do povo
CAPÍTULO 62
Como queria que todos soubessem das mitigações e regalos que seu corpo recebia
CAPÍTULO 63
Como confessou imediatamente a vanglória que experimentou ao dar uma esmola
CAPÍTULO 64
Como descreveu o estado de perfeita humildade partindo de si mesmo
CAPÍTULO 65
Como quis humildemente partir para terras distantes, como enviou para 'á outros frades e como os ensinou a irem pelo mundo com devoção e humildade
CAPÍTULO 66
Como ensinou aos frades a ganharem pela humildade e caridade as almas de alguns ladrões
CAPÍTULO 67
Como, atormentado pelo demônio, conheceu que agradava mais a Deus permanecendo em lugares pobres e humildes que nos palácios
CAPÍTULO 68
Como repreendeu os frades que queriam seguir o caminho de sua sabedoria e de sua ciência e lhes predisse a reforma da Ordem
CAPÍTULO 69
Come previu e predisse que a ciência se tornaria ocasião de ruína para a Ordem e proibiu a um irmão se dedicar ao estudo da pregação
CAPÍTULO 70
Como serão abençoados os que entrarem na Ordem nos dias de tribulações e os que tiverem sofrido maiores provações que seus precedentes
CAPÍTULO 71
Como respondeu a seu companheiro que lhe perguntou por que não reprimia os excessos e abusos que ocorriam na Ordem em sua época
CAPÍTULO 72
Como as almas que parecem convertidas pela ciência e pregação de certos frades, e foram na verdade pelas preces dos irmãos humildes e simples
CAPÍTULO 73
Como desejava e ensinava que os superiores e pregadores deviam exercitar-se nas orações e na prática da humildade
CAPÍTULO 74
Como, humilhando-se, quis ensinar aos frades quando ele era servo de Deus e quando não
CAPÍTULO 75
Como Francisco expressa a vontade de seus frades se ocuparem com trabalho manual de vez em quando
QUARTA PARTE
Do zelo de Francisco pela observância da Regra e pelo bem da Ordem
CAPÍTULO 76
Como louvava a observância da Regra e desejava que os frades a conhecessem e morressem professando-a
CAPÍTULO 77
Como um santo Irmão leigo foi martirizado com a Regra na mão
CAPÍTULO 78
Como desejava que a Ordem permanecesse sempre sob a proteção e a disciplina da Igreja
CAPÍTULO 79
Dos quatro privilégios que o Senhor concedeu à Ordem, os quais foram revelados a São Francisco
CAPÍTULO 80
Das qualidades que julgava necessárias ao ministro geral e a seus companheiros
CAPÍTULO 81
Como o Senhor lhe falou, por estar ele, Francisco, multo aflito por causa dos frades que se afastavam da perfeição evangélica
CAPÍTULO 82
Do zelo particular que tinha por Santa Maria da Porciúncula e das prescrições que fez contra as palavras ociosas
CAPÍTULO 83
Como exortou os frades a jamais abandonarem Santa Maria dos Anjos
CAPÍTULO 84
Dos favores que o Senhor concedeu a Santa Maria dos Anjos
QUINTA PARTE
Do zelo testemunhado por São Francisco pela perfeição dos frades
CAPÍTULO 85
Como descreveu o frade perfeito
CAPÍTULO 86
Como descreveu os olhares impudicos a fim de exortar os frades à caridade
CAPÍTULO 87
Das três máximas que legou aos frades para que perseverassem na perfeição
CAPÍTULO 88
Como ao aproximar-se a morte demonstrou seu amor aos frades dando-lhes um bocado de pão, a exemplo de Cristo
CAPÍTULO 89
Como temia que os frades se aborrecessem por causa de seus achaques e enfermidades
CAPÍTULO 90
Como exortou as Irmãs de Santa Clara
SEXTA PARTE
De seu ardente e contínuo amor à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo
CAPÍTULO 91
Como negligenciava as suas próprias enfermidades por amor à paixão de Cristo
CAPÍTULO 92
Como o encontraram várias vezes lamentando com grandes gemidos a paixão de Cristo
CAPÍTULO 93
Como suas recreações se transformavam, às vezes, em lágrimas de compaixão por Cristo
SÉTIMA PARTE
De seu zelo pela oração e ofício divino e como preservava a alegria
do espírito nele e em seus companheiros
CAPÍTULO 94
Da oração e do ofício divino
CAPÍTULO 95
Como estimava a alegria de espírito - interior e exterior - nele e nos outros
CAPÍTULO 96
Como repreendeu um de seus frades em cujo rosto transparecia a tristeza
CAPÍTULO 97
Como ensinava aos frades a manterem o corpo ocupado para que os benefícios da oração não fossem desperdiçados
OITAVA PARTE
Algumas tentações com que o Senhor quis prová-lo
CAPÍTULO 98
Como o demônio entrou num travesseiro que o santo usava sob a cabeça
CAPÍTULO 99
Como foi atormentado dois anos por forte tentação
CAPÍTULO 100
Da tentação que lhe foi infligida pelos ratos e de como o Senhor o consolou e o assegurou de que tomaria parte no seu reino
NONA PARTE
Do espírito de profecia
CAPÍTULO 101
Como predisse que a paz seria estabelecida entre o bispo e o prefeito de Assis, diante dos quais mandou cantar o Cântico das Criaturas, que havia composto para seus companheiros
CAPÍTULO 102
Como predisse a sorte de um frade que não queria se confessar sob o pretexto de guardar silêncio
CAPÍTULO 103
De certo jovem que chorava na presença de São Francisco para ser recebido na Ordem
CAPÍTULO 104
Da vinha despojada de suas uvas por causa de são Francisco
CAPÍTULO 105
De certos cavaleiros de Perusa que tentavam impedi-lo de pregar
CAPÍTULO 106
Como conheceu, por intuição as tentações e tribulações secretas que afligiam um religioso
CAPÍTULO 107
De suas predições a Frei Bernardo e como se cumpriram totalmente
CAPÍTULO 108
Como, próximo à sua morte, fez saber a Santa Clara que ela o veria; e como isto aconteceu
CAPÍTULO 109
Como predisse que seu corpo receberia honrarias após a sua morte
DÉCIMA PARTE
Como a divina Providência proveu às suas necessidades materiais
CAPÍTULO 110
Como o Senhor revigorou os frades que tomaram uma frugal refeição com o médico de São Francisco
CAPÍTULO 111
Como desejou comer certa espécie de peixe durante sua enfermidade
CAPÍTULO 112
De certo prato e de certo alimento que desejou antes de morrer
DÉCIMA-PRIMEIRA PARTE
De seu amor pelas criaturas, e do das criaturas para com ele
CAPÍTULO 113
Do amor todo especial que tinha pelos pássaros chamados cotovias de capuz por serem a imagem do bom religioso
CAPÍTULO 114
Como pretendeu persuadir o imperador a editar um decreto que no dia de Natal os homens alimentassem generosamente as aves, o boi, o asno e os pobres
CAPÍTULO 115
De seu amor pelo fogo quando com este lhe fizeram uma cauterização
CAPÍTULO 116
Como não quis apagar o fogo que queimava suas calças nem permitiu que o apagassem
CAPÍTULO 117
Como não quis jamais vestir uma capa por não ter permitido que o fogo a consumisse
CAPÍTULO 118
Como devotava particular amor à água, às pedras, ao bosque e às flores
CAPÍTULO 119
Como exaltava o sol e o fogo acima de todas as criaturas
CAPÍTULO 120
Eis o "Cântico das Criaturas" que o Seráfico Pai compôs quando o Senhor lhe assegurou que entraria no seu reino:
DÉCIMA-SEGUNDA PARTE
De sua morte e da alegria que experimentou quando conheceu que a morte estava próxima
CAPÍTULO 121
Da resposta que deu a Frei Elias por lhe ter este censurado a multa alegria que manifestava
CAPÍTULO 122
Como induziu o médico a lhe revelar quantos dias de vida lhe restavam
CAPÍTULO 123
Como, tão logo soube da Iminência de sua morte, pediu que lhe cantassem os "Louvores"
CAPÍTULO 124
Como abençoou a cidade de Assis, quando era transportado a Santa Maria para morrer
O ESPELHO DA PERFEIÇÃO
PREÂMBULO
CAPÍTULO 1
Aqui começa o Espelho da Perfeição do estado de frade menor
Depois que se perdeu a segunda Regra escrita por São Francisco, ele subiu a um monte em companhia de Frei Leio de Assis e Frei Bonizo de Bolonha para redigir outra, que fez escrever na forma que Cristo lhe inspirou. Mas, cientes do fato, vários ministros vieram ter com Frei Elias, então vigário do santo, e lhe disseram: "Soubemos que este Frei Francisco está compondo uma nova Regra e tememos que ele a faça tio rígida que não possamos observá-la. Queremos, portanto, que vás até ele e lhe digas, de nossa parte, que não queremos sujeitar-nos a esta Regra. Que ele a escreva para si mesmo, e não para nós'.
Frei Elias lhes' respondeu que não se atreveria a ir sozinho, pois temia as recriminações de São Francisco. Como os ministros insistissem, declarou-lhes que só iria se eles o acompanhassem. Resolveram então ir todos juntos. Ao chegarem perto do lugar em que se encontrava o santo, Frei Elias chamou-o. São Francisco respondeu, mas, ao ver os ministros, indagou-lhe: "Que querem estes frades?" Ao que Frei Elias replicou: "Estes São ministros que souberam estares tu redigindo uma nova Regra e temem que a faças demasiado rigorosa; dizem e protestam que não querem ficar sujeitos a ela, que a escrevas para ti e não para eles”. Ouvindo isto, o santo voltou o rosto para o céu e falou a Cristo assim: "Senhor, eu não te disse que eles não acreditariam em mim?”
No mesmo instante ouviram todos a voz de Cristo no ar, que respondia assim: "Francisco, não há nada na Regra que seja teu, tudo que ela contém me pertence; quero, portanto, que esta Regra seja observada letra por letra, sem comentários, sem comentários, sem comentários". E acrescentou: "Eu sei até onde vai a fraqueza humana e até que ponto quero ajudar-vos. Deixem pois a Ordem os que não querem observá-la". Voltando-se para eles o santo exclamou: "Ouvistes, ouvistes, ou quereis que o faça repetir outra vez?” E os ministros, recriminando-se, se retiraram confusos e amedrontados.
PRIMEIRA PARTE
Da pobreza perfeita
CAPÍTULO 2
Como São Francisco declara a intenção e vontade
que teve desde o princípio até o fim sobre a pobreza
Frei Ricério da Marca, nobre por nascimento e mais nobre ainda por sua santidade, a quem São Francisco dedicava particular afeição, visitou um dia o santo no palácio do bispo de Assis e, enquanto discorriam acerca do estado religioso e da observância da Regra, interpelou-o, particularmente, sobre este ponto: "Dize-me, pai, que intenções tinhas quando começaste a receber companheiros, que intenções tens agora e se pensas conservá-las até a morte. Desejaria certificar-me de tua intenção e vontade, primeira e última. Podemos nós, clérigos, que temos tantos livros, conservá-los, embora reconheçamos pertencerem eles à Ordem?" Ao que o santo respondeu: "Eis, irmão, minha primeira Intenção e última vontade: se os frades tivessem acreditado em mim, nenhum teria conservado para si coisa alguma, além do hábito na forma concedida pela Regra com o cordão e calções”.
Todavia se algum frade objetar: "Por que o Seráfico Pai não quis obrigar os frades desde o principio à estrita observância da Regra e à guarda da pobreza - como declarou Frei Ricério nem ordenou expressamente que assim o fizessem?”
Nós que vivemos com ele lhe diremos o que ouvimos de sua própria boca, porque o santo disse estas coisas a muitos frades e fez inserir na Regra muitas prescrições, que em suas preces e meditações havia implorado do Senhor no interesse da Ordem, afirmando serem todas elas conformes à vontade de Deus. Mas, ao apresentá-las aos frades, estes julgaram-nas demasiado rígidas e insuportáveis. Ignorando o que havia de suceder depois de sua morte e temeroso do escândalo que poderia advir, não só para si, como também para os demais irmãos, não quis questionar com eles e não poucas vezes condescendia contra sua vontade, e se desculpava a si mesmo na presença do Senhor. Por isso, para que as palavras que o Senhor lhe pusera nos lábios não ficassem estéreis, desejava que se cumprisse em si mesmo a vontade divina, para alcançar deste modo a recompensa prometida. E seu espírito alcançou finalmente paz e consolação.
CAPÍTULO 3
Como São Francisco respondeu a um ministro que queria ter livros com a sua permissão
e como os ministros, à sua revelia, suprimiram o capítulo referente
às proibições evangélicas
Um dia, quando o santo voltou do Oriente, um ministro que discorria com ele acerca da pobreza quis conhecer sua opinião e vontade sobre este assunto e, principalmente, sobre um capítulo contido na Regra, referente às proibições do santo Evangelho: "Não leveis nada pelo caminho... etc.". São Francisco respondeulhe: "Eu entendo assim: os frades não devem conservar nada para si, senão o hábito com uma corda e os calções, conforme estatui a Regra, e, se isto for absolutamente necessário, poderão usar calçados". Ouvindo isto, o ministro perguntou-lhe: "Que farei eu que tenho tantos livros, que valem mais de cinqüenta libras?" Falava assim, porque desejava conservá-los com a sua permissão, pois sentia remorsos por possuir tantos livros, sabendo que o santo interpretava estritamente o capítulo concernente à pobreza. São Francisco respondeu-lhe: "Não quero, nem devo, nem posso ir contra minha consciência e as prescrições do santo Evangelho, que nós prometemos observar".
Ouvindo estas palavras, o ministro encheu-se de tristeza. Vendo o santo a sua aflição, lhe disse com todo o fervor de sua alma, dirigindo-se por meio dele a todos os irmãos: "Quereis pesar aos olhos dos homens por frades menores e ser chamados observantes do santo Evangelho, mas desejais ter, por vossas obras, os bolsos cheios".
Todavia, logo que os ministros souberam que a Regra os obrigava a observarem o santo Evangelho, fizeram suprimir o capítulo que prescrevia: "Não leveis nada pelo caminho ... ", acreditando com isto não serem obrigados a viver segundo a perfeição evangélica. Quando o santo, por revelação divina, tomou conhecimento do fato, faiou assim na presença de alguns frades: "Os irmãos ministros pensam enganar ao Senhor e a mim. Embora saibam os irmãos estarem obrigados a viver segundo a perfeição evangélica, quero que se escreva na Regra, desde o principio até o fim, que os frades são obrigados a observar rigorosamente o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. E para que não possam jamais escusar-se desta observância, eu lhes anunciei e anuncio agora o que o Senhor pós nos meus lábios para nossa salvação, minha e deles. Quero, portanto, observar estas prescrições, por atos, na presença de Deus e, com sua ajuda, observá-las-ei perpetuamente".
E com efeito observou ao pé da letra o santo Evangelho, desde o dia em que começou a receber irmãos até o dia de sua morte.
CAPÍTULO 4
De um noviço que desejava ter um saltério com a sua permissão
Em outra ocasião certo noviço que sabia ler o saltério, aliás muito mais, obteve do ministro geral permissão para ter um exemplar. Todavia, sabendo que São Francisco não queria que seus frades tivessem a paixão da ciência e dos livros, não se contentou com esta licença e quis obter também a do Seráfico Pai. Ora, passando o santo pelo lugar onde se encontrava o noviço, este lhe disse: "Pai, seria para mim uma grande consolação possuir um saltério, mas, embora o ministro geral me tenha permitido, não desejaria conservá-lo sem o teu consentimento".
São Francisco lhe respondeu: "O Imperador Carlos Magno, Rolando e Olivier, todos paladinos e homens valorosos, que foram poderosos nos combates, perseguiram os infiéis até a morte, não poupando suores nem fadigas, alcançando assim memoráveis vitórias; do mesmo modo os nossos santos mártires deram a vida pela fé em Cristo. Atualmente há muitos que pretendem alcançar honras e louvores somente por terem narrado os feitos destes heróis. Também entre nós, há muitos que desejariam obter honras e louvor, pregando e narrando o que realizaram estes santos". Com estas palavras o santo queria dizer: "Não nos preocupemos em demasia com livros e ciência, senão com a prática da virtude, porque a ciência envaidece, mas a caridade edifica". Alguns dias mais tarde, como São Francisco se encontrasse junto ao fogo, o noviço veio lhe falar do saltério. O santo então replicou-lhe: "Quando tiveres um saltério, desejarás vivamente um breviário, quando tiveres um breviário, sentar-te-ás numa cadeira como um grande prelado e dirás a teu irmão: 'Traze o meu breviário
Ao dizer isto, com grande fervor de espirito, apanhou cinza com as mãos e a aspergiu sobre a cabeça, traçando em torno dela um circulo, como se a lavasse, e dizia ao mesmo tempo: "Eu quero um breviário, eu quero um breviário". Repetiu estas palavras várias vezes, enquanto passava as mãos em volta da cabeça, para espanto e confusão do jovem religioso. Em seguida o santo lhe disse: "Também eu, irmão, experimentei a tentação de ter livros, mas, para saber qual a vontade de Deus sobre este ponto, tomei um livro, os santos Evangelhos, e supliquei ao Senhor revelasse-me sua vontade na primeira página que abrisse. Acabada a prece, a primeira página que se me deparou ante os olhos continha esta parábola do santo Evangelho: 'A vós é dado conhecer os mistérios do reino de Deus, aos outros não é dado conhecê-los, senão por meio de parábolas"'. E acrescentou: "São tantos- os que desejam adquirir a ciência que se pode considerar bem-aventurados os que se fazem ignorantes por amor do Senhor Deus".
Meses depois, como o santo estivesse em Santa Maria da Porciúncula, em caminho, próximo à ultima cela da casa, acercou-se dele o mesmo noviço para falar-lhe do saltério. Desta feita São Francisco respondeu-lhe: "Vai e faze como teu ministro te ordenar". Ouvida esta resposta, o frade retomou o caminho e regressou ao lugar donde viera. Ficando só, o santo pôs-se a refletir sobre o que havia dito ao jovem frade e imediatamente chamou-o de volta, dizendo: "Espera-me, espera-me". Ao alcançá-lo lhe disse: "Vem comigo, irmão, e mostra-me o lugar onde, a respeito do saltério, te disse que fizesses como te dissesse teu ministro". Quando chegaram ao dito lugar, São Francisco ajoelhou-se aos pés do frade dizendo: "Confesso minha culpa, confesso minha culpa, porque aquele que quer ser frade menor não deve possuir nada além da túnica, conforme estabelece a Regra, a corda ou cordão, os calções e, se isto for absolutamente necessário, calçado". A partir de então, toda vez que algum frade lhe vinha pedir conselho sobre este assunto, respondia-lhe da mesma maneira. Por esta razão repetia sempre: "Só è sábio o homem que executa bom trabalho, só é bom orador e religioso quem se exercita no seu trabalho, pois pelos frutos se conhece a árvore".
CAPÍTULO 5
Da observância da pobreza nos livros, nos leitos,
nas casas e nos utensílios
O bem-aventurado pai ensinava a seus frades a buscarem nos livros não o valor material, mas o testemunho do Senhor, não a beleza, mas o proveito espiritual. Por essa razão, queria que eles tivessem apenas alguns livros, em comum, e sempre à disposição dos que tivessem necessidade deles. Ademais reinava tal pobreza nas enxergas e nas camas, que trapos estendidos sobre palhas eram tidos como leitos luxuosos e macios. Além disso ensinava a seus frades a construírem casas toscas e pobres, cabanas de madeira, nunca de pedras, de humílimo aspecto. Não só detestava o luxo das casas como também a excessiva abundância e requinte nos utensílios. Desejava que nada nas mesas e nas louças fizesse lembrar as pompas do mundo, mas que tudo proclamasse a pobreza de seus moradores, ressaltando-lhes a condição de peregrinos e exilados.
CAPÍTULO 6
Como obrigou os irmãos a abandonarem uma casa
que chamavam casa dos frades
Certa vez, ao passar pela cidade de Bolonha, soube que havia sido construída uma casa para os frades. Logo que ouviu dizer que ela era chamada "Casa dos Frades", deu meia volta e saiu da cidade, ordenando aos frades energicamente que a abandonassem, incontinente, e de modo algum tornassem a habitá-la. Todos os frades saíram, mesmo os doentes, que a abandonaram em companhia dos demais, até que o Senhor Hugolino, bispo de Óstia e legado do Papa na Lombardia, declarasse publicamente que a casa lhe pertencia.
E certo frade enfermo, que se viu obrigado a abandonar aquela casa, testemunhou estes fatos e os consignou por escrito.
CAPÍTULO 7
Como quis demolir uma casa que o povo de Assis havia construído
junto a Santa Maria da Porciúncula
Como se aproximasse a época em que se devia realizar o capítulo geral que todo ano se celebrava em Santa Maria da Porciúncula, os habitantes de Assis, considerando que os frades cada ano se tornavam mais numerosos, que ali se reunam todos os anos e que não tinham para se abrigarem senão um casebre com paredes de ramagens revestidas de barro e cobertas de palha, deliberaram entre si, com devoção e piedade, construir uma casa grande e espaçosa de pedra e cal, aproveitando para tanto a ausência do santo. Ao regressar de certa província para assistir à celebração do capítulo não pôde o Seráfico Pai conter a sua admiração e surpresa por ver que haviam construído uma casa grande. Temeroso de que os frades com este exemplo pretendessem construir casas excessivamente grandes nos lugares onde habitavam ou haveriam de habitar no futuro, e, ademais, como desejasse que a Porciúncula servisse de exemplo e modelo para todas as casas da Ordem, antes de terminar o capítulo, subiu ao telhado e ordenou aos frades que o acompanhassem. Depois, todos juntos, começaram a jogar por terra as telhas que a cobriam com o propósito de demoli-la até aos alicerces. Mas os cavaleiros de Assis que montavam guarda àquele lugar por causa da grande multidão de gente, vinda de toda a parte para ver ó capítulo dos frades, vendo que o santo com os seus irmãos pretendiam demolir a casa, foram ter com ele e lhe disseram: "Frade, esta casa pertence à comuna de Assis e nós estamos aqui para representá-la; impedir-te-emos, portanto, de demoli-la". Ouvindo isto São Francisco respondeu-lhes: "Bem, se esta casa vos pertence, não tocarei nela". E imediatamente tanto ele como seus frades desceram do telhado.
Por isso o povo de Assis decidiu que no futuro os prefeitos deveriam fazer naquela casa todos os consertos e reparos necessários. Durante muito tempo, esta determinação foi executada anualmente.
CAPÍTULO 8
Como São Francisco repreendeu seu vigário por ter feito construir
uma pequena casa para os frades rezarem o oficio
De outra feita, o vigário de São Francisco ordenou que se construísse na Porciúncula uma pequena casa, onde os frades pudessem repousar e rezar o oficio, pois grande multidão de frades acorria àquele convento, que, por isso, não dispunha de cômodos próprios para tal fim. Com efeito, todos os frades acorriam a Santa Maria da Porciúncula, porque somente lá se realizavam as novas admissões à Ordem.
Quando a casa estava quase pronta, o santo tornou a passar pela Porciúncula. De sua cela ouviu o barulho que faziam os trabalhadores; chamou seu companheiro e lhe perguntou o que faziam os frades. O companheiro referiu-lhe o que acontecia. Imediatamente, fez chamar seu vigário e lhe disse: "Irmão, este lugar serve de exemplo e modelo para toda a Ordem; ademais desejo que os frades residentes neste convento suportem privações e incômodos por amor de Deus, a fim de que os frades que passarem por aqui levem para os seus conventos o bom exemplo da pobreza. Se os que residem aqui se permitem tais comodidades, os outros seguir-lhes-ão o exemplo de construir casas, dizendo: "Em Santa Maria da Porciúncula, que é o primeiro convento da Ordem, se constróem casas grandes e espaçosas, portanto, podemos também construir, nos lugares onde fixarmos residência, edifícios semelhantes".
CAPÍTULO 9
Como o santo não quis permanecer numa cela mais bem
acabada ou que chamavam "sua cela"
Certo frade, homem de grande espiritualidade e amigo intimo do santo, fez construir na ermida onde morava uma cela um pouco mais afastada, onde São Francisco pudesse repousar e fazer as suas orações, quando fosse àquele lugar.
Quando o santo chegou ao dito lugar, o frade conduziu-o à cela. O santo lhe disse: "Esta cela é demasiado bela". E isto somente porque o piso era feito de madeira trabalhada a serra e machado. "Se queres que eu permaneça aqui, faze revesti-la por dentro e por fora de palha e de ramos de árvores". Pois quanto mais pobres fossem as casas e as celas, tanto maior era o seu prazer em habitá-las. Tendo o frade feito como o santo lhe. ordenara, este viveu ali por alguns dias.
Mas aconteceu que, um dia, enquanto São Francisco estava ausente da cela, outro frade foi vê-la e ao afastar-se encontrou-se com o santo que ao vê-lo perguntou-lhe: "De onde vens, irmão?" "Venho de tua cela", respondeu o frade. Ao ouvir isto, o santo replicou: "Porque disseste que esta cela é minha, doravante outro - e não eu - hospedar-se-á nela".
Nós que vivemos muito tempo com ele, ouvimo-lo repetir com freqüência estas palavras do santo Evangelho: "As raposas têm seus covis, as aves do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde recostar a cabeça". Dizia também: "Quando o Senhor se retirou para o deserto onde jejuou e orou quarenta dias e quarenta noites, não mandou construir para si nem cela nem casa, mas viveu nas grutas formadas pelos rochedos dos montes". Portanto, a exemplo de Cristo, não quis jamais possuir casa ou cela que se dissesse ser sua, nem tampouco consentiu que lha construíssem.
E se acontecia alguma vez dizer a seus frades: "Ide e preparai aquela cela", não queria depois viver nela, recordando as palavras do Evangelho: "Não vos preocupeis..." Por isso, pouco antes de sua morte, mandou escrever em seu Testamento que todas as celas e casas dos frades fossem feitas de madeira e barro, para melhor salvaguardar a santa pobreza e a humildade.
CAPÍTULO 10
Como escolher, nas cidades, terreno para construir conventos
e como construí-los segundo as intenções de São Francisco
Certa vez, quando o santo se encontrava em Sena, por causa da doença de seus olhos, o Senhor Boaventura, doador do terreno onde havia sido construído um convento, perguntou-lhe: "Que achas tu, pai, deste local?" Ao que o santo respondeu: "Queres que te diga como devem ser construídas as casas dos frades?" E Boaventura respondeu-lhe: "Quero, pai". São Francisco lhe disse então: "Quando os frades chegarem a uma cidade onde eles não tiverem convento e encontrarem alguém disposto a lhes doar o terreno para edificá-lo, ter horta e tudo o que lhes for necessário, deverão em primeiro lugar verificar qual a área necessária, tendo sempre em conta a santa pobreza e o bom exemplo, que por toda parte somos obrigados a dar".
Dizia isto, porque não queria que seus frades se afastassem jamais da pobreza, nem nas casas, nem nas igrejas, nem nas outras coisas de que se serviam; que não possuíssem nenhum lugar por direito de propriedade, mas que ai permanecessem sempre, e em tudo, como "peregrinos e estrangeiros". Por este motivo desejava que nos conventos não houvesse frades em número excessivo, pois lhe parecia difícil a perfeita observância da pobreza onde. houvesse grande multidão de religiosos, e esta foi a sua vontade, desde a conversão até a morte: que a pobreza fosse observada rigorosamente e em tudo.
"Depois que tiverem escolhido o terreno necessário para a edificação do convento e de suas dependências, deverão apresentar-se ao bispo da cidade e dizer-lhe: 'Senhor, tal pessoa deseja nos doar, por amor de Deus e para a salvação de sua alma, um terreno onde possamos edificar um convento. Recorremos primeiramente. a vós que sois pai e mestre de todas as almas que vos foram confiadas e de todos os frades que vierem a morar neste convento. Desejamos, portanto, edificar aqui um convento com a bênção de Deus e a vossa".
Agia assim porque no seu entender os frades poderiam trabalhar com mais eficácia para a salvação das almas, vivendo em paz com o clero, granjeando sua amizade e a do povo, do que se provocassem escândalo, embora conquistando a confiança do povo. E acrescentou: "O Senhor nos chamou para sermos os sustentáculos da fé e os coadjutores dos prelados e clérigos da santa Igreja. Por isso estamos obrigados a sempre amá-los, honrá-los e respeitá-los. Como indica o nome, os frades são chamados 'menores' porque devem ser por seus exemplos e ações os homens mais humildes do mundo. Desde o inicio de minha conversão o Senhor pôs estas palavras nos lábios do bispo de Assis para que ele sabiamente me aconselhasse e me confirmasse no serviço de Cristo. Por esta razão e por inúmeras e excelentes qualidades que vejo nos prelados, quero amá-los e honrá-los e considero como meus senhores não só os prelados, mas também os padres, por mais pobres que eles sejam.
Recebida a bênção, voltem e mandem cavar um grande fosso em torno do terreno que tiverem recebido para a construção do convento e cerquem-no com uma boa cerca, em vez de muro, como sinal de santa pobreza e humildade. Construam a seguir pequenas casas de barro e madeira, com algumas celas onde os frades possam rezar e trabalhar honestamente, para evitar a ociosidade. Até mesmo as igrejas deverão ser pequenas. Com efeito, não deverão construir grandes Igrejas sob pretexto de pregar ao povo ou por qualquer outro motivo, pois será mais humilde e de mais eficaz exemplo que vão pregar em outras igrejas. Assim, se por acaso os prelados, os clérigos religiosos ou os leigos vierem a nossos conventos, os pobres casebres, as celas toscas e as pequenas igrejas edificá-los-ão mais do que as palavras".
E disse ainda: "Construindo grandes edifícios, os frades violam nossa santa pobreza, provocando murmurações e dando mau exemplo ao próximo. Se com o - pretexto de terem casas maiores, mais saudáveis, onde possam abrigar maior número de pessoas, mas na realidade por cupidez e avareza abandonarem ou destruírem seus conventos, construindo outros maiores, de excessivas dimensões, não poderão deixar de conturbar e escandalizar os benfeitores, que lhes prodigalizaram as esmolas, e os demais fiéis. Por conseguinte, é melhor que os frades se contentem com casas pobres e pequenas, permanecendo fiéis a seus votos e dando bom exemplo ao próximo, do que renegá-los, dando mau exemplo, pois se acontecer que os frades abandonem seus conventos por outros mais convenientes, o escândalo será menor".
CAPÍTULO 11
Como certos frades, sobretudo prelados e homens de ciência,
se opuseram aos desejos de São Francisco
no que se referia à construção de casas e conventos
Como o santo houvesse prescrito que as igrejas dos frades fossem pequenas e que suas casas fossem construídas unicamente de barro e madeira, em sinal de santa pobreza e de humildade, resolveu começar por estabelecer está prescrição em Santa Maria da. Porciúncula, onde as casas eram feitas de barro e madeira, a fim de que esse convento, que era o primeiro e principal da Ordem, servisse para sempre de exemplo a todos os frades presentes e futuros. Alguns frades, no entanto, opuseram-se a esta determinação, alegando que em algumas províncias a madeira era mais cara que a pedra. Por esta razão não lhes parecia aconselhável que as casas fossem de madeira e barro. Estando o santo gravemente enfermo e já próximo da morte, não julgou prudente discutir com eles, mas mandou escrever no seu Testamento: "Que os frades guardem bem este preceito: ao construírem para eles igrejas, conventos ou qualquer edifício deste gênero, não devem de modo algum aceitar a propriedade e não os possuirão senão conforme a santa pobreza... e na condição de aí permanecer como hóspedes de passagem, estrangeiros e peregrinos".
Nós que estávamos com ele quando escreveu esta Regia e quase todos os seus escritos, atestamos que ele mandou escrever ainda várias prescrições, às quais muitos frades se opuseram, sobretudo os prelados e homens de ciência, e que seriam hoje de grande utilidade para toda a Ordem Mas como o Seráfico Pai temia muito o escândalo, submeteu-se, não sem grande pesar, à vontade dos frades. No entanto, repetia com freqüência: "Ai daqueles frades que se opõem a mim naquilo que eu sei firmemente ser a vontade de Deus para o bem e necessidade de toda a Ordem. E, portanto, contra minha vontade que condescendo com seus desejos".
A nós seus companheiros. confessava sempre: "Eis a minha mágoa e minha grande aflição: a força de preces e meditações obtive da misericórdia de Deus prescrições que Ele me assegurou ser a sua vontade, no interesse atual e futuro de toda a Ordem. Todavia, alguns frades, em nome de sua ciência e de sua prudência, opuseram-se a mim e suprimiram-nas dizendo: 'Eis o que convém guardar e o que convém suprimir"'.
CAPÍTULO 12
Como tinha por roubo receber e gastar esmolas além das necessidades
São Francisco dizia freqüentemente aos frades: "Nunca fui um ladrão de esmolas, recebendo-as ou gastando-as além do necessário; sempre aceitei menos do que me ofereciam, a fim de não lesar os outros pobres, pois agir de outra maneira seria agir como ladrão".
CAPÍTULO 13
Como Cristo lhe revelou que os frades não deviam possuir coisa alguma,
em comum ou em particular
Como os ministros procurassem persuadir são Francisco a conceder alguns bens aos frades, pelo menos em comum, a fim de que uma tão grande fraternidade pudesse dispor de algumas reservas, ele se pôs em oração e invocou a Cristo consultando-o sobre este ponto. E Cristo respondeu-lhes assim: "Eu os proverei de tudo em comum e em particular, pois estou disposto a socorrer sempre esta família, por mais numerosa que ela se torne, e, na medida em que ela depositar em mim sua confiança, sustentá-la-ei com carinho e desvelo".
CAPÍTULO 14
Como amaldiçoava o dinheiro e castigou um frade
por ter pegado numa moeda
Verdadeiramente amigo e imitador de Cristo, Francisco desprezava sinceramente todas as vaidades do mundo e acima de tudo execrava o dinheiro; pela palavra e pelo exemplo, levava seus frades a fugirem dele como do próprio demônio. Exortava-os a não darem mais valor ao dinheiro que a excrementos. Aconteceu que um dia um leigo entrou na igreja de Santa Maria da Porciúncula para rezar e como esmola depositou uma moeda aos pés da cruz. Depois que ele se retirou, um frade com toda simplicidade apanhou-a, colocando-a sobre uma das janelas.
Quando São Francisco tomou conhecimento do fato, aquele frade, sentindo-se culpado, correu imediatamente a pedir-lhe perdão, prostrando-se por terra, para receber o castigo. O Seráfico Pai repreendeu-o severamente por ter pegado em dinheiro. Ordenou-lhe que o retirasse da janela com os lábios e o levasse para fora do recinto do convento, e o depositasse, sempre com os lábios, sobre excrementos de asno. Tendo aquele frade executado o que lhe foi ordenado, todos os que presenciaram este fato ou tiveram notícia dele ficaram cheios de grande temor e desde então desprezavam ainda mais o dinheiro, comparado a excrementos de asno. E cada dia, alimentado por novos exemplos, crescia mais este desprezo pelo dinheiro.
CAPÍTULO 15
Como julgava necessário evitar a maciez e a variedade das túnicas
e suportar com paciência as contrariedades
Revestido da força do alto, o Seráfico Pai tirava dela mais calor para sua alma do que o que suas vestes lhe proporcionavam exteriormente ao corpo. Por isso não tolerava que os frades vestissem três túnicas ou usassem sem necessidade vestes macias. Ensinava que uma necessidade provocada pelo prazer dos sentidos e não pela razão era sinal de que o espirito estava amortecido. Quando a alma, dizia ele, se torna tíbia, pouco a pouco a graça arrefece e "a carne e o sangue" fatalmente procuram seu próprio interesse. E acrescentava: "Que restará com efeito, quando a alma ignorar as delícias espirituais e a carne se voltar apenas para suas exigências; quando o apetite animalesco exigir em nome da necessidade a sua satisfação e o instinto carnal se impuser à consciência? Se, por acaso, um de meus frades, preso de uma necessidade real, se apressar a satisfazê-la, que salário receberá? Apresenta-se-lhe uma ocasião de mérito, mas ele a rejeita com sua conduta, mostrando claramente que isto lhe desagrada. Negar-se a suportar com paciência privações e necessidades não é outra coisa, senão querer voltar ao Egito".
Enfim, não queria que os frades tivessem, sob pretexto algum, mais de duas túnicas, mas permitia-lhes forrá-las com retalhos de panos costurados por dentro. Afirmava ter horror a fazendas finas e repreendia severamente os que agiam de modo contrario às suas prescrições. Para confundi-los com o seu exemplo costurava sempre um saco grosseiro sobre sua própria túnica e ordenou que quando morresse forrassem com um saco a túnica que lhe serviria de mortalha. Todavia, quando uma enfermidade ou outra necessidade o exigia, ele consentia que os frades vestissem uma túnica mais fina sobre a pele, mas eram obrigados a usar por cima o habito rústico e grosseiro. Costumava comentar com grande amargura: "Relaxa-se a disciplina e os filhos de um pai que foi pobre não se envergonham de usar vestes de escarlate, contentando-se apenas com mudar-lhes a cor".
CAPÍTULO 16
Como se recusa a conceder a seu corpo algumas satisfações por julgar
que os outros frades tinham mais necessidade delas do que ele
Quando São Francisco morava no eremitério de Santo Eleutério, próximo de Rieti, forrou com retalhos de fazenda seu habito, único que possuía, e o de seu companheiro, proporcionando a si e a este confrade um pouco de alivio. Pouco depois, ao terminar a oração, disse com grande alegria a seu companheiro: "Eu devo ser um modelo e um exemplo para todos os frades; eis por que, embora precise de uma túnica forrada, devo considerar que os outros frades têm também as mesmas necessidades e no entanto São obrigados a se privarem destas comodidades. Devo, por conseguinte, colocar-me em situação idêntica à deles e sofrer as mesmas inconveniências, a fim de que, por meu exemplo, eles sejam mais pacientes".
Na verdade, quantas vezes privou-se do necessário a seu corpo para dar o bom exemplo aos frades, a fim de que eles suportassem com mais paciência a pobreza e as privações! Nós que vivemos com ele não podemos descrever estas coisas nem por palavras nem por escrito, porque quando os frades se tornaram numerosos, o Seráfico Pai se pôs com todo zelo a ensinar-lhes com exemplos e palavras o que eles deviam fazer, ou evitar.
CAPÍTULO 17
Como se envergonhava de encontrar alguém
mais pobre do que ele
O escarlate era uma tinta reservada às fazendas preciosas e finas. Significava, pois, “vestir-se com tecidos preciosos e finos”. Passando, um dia, por um pobre e considerando sua miséria e indigência, disse a seu companheiro: "A pobreza deste homem devia ser para nós motivo de vergonha, pois inflige severa repreensão à nossa (pobreza)
- E, na verdade, uma grande vergonha para mim encontrar alguém mais pobre que eu, quando elegi a santa pobreza como minha Dama, minha alegria, minha riqueza espiritual e corporal, e no mundo inteiro se sabe que eu fiz profissão de pobreza diante de Deus e dos homens".
CAPÍTULO 18
Como encoraja os primeiros irmãos a pedir esmolas
e como os instrui neste ofício
Logo que São Francisco viu chegar-lhe os primeiros companheiros, encheu-se de grande alegria, não só pela conversão deles, mas também pela boa companhia que o Senhor lhe proporcionava. E tanto os amava e respeitava, que não os obrigava a pedir esmola, pois lhe parecia que isto era para eles motivo de vergonha. Assim, compadecendo-se de sua timidez, ia todos os dias, sozinho, pedir esmolas. Mas como no século vivera na opulência e era de frágil compleição, e também por causa dos jejuns e das mortificações que lhe esgotaram as forças, fatigava-se muito. Considerando, pois, que não podia suportar sozinho este encargo, que os irmãos tinham sido chamados para a mesma tarefa e que se eles tinham vergonha de pedir esmolas era porque não haviam sido convenientemente instruídos nem eram bastante atilados para dizer: "Nós também queremos pedir esmolas", lhes disse: "Meus irmãos caríssimos, meus filhinhos, não tenhais vergonha de pedir esmola, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo e a seu exemplo nós escolhemos o caminho da verdadeira e perfeita pobreza. A esmola é a herança que Nosso Senhor Jesus Cristo adquiriu e nos legou, a nós e a todos os que quiserem, para imitá-lo, viver na santa pobreza. Em verdade vos digo: muitos dentre os mais nobres e mais sábios deste mundo virão juntar-se a nós e considerarão uma grande honra, uma grande graça pedir esmola. Ide, portanto, esmolar com confiança e com o coração cheio de alegria; e com a bênção de Deus ide mesmo com mais boa vontade e alegria do que um homem a quem propusessem cem dinheiros por um escudo, porque àqueles a quem pedirdes esmolas oferecereis o amor de Deus, dizendo-lhes: 'Dai-me uma esmola por amor de Deus em comparação com o qual o céu e a terra nada são"'
Como os frades fossem pouco numerosos, não podia enviá-los dois a dois, mas enviou-os separadamente, cada um por diferentes burgos e aldeias. Ao regressarem com as esmolas, entregaram-nas ao Seráfico Pai e diziam entre si: "Eu trouxe mais esmolas do que tu". São Francisco alegrou-se por vê-los satisfeitos e contentes. Desde então cada um vinha espontaneamente pedir-lhe permissão para ir esmolar.
CAPÍTULO 19
Como não queria que os frades se preocupassem
em demasia com o dia de amanhã
Nesta época o Seráfico Pai e seus companheiros viviam em tal pobreza que observavam literalmente as prescrições do santo Evangelho, máxime depois de o Senhor lhe haver revelado que tanto ele como seus companheiros deviam viver conforme o Evangelho. Assim, proibiu que o irmão cozinheiro pusesse de molho em água morna, na tarde anterior, o feijão que os frades haviam de comer no dia seguinte, como se costumava fazer, para que seguissem aquele conselho do Evangelho: "Não vos preocupeis com o dia de amanhã". O irmão tinha, portanto, que esperar até depois das matinas para pô-lo de molho, isto é, até à manhã do dia em que os frades deviam comê-lo. Pela mesma razão, observaram os frades, sobretudo nas cidades, o preceito de não aceitar nem receber mais esmolas do que o necessário para um dia.
CAPÍTULO 20
Como repreendeu, pela palavra e pelo exemplo,
os frades que haviam preparado suntuosamente a mesa no dia de Natal,
por causa da visita de um ministro
Um dia, certo ministro veio ter com São Francisco na residência dos frades de Rieti, para celebrar com ele a festa de Natal. E os frades, aproveitando o pretexto da festa de Natal e da presença do ministro, prepararam a mesa caprichosamente, cobrindo-a com belas toalhas brancas e guarnecendo-a de copos de cristal. Quando São Francisco desceu de sua cela para a refeição e viu a mesa adornada com tanto cuidado e esmero, saiu furtivamente, tomou o chapéu e o bastão de um pobre que naquele dia se encontrava no convento, chamou em seguida seu companheiro e se pôs diante da porta, do lado de fora, enquanto o companheiro permaneceu junto à porta, do lado de dentro. A mesa, os frades se entreolhavam indecisos, pois são Francisco lhes havia dado ordem de não o esperarem, se ele não chegasse na hora de Começar a refeição. Tendo permanecido algum tempo fora, bateu à porta, e seu companheiro abriu no mesmo instante. Coberto com a capa e de bastão na mão, foi até a entrada do refeitório onde os frades comiam, e como um peregrino gritou: "Dai uma esmola por amor de Deus a este pobre e enfermo peregrino". O ministro e os frades reconheceram-no imediatamente, e o ministro lhe respondeu: "Irmão, nós também somos pobres e como somos numerosos, as esmolas que recebemos nos são necessárias. Mas pelo amor do Senhor que tu invocaste, entra e repartiremos contigo as esmolas que o Senhor nos deu".
São Francisco entrou e se colocou diante da mesa dos frades, o ministro lhe deu a escudela em que comia, juntamente com uma côdea de pão. Recebeu-as e sentou-se humildemente no chão, perto do fogo, em frente aos frades sentados à mesa. E suspirando lhes disse: "Ao ver esta mesa preparada com tanto cuidado e elegância julguei que não pertencia a pobres religiosos que, todos os dias, vão de porta em porta pedir esmolas. Convém-nos, irmãos caríssimos, mais do que a outros religiosos, seguir o exemplo de humildade e pobreza que Cristo nos deu, porque essa é a nossa vocação e assim prometemos por profissão diante de Deus e dos homens. As festas do Senhor e dos santos se celebram melhor na pobreza e na indigência, pelas quais os santos ganharam o céu, do que na opulência e no luxo pelos quais a alma se distancia dele". Ao ouvir estas prudentes admoestações, encheram-se de vergonha, considerando que São Francisco dizia a estrita verdade e tinha sobejas razões.
E alguns, vendo São Francisco sentado no chão e a solicitude e doçura com que os corrigia e instruía, começaram a derramar copiosas lágrimas. Exortava-os a que tivessem mesas humildes e honestas para que pudessem edificar os leigos e para que, se convidassem um pobre de passagem, este pudesse sentar-se com eles no mesmo pé de igualdade e não se vissem os frades em cadeiras e o pobre no chão.
CAPÍTULO 21
Como o Senhor Bispo de Óstia comoveu-se até às lágrimas
com a pobreza dos frades
Quando o Senhor Bispo de Óstia, futuro Papa Gregório IX, foi assistir ao capítulo que os frades celebravam em Santa Maria da Porciúncula, entrou no convento com numerosa comitiva de clérigos e cavaleiros desejoso de ver o dormitório dos frades. Ao ver que os frades dormiam no chão, sem outro colchão além de uma enxerga de palha, com algumas cobertas pobres e esfarrapadas, e sem travesseiros, derramou abundantes lágrimas na presença de todos dizendo: "Eis como dormem os frades. Que será de nós, míseros, que dispomos de tantas coisas supérfluas?" A vista deste espetáculo, tanto ele como sua comitiva ficaram grandemente edificados. Tampouco divisaram mesa alguma, pois os frades comiam sentados no chão.
Neste lugar, enquanto viveu São Francisco, os frades mantiveram o costume de comerem sentados no chão.
CAPÍTULO 22
Como vários cavaleiros obtiveram o que lhes era necessário,
pedindo esmola de porta em porta, a conselho de São Francisco
Quando São Francisco se encontrava no convento de Bagnara, acima de Nocera, um ataque de hidropisia provocou-lhe forte inchação nos pés e ele caiu gravemente enfermo. Assim que os habitantes de Assis tomaram conhecimento disto, mandaram a toda a pressa alguns cavaleiros àquele convento para trazê-lo de volta a Assis, pois receavam que ele morresse ali e as suas preciosas relíquias ficassem pertencendo a outra cidade. Ao reconduzirem-no, pararam num burgo do território de Assis a fim de comerem alguma coisa. Enquanto São Francisco repousava na casa de um pobre homem que o havia acolhido de boa vontade, os cavaleiros foram à aldeia para comprar mantimento, mas, não encontrando nada, vieram ter com o Seráfico Pai e lhe disseram aflitos: "E preciso, irmão, que repartas conosco as esmolas, pois não encontramos nada para comer". E o santo lhes respondeu com grande fervor e convicção: "Não encontrastes nada, porque vos confiastes a vossas moscas, isto é, a vosso dinheiro, e não a Deus. Voltai às casas onde antes procurastes o que comprar e, despojando-vos de todo o amor-próprio, pedi esmolas por amor de Deus. Vereis então como, por inspiração do Espírito Santo, os aldeões vos darão em abundância e com alegria do que tiverem". Foram, com efeito, e pediram esmolas como São Francisco lhes aconselhara; e aquela gente lhes deu com alegria e em abundância de tudo o que tinha. Reconhecendo nisto um milagre e louvando a Deus, voltaram jubilosos para junto do santo patriarca.
Assim procedia, porque julgava o fato de pedir esmola por amor de Deus muito nobre e muito digno aos olhos do mesmo Deus e do mundo, pois tudo o que o Pai celeste criou para utilidade dos homens, nos deu gratuitamente em esmolas, após o pecado, por amor de seu Filho, quer sejamos dignos ou indignos. Ensinava igualmente que o servo de Deus deve pedir esmola por amor de Deus, de boa vontade e com mais alegria do que aquele que, por liberalidade e largueza, fosse exclamando:
"Se alguém me der uma só moeda, eu lhe darei mil escudos de ouro", porque o servo de Deus, ao pedir esmola por amor de Deus, oferece àquele a quem a solicita o amor de Deus, em comparação com o qual nada são todas as coisas do céu e da terra. Por isto, antes e depois que os frades se multiplicaram, quando saia pelo mundo a pregar, se por acaso um nobre, um potentado o convidava para comer ou hospedar-se em sua casa, ia primeiro pedir esmola até à hora da refeição, antes de se apresentar na casa de seu anfitrião, não só para dar o bom exemplo aos frades, como também por respeito à dignidade da Dama Pobreza. E com freqüência acontecia que o santo recusava o convite, justificando-se: "Não quero renegar minha dignidade real, minha herança, minha profissão e a de meus frades, isto é, a mendicidade de porta em porta". Outras vezes, o seu anfitrião o acompanhava, em pessoa, recebia as esmolas que se davam ao santo e as guardava por devoção para com ele. Este, que descreve estas cenas, presenciou-as muitas vezes e da' testemunho delas.
CAPÍTULO 23
Como foi pedir esmola antes de sentar-se à mesa do cardeal de Óstia
Ao visitar, um dia, o bispo de Óstia, que depois se tornou Papa, com o nome de Gregório IX, saiu furtivamente antes da hora da refeição, para pedir esmola de porta em porta. Ao regressar, o Senhor de Óstia já estava à mesa com uma numerosa comitiva de nobres e cavaleiros. São Francisco chegou, pôs sobre a mesa, diante do cardeal, as esmolas que havia recolhido de porta em porta e sentou-se ao lado de seu purpurado anfitrião, pois era desejo expresso do cardeal que o santo ocupasse sempre este lugar. O prelado não pôde deixar de se envergonhar por ter São Francisco saído naquela ocasião para pedir esmolas, mas por causa de seus convivas não disse nada. Depois de ter o santo comido algo, tomou as esmolas e as distribuiu em nome de Deus, uma porção para cada comensal: familiares do prelado, nobres e cavaleiros. Todos receberam-na com grande respeito e piedade estendendo-lhe reverentemente o capuz ou o barrete; uns comeram logo, outros, por devoção para com ele, puseram-na de lado. Com isto alegrou-se muito o Senhor de Óstia, sobretudo ao ver que o pão recolhido de esmola não era de trigo.
Depois do banquete, o cardeal retirou-se para seus aposentos, levando consigo o Seráfico Pai. E abraçando-o com grande alegria, lhe disse: "Meu simplicíssimo irmão, por que me infligiste hoje esta vergonha? Convidado à minha mesa, que é também a de teus frades, tu saíste a esmolar!" Ao que o santo respondeu: "Pelo contrário, eu vos testemunhei uma grande honra, porque quando um servo cumpre o seu dever e obedece a seu amo, está honrando-o". E acrescentou: "Eu devo ser um modelo e um exemplo para os pobres que estão no meio de vós, sobretudo porque sei que nesta Ordem de frades há, e haverá sempre, os que serão verdadeiramente menores de nome e de fato; por amor de Deus e inspirados pelo Espírito Santo que os instruirá no que for necessário, eles se rebaixarão e com toda humildade se submeterão aos seus irmãos e os servirão. Há, e haverá sempre, outros que, por vergonha ou porque foram mal instruídos, não consentem, nem consentirão em se humilhar e se rebaixar a ponto de realizar humildes tarefas. Por isso, convém que meu exemplo seja uma lição para todos os que fazem parte desta Ordem ou que hão de entrar nela, a fim de que neste mundo e no outro eles não possam desculpar-se diante de Deus. Encontrando-me em vossa casa - vós que sois nosso senhor e nosso bispo - ou na casa de outro poderoso e nobre deste mundo que, por amor de Deus, me recebeis em vossas casas com grande devoção, mas me impondes vossa hospitalidade, não terei vergonha de sair para pedir esmola. Ao contrário, devo considerar, segundo Deus, uma grande honra, uma dignidade real e uma homenagem àquele que, sendo o Senhor de todos, quis fazer-se servo; que, sendo rico e glorioso na sua majestade, quis tornar-se pobre e desprezado na nossa humilde condição. Por esta razão quero que os frades presentes e futuros saibam que eu experimento mais consolação da alma e do corpo quando estou com meus frades, sentados a uma mesa paupérrima, coberta de esmolas recolhidas de porta em porta por amor de Deus, que quando estou à vossa mesa, ou de outro senhor, abundantemente provida de variadas e requintadas iguarias. O pão das esmolas é sagrado, o louvor de Deus e o seu amor o santificou, pois, quando o frade pede esmola, deve primeiro dizer: 'Louvado e bendito seja o Senhor Deus!"'
O cardeal ficou muito edificado com estas palavras do Seráfico Pai e lhe disse: "Meu filho, faze como te parecer melhor, pois não há dúvida de que o Senhor está contigo e tu com Ele".
Era desejo do santo, como ele o declarou muitas vezes, que um frade não ficasse muito tempo sem ir esmolar, não só por considera-lo um ato muito meritório, como também por temor de que ele sentisse vergonha de voltar às esmolas. Quanto mais eminente e nobre era o frade neste mundo, mais edificado e alegre ficava o santo ao vê-lo sair para pedir esmola ou empenhar-se nos humildes trabalhos que constituíam a faina diária dos frades.
CAPÍTULO 24
De certo frade que não rezava, nem trabalhava, mas que comia demais
Nos primórdios da Ordem, quando os frades residiam em Rivotorto, próximo de Assis, havia entre eles um frade que rezava pouco, não trabalhava, mas comia bem! Considerando esta conduta, São Francisco, inspirado pelo Espírito Santo, conheceu que era um homem carnal e lhe disse: "Segue teu caminho, irmão mosca, porque queres te alimentar do trabalho de teus irmãos e ficar ocioso na vinha do Senhor. Es como o zângão ocioso e estéril que nada produz, porque não trabalha e, contudo, se nutre do trabalho e do ganho das laboriosas abelhas".
Ouvida esta repreensão, aquele frade voltou para casa; e como era carnal não Implorou misericórdia, nem a obteve.
CAPÍTULO 25
Como foi com entusiasmo ao encontro de um pobre
que passava com esmolas, louvando a Deus
Certo dia, encontrando-se São Francisco em Santa Maria da Porciúncula, um pobre, de profunda vida espiritual, que regressava de Assis com esmolas, passou pela estrada louvando a Deus em voz alta e com grande alegria.
Como se aproximasse da igreja de Santa Maria, São Francisco o ouviu e, imediatamente, com grande fervor e entusiasmo, saiu ao seu encontro; radiante de alegria beijou os ombros sobre que trazia as esmolas e, tomando-lhe o fardo sobre os próprios ombros, conduziu-o à presença dos demais religiosos, diante dos quais disse: "Deste modo quisera que meus frades fossem pedir esmolas, e voltassem, contentes e alegres, bendizendo e louvando ao Senhor".
CAPÍTULO 26
Como o Senhor lhe revelou que seus religiosos deviam chamar-se "frades menores"
e anunciar por toda parte paz e salvação
Em outra ocasião disse o Seráfico Pai: "A Ordem e a vida dos frades menores é semelhante a um pequeno rebanho que o Filho de Deus, nos últimos tempos, pediu a seu Pai celeste dizendo: 'Pai, quisera eu que tu formasses e me desses, nestes últimos tempos, um povo novo e humilde, diferente de todos os que lhe precederam, por sua humildade e por sua pobreza, e que se contentasse apenas em me possuir, a mim somente'. E ouvindo isto, o Pai celeste lhe respondeu: 'Meu Filho bem-amado, o que pediste ser-te-á concedido"'.
Por isto, assegurava o bem-aventurado pai que Deus quis, e assim o revelou, que os religiosos se chamassem “frades menores", por serem eles aquele povo, pobre e humilde, que o Filho pediu ao Eterno Pai, povo do qual o próprio Filho de Deus havia dito no Evangelho: "Não temais, pequeno rebanho, porque aprouve a vosso Pai vos dar um reino por herança". E ainda: "O que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes". E, embora o Senhor falasse de todos os pobres de espirito, referia-se de modo particular à Ordem dos Frades Menores que deveria aparecer mais tarde na sua Igreja.
Como tivesse sido revelado a são Francisco que a sua Ordem deveria chamar-se dos "Frades Menores", fêlo constar na primeira Regra que apresentou ao Papa Inocêncio III, que a aprovou e promulgou perante todo o consistório. Do mesmo modo revelou-lhe o Senhor a saudação que os frades deveriam empregar, conforme o santo o mandou escrever em seu Testamento com estas palavras: "O Senhor me revelou a fórmula de saudação que devemos usar: 'Que o Senhor te dê a paz!"'
Nos primórdios da Ordem, como o santo viajasse em companhia de um dos primeiros doze frades, este saudava os homens e as mulheres pelos caminhos e nos campos dizendo: "Que o Senhor te dê a paz!" Como aquela gente não estivesse acostumada a ouvir de outros religiosos este gênero de saudação, admirava-se muito ao ouvi-la. Mais ainda, alguns lhe replicavam indignados: "Que significa este modo de saudar-nos?" Com isto, envergonhou-se aquele frade e suplicou ao santo: "Permite-me usar outra saudação". Mas São Francisco lhe respondeu: "Deixa-os dizer, pois não discernem os caminhos do Senhor. Quanto a ti, não te envergonhes, porque os nobres e poderosos deste mundo te hão de testemunhar veneração e respeito, a ti e aos outros irmãos, por causa desta saudação. Com efeito, não há nada de mais extraordinário do que o fato de o Senhor ter desejado um povo novo, pobre e humilde, diferente de todos os que o precederam, por sua vida e suas palavras, que se contentasse em possuí-lo, a Ele somente, altíssimo e glorioso Senhor.
SEGUNDA PARTE
Da caridade, da compaixão e da afabilidade para com o próximo
CAPÍTULO 27
Como condescendeu com um irmão que morria de fome, comeu com ele
e exortou os frades a serem discretos e prudentes na penitência
Quando São Francisco começou a receber seus primeiros companheiros e morava com eles em Rivotorto, próximo a Assis, aconteceu que, estando todos os frades dormindo, por volta da meia-noite, um deles começou a gritar: "Eu morro! Eu morro!" Todos os frades acordaram estupefatos e amedrontados. São Francisco levantou-se e ordenou: "Levantai-vos, irmãos, e acendei a luz' E, acesa a luz, perguntou: "Quem foi que disse: eu morro?" E aquele frade respondeu: "Fui eu". "Que tens tu, irmão? De que morres?", perguntoulhe o santo. "Morro de fome", respondeu o frade. Imediatamente o Seráfico Pai mandou preparar a mesa e fêlo sentar-se e, como homem cheio de caridade e delicadeza, comeu com ele, para que não se envergonhasse de comer sozinho; em seguida, ordenou a todos os frades que fizessem o mesmo. Estes frades e todos os demais, porque não estavam verdadeiramente convertidos ao Senhor, excediam-se nas penitências e mortificações do corpo.
Acabada aquela refeição noturna, o santo falou-lhes deste modo: "Meus irmãos, eu vos aconselho a examinar, cada um, sua própria natureza, porque, embora alguns dentre vós possam sustentar-se com menos alimentos que outros, não quero que aquele que tem necessidade de uma alimentação mais substancial os imitem. Antes, desejo que cada um examine sua natureza e conceda ao corpo aquilo que lhe for necessário para servir ao espírito. Do mesmo modo que nos devemos guardar do excesso de alimentos, prejudicial não só ao corpo como à alma, devemos igualmente guardar-nos de uma abstinência excessiva, pois assim deseja o Senhor: 'A misericórdia e não o sacrifício'. Irmãos caríssimos, o que acabei de fazer, isto é, o tê-los feito comer com nosso irmão, fi-lo obrigado pela necessidade e pela caridade, mas vos asseguro que não o repetirei no futuro, pois não seria honesto nem digno de um religioso. Exijo, portanto, e ordeno que cada um propicie a seu corpo o que lhe for necessário e suficiente, na medida em que o permitir a nossa pobreza".
Estes frades e os que vieram depois deles continuaram, por muito tempo, a mortificar com excesso seu corpo, pela abstinência de bebidas e alimentos, vigílias, frio, vestimentas rudes e trabalho manual. Levavam na carne círculos de ferro, contundentes couraças e ásperos cilícios. Por isso o Seráfico Pai temia que este gênero de vida os fizesse adoecer, como há pouco havia acontecido a muitos deles. Assim, num capítulo, proibiu que os frades usassem outra coisa mais, além da túnica. Nós, que vivemos com ele, somos testemunhas de que em toda a sua vida sempre foi discreto e moderado para com os irmãos, mas de maneira que eles não se afastassem jamais, em circunstância alguma, da pobreza e do espírito de nossa Ordem. Ele mesmo, embora fosse de frágil compleição e no mundo tivesse desfrutado de relativo conforto, mostrou-se rigoroso para com seu corpo, desde sua conversão até a morte. Por esta razão, receoso de que os frades fossem além da pobreza e do espírito da Ordem, não só na alimentação como em tudo o mais, falou-lhes nestes termos: "Pelo visto, julgam os frades que o meu corpo não precisa de certo conforto e bem-estar. Precisa sim, mas como quero ser um modelo e um exemplo para todos os meus irmãos, desejo servir-me de pouca coisa e me contentar apenas com um pouco de alimento, e dos mais pobres. Usando, portanto, de tudo, segundo a pobreza, quero desprezar os alimentos finos e requintados".
CAPÍTULO 28
Como condescendeu com um irmão enfermo
e comeu com ele um cacho de uvas
Outro dia, encontrando-se São Francisco no mesmo lugar, um dos frades, antigo na Ordem e homem de grande espiritualidade, adoeceu, causando-lhe a doença extrema debilidade. Ao vê-lo naquele estado, o santo encheu-se de compaixão. Mas naquele tempo os frades, tanto os sãos como os doentes, tinham com alegria sua pobreza por abundância, não se serviam de remédios nas enfermidades, nem mesmo os solicitavam, servindo-se, antes, de coisas que lhes mortificavam o corpo, sem lhes proporcionar qualquer alívio. São Francisco disse consigo mesmo: "Se este irmão comesse, de madrugada, algumas uvas maduras, creio que experimentaria alguma melhora". E como pensou, fez. Levantando-se muito cedo, chamou em seguida o enfermo e o conduziu a uma videira que ficava nas imediações da casa onde moravam. Escolheu um ramo cujos cachos estavam bem maduros e sentando-se próximo à videira pôs-se a comer as uvas para que o irmão doente não se envergonhasse de comer sozinho. Comendo-as, o enfermo recobrou a saúde e ambos louvaram ao Senhor e lhe deram graças.
Durante toda a sua vida aquele religioso se recordava da misericórdia e da afeição que o Seráfico Pai lhe testemunhara e, freqüentemente, relatava este fato aos demais religiosos, com grande devoção e efusão de lágrimas.
CAPÍTULO 29
Como se despojou de suas vestes a si e a seu companheiro,
para vestir uma pobre mulher
Achando-se certa vez em Celano, durante o inverno, o Seráfico Pai usava um pedaço de pano dobrado, em forma de manto, que um benfeitor dos irmãos lhe havia emprestado. Acercou-se dele uma velhinha pedindo esmola. Imediatamente o santo tomou o manto que lhe pendia do pescoço e, embora não lhe pertencesse, deu-o à pobre mulher, dizendo: "Vai, e faze um vestido para ti, pois tens muita necessidade disto". A pobre mulher começou a rir e aturdida, não sei se por causa do temor ou da alegria, tomou-lhe o manto das mãos e temendo que se lho arrebatasse, caso permanecesse ali, pôs-se a correr e em seguida cortou o pano com tesoura. Mas, percebendo que a fazenda era insuficiente para um vestido, recorreu de novo à generosidade do Seráfico Pai, dando-lhe a entender que aquele pano era muito pequeno para fazer um vestido. O santo olhou para o companheiro que também levava seu manto e lhe disse: "Ouviste o que disse essa pobre mulher? Por amor de Deus, suporta o frio e dá o teu manto para que ela possa terminar o seu vestido". Imediatamente o companheiro, à imitação de São Francisco e por instância deste, despiu-se de seu manto e deu-o àquela mulher. Eis como ambos se despojaram de seus mantos para vestir uma pobre mulher.
CAPÍTULO 30
Como tinha por roubo o não ceder seu manto a quem tivesse
mais necessidade do que ele
Outro dia, ao retornar de Sena, encontrou, no caminho, um pobre e disse a seu companheiro: "Urge, irmão, cedamos a este pobre o nosso manto que, na verdade, lhe pertence, pois o recebemos de empréstimo, até que encontrássemos alguém mais pobre do que nós".
Mas vendo o companheiro que o Seráfico Pai tinha grande necessidade daquele manto, opôs-se com insistência a que ele remediasse o outro, esquecendo-se de si mesmo. Ante a recusa do frade, o santo replicou: "Não quero ser um ladrão, pois como tais seremos tidos, se não cedermos este abrigo a quem tiver mais necessidade dele do que nós". Proferidas estas palavras, entregou o manto ao pobre.
CAPÍTULO 31
Como o santo deu, sob condição,
o seu manto novo a um pobre
Quando se achava em Cortona, São Francisco usava um manto novo que seus frades, com muita solicitude lhe haviam adquirido. Acercou-se dele um pobre, lamentando-se da morte de sua mulher e do abandono em que se achava sua desafortunada família. Compadecendo-se de seu infortúnio, o santo lhe disse: "Dou-te este manto, mas com a condição de que não o dês a ninguém, senão a quem quiser comprá-lo e pague por ele um bom preço". Ouvindo isto, os frades acorrem pressurosos ao pobre, para reaver o manto. Mas aquele pobre, encorajado pela presença do santo, segurava-o com as duas mãos, como se fosse seu. Finalmente, os frades recuperaram o manto, pagando ao pobre o preço que lhe era devido.
CAPÍTULO 32
Como, em virtude das esmolas de São Francisco,
um pobre perdoou as Injúrias de seu amo e deixou de odiá-lo
Em Colle, na região de Perusa, São Francisco reencontrou um pobre homem que ele havia conhecido outrora, quando ainda vivia no século. Ao avistá-lo, perguntou-lhe: "Como vais, irmão?" Mas o pobre, enfurecido, começou a proferir injúrias contra seu amo, nestes termos: "Graças a meu amo, que o Senhor o amaldiçoe, vou muito mal. porque ele me esbulhou de todos os meus haveres".
E o santo, vendo-o persistir no seu ódio mortal, compadeceu-se de sua alma e lhe disse: "Irmão, por amor de Deus e para a salvação de tua alma, perdoa a teu amo que, talvez, te restitua o que te arrebatou. Caso contrário, além de teus bens, perderás a tua alma". Mas o homem retrucou-lhe: "Não posso perdoar-lhe de modo algum, se não me devolver antes o que me tomou". Então o santo lhe disse: "Toma, eu te dou este manto e te suplico que perdoes a teu amo por amor do Senhor Deus". Imediatamente abrandou-se o coração daquele homem que, movido por este benefício, perdoou a seu amo todas as injúrias que lhe fizera.
CAPÍTULO 33
Como enviou sua capa a uma velha que,
como ele, sofria dos olhos
Uma pobre mulher de Machilone veio a Rieti para tratar-se de uma moléstia de olhos. Quando o médico que tratava de São Francisco veio vê-lo, lhe disse: "Meu irmão, uma mulher, que sofre dos olhos, veio consultar-me; ela é tão pobre que eu tenho de pagar-lhe as despesas". Ouvindo isto, comiserou-se da infeliz mulher e, chamando um dos frades, que era então seu guardião, disse-lhe: "Irmão guardião, é nosso dever fazer bem ao próximo". - "Mas em que consiste esse bem, irmão?" - "Este manto que nós recebemos desta pobre enferma, devemos devolver-lho". Ouvindo isto, respondeu o guardião: "Irmão, faze como melhor te parecer".
Então o santo chamou alegremente um de seus amigos, homem de grande espiritualidade, e lhe ordenou: "Toma este manto juntamente com doze pães e vai procurar a mulher doente dos olhos, que o médico te indicar, e dize-lhe de minha parte: 'Um pobre homem, a quem tu emprestaste este manto te agradece e to devolve; toma, pois, o que te pertence"'. O irmão foi ter com a mulher e fez exatamente que lhe ordenara São Francisco. Pensando que zombavam dela, e ao mesmo tempo receosa e colérica, replicou: "Deixa-me em paz, pois não sei o que queres dizer com isto!" Mas ele meteu-lhe nas mãos o manto e os pães. Julgando então que ele dissera a verdade, aceitou-os com emoção e respeito, e, repleta de alegria, louvou ao Senhor. Mas, receosa de que os frades tentassem reavê-los, levantou-se à noite e, ocultamente, voltou para sua casa. Ora, São Francisco havia conseguido do guardião que todos os dias, enquanto ela permanecesse naquele lugar, os frades provessem suas necessidades.
Nós, que vivemos com ele, somos testemunhas de que o Seráfico Pai demonstrou sempre grande caridade e compaixão para com os pobres, fossem eles enfermos ou sãos, frades ou leigos. Com grande alegria interior e exterior dava aos pobres o que lhes era necessário ao corpo, e que muitas vezes os frades tinham conseguido com ingente sacrifício. Privava-se de tudo que não lhe era absolutamente indispensável, confortando-nos com palavras edificantes, para que, vendo aquilo, não nos afligíssemos. Por esta razão, o ministro geral e seu guardião proibiram-no de dar o seu hábito a qualquer irmão sem permissão deles. Com efeito, acontecia que muitas vezes os frades lhe pediam, por caridade, sua túnica e ele imediatamente lhes dava, ou então dividia-a em duas, dando-lhes um pedaço e conservando outro para si, pois possuía apenas uma.
CAPÍTULO 34
Como deu seu hábito aos frades que lhe pediam por amor de Deus
Certa vez, enquanto, pregando, percorria uma província, dois frades de França foram ao seu encontro. Tendo recebido do Seráfico Pai grandes consolações, acabaram por pedir a sua túnica por amor de Deus.
Assim que o santo ouviu as palavras "por amor de Deus", desfez-se imediatamente da túnica e lhes deu, ficando despido por alguns momentos. Com efeito, todas as vezes que invocavam o "amor de Deus", para lhe pedir a túnica, a corda ou qualquer outra coisa, não recusava jamais. Por isto, muito lhe desagradava, e costumava repreender severamente os frades quando os ouvia pronunciarem as palavras "por amor de Deus" inutilmente, por motivos de somenos importância, e acrescentava: "O amor de Deus é tão sublime e tão precioso que não se deveriam empregar estas palavras senão raramente, em caso de necessidade e com grande respeito".
Então um daqueles frades despiu a própria túnica e a deu ao santo em troca da dele. Quando dava sua túnica, o santo experimentava grande desgosto e muito se afligia, por não poder obter outra igual, pois usava sempre túnicas pobres, remendadas por dentro e por fora. E nunca ou raramente consentia em vestir túnica de fazenda nova, procurando, de preferência, uma que já tivesse sido usada, durante algum tempo, por outro irmão. Mas às vezes era forçado a forrá-la por dentro, com pedaços de panos novos, por causa de suas incontáveis doenças, dos esfriamentos do estômago e do baço. Deste modo, observou a pobreza até o dia em que se foi para o Senhor. Pouco antes de sua morte, como padecia de hidropisia e estava reduzido a pouco menos que um cadáver e, ademais; acabrunhado por diversos outros achaques, fizeram-lhe os frades várias túnicas para poder mudá-las freqüentemente, durante o dia e a noite.
CAPÍTULO 35
Como deu, às escondidas, um pedaço de pano a um pobre
Em outra ocasião, um pobre foi à casa onde se encontrava o santo e pediu aos frades um pedaço de fazenda por amor de Deus. Ao ouvi-lo, ordenou o santo a um dos frades: "Corre a casa e vê se achas um pedaço ou uma peça de fazenda e dá a este pobre". Tendo percorrido em vão toda a casa, comunicou ao santo nada haver encontrado. Para que o pobre não voltasse de mãos vazias, São Francisco furtivamente, a fim de que o guardião não o impedisse, tomou uma faca e, sentando-se em um lugar oculto, pôs-se a descoser de sua túnica um pedaço de pano que estava costurado por dentro, a fim de dá-lo ocultamente àquele pobre. Mas, adivinhando o que se passava, o guardião foi-lhe ao encalço e proibiu-lhe de dar aquele pedaço de pano, sobretudo porque fazia então grande frio e o santo além de doente era muito friorento.
A esta proibição o santo respondeu: "Se queres que eu não dê este pedaço de pano, ordena que lhe seja dado outro pedaço qualquer, pois é absolutamente necessário que socorramos este pobre". Desta maneira, graças à intervenção de São Francisco, os frades deram, cada um, àquele pobre, um pedaço de fazenda de sua própria vestimenta. Quando, em pregações, percorria o mundo, costumava ir ora a pé, ora montado em um burro, quando ficou doente. Só viajava a cavalo em caso de grande e estrita necessidade, pois em outra circunstância não queria fazê-lo, e isto pouco antes de sua morte.
Se um frade lhe emprestava seu manto, não o aceitava senão na condição de lhe ser permitido dá-lo a qualquer pobre que encontrasse, ou que lhe aparecesse, sempre que em consciência lhe parecesse mais necessitado que ele.
CAPÍTULO 36
Como ordenou a Frei Egídio, antes que este entrasse na Ordem,
que desse sua capa a um pobre
Nos primórdios da Ordem, quando São Francisco morava em Rivotorto com dois irmãos, os únicos que ele tinha então, veio ter com ele certo homem, chamado Egídio, que foi o terceiro de seus companheiros. Seu desejo era abandonar o mundo para compartilhar com eles do mesmo gênero de vida. Permaneceu, por alguns dias, com as vestes trazidas do mundo. Mas um dia apresentou-se ao santo um pobre pedindo esmola. Voltando-se então para o novo companheiro, o santo lhe disse: "Irmão, dá a tua capa a este pobre". Imediatamente, com grande alegria, despiu-a, entregando-a ao pobre. Viu-se desde logo, pela alegria com que dera sua capa ao pobre, que o Senhor lhe tinha infundido no espírito uma nova graça. Depois disto foi admitido na Ordem por São Francisco, progredindo sempre em virtude até alcançar grande perfeição.
CAPÍTULO 37
Da penitência infligida a um frade por haver este feito
mau juízo de um pobre
Como São Francisco tivesse ido a uma casa de frades, perto de Rocca di Brizio, para pregar, aconteceu que no dia de sua pregação aproximou-se dele um homem, pobre e doente. Movido de compaixão, discorria com seu companheiro sobre a pobreza e a enfermidade daquele homem. Mas, ao ouvi-lo, o companheiro comentou: "Irmão, é verdade que ele parece bastante pobre, mas é bem possível que em toda esta província não haja alguém que, tanto como ele, tenha o desejo de ser rico". Por este juízo temerário foi severamente repreendido pelo santo e reconheceu a sua falta. Vendo a sua aflição, perguntou-lhe o Seráfico Pai: "Queres fazer a penitência que te ordenar?" "Desejo-o de todo o coração, pai". "Vai, então, despe tua túnica e lança-te nu aos pés daquele pobre, dize-lhe como pecaste denegrindo-o e pede-lhe que reze por ti". O irmão foi e fez exatamente como o santo lhe ordenara. Depois soergueu-se, tomou sua túnica e voltou para junto do Seráfico Pai. Este então lhe pergunta: "Queres saber, irmão, em que pecaste contra este homem e contra Cristo? Quando vires um pobre, deverás considerar que ele vem em nome de Cristo, que pôs sobre ele a nossa pobreza e a nossa enfermidade. Portanto, a pobreza e a enfermidade deste homem devem ser para nós um espelho no qual devemos contemplar com devoção a enfermidade e a pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo que as suportou em seu corpo, para nossa salvação".
CAPÍTULO 38
Como fez dar um Novo Testamento a uma pobre mulher,
mãe de dois frades
Outra vez, quando o santo morava em Santa Maria da Porciúncula, aproximou-se dele uma velhinha que tinha dois filhos na Ordem e lhe pediu uma esmola. Ao ouvi-la, perguntou a Frei Pedro Cattani, então ministro geral: "Podemos encontrar em casa alguma coisa para dar a nossa mãe?" Com efeito, o Seráfico Pai afirmava sempre que a mãe de um frade era não só a sua própria mãe, mas também a de todos os seus frades.
O ministro geral respondeu-lhe: "Não há nada em casa que possamos dar-lhe, pois ela deseja uma esmola com a qual possa remediar suas necessidades corporais. Na igreja temos apenas um Novo Testamento no qual fazemos nossas leituras matinais". - Naquele tempo os frades não tinham breviários, nem muitos saltérios. Então o santo ordena-lhe: "Dá este Novo Testamento a nossa mãe para que ela o venda e com o lucro possa prover às suas necessidades. Creio firmemente ser isto mais agradável a Nosso Senhor e à Santíssima Virgem do que fazermos nele nossas leituras". E lho deu. Pode-se pois dizer e escrever dele o mesmo que se lê do bem-aventurado Jó: "Sua caridade saiu com ele do seio materno e cresceu com ele".
Para nós que vivemos com ele seria difícil, senão impossível, relatar tudo o que vimos e ouvimos de outros, sobre sua caridade e comiseração para com os irmãos e os outros pobres, além do que nós mesmos vimos com nossos próprios olhos.
TERCEIRA PARTE
Da perfeição da santa humildade e da obediência de São Francisco e de seus frades
CAPÍTULO 39
Como renunciou ao seu cargo à frente da Ordem
e nomeou Frei Pedro Cattani ministro geral
Para conservar a virtude da santa humildade, poucos anos após a sua conversão, por ocasião de um capítulo geral, renunciou ao seu cargo à frente da Ordem e, na presença de todos os frades, declarou: "Doravante estou morto para vós, mas eis aqui Frei Pedro Cattani a quem vós e eu obedeceremos". E prostrando-se por terra, prometeu-lhe obediência e respeito. Todos os frades choravam, pois verem-se órfãos de um tal pai era para eles motivo de grande dor.
Em seguida levantou-se e, elevando os olhos ao céu, juntou as mãos e disse: "Senhor, eu te recomendo a família que me confiaste até hoje; como não tenho mais forças para cuidar dela por causa de minhas enfermidades que tu conheces, dulcíssimo Senhor, eu a confio aos ministros. No dia do juízo, Senhor, que sejam obrigados a te prestar contas se um só irmão se perder por causa de sua negligência, mau exemplo ou de ásperas correções". Desde então permaneceu submisso até a morte, fazendo-se em tudo mais humilde que qualquer outro frade.
CAPÍTULO 40
Como renunciou a seus companheiros
e não quis ter nenhum companheiro particular
Outra vez colocou todos os seus companheiros à disposição do vigário, dizendo: "Não quero ter este único privilégio de ter companheiro particular, desejo apenas que os frades se associem a mim, de convento em convento, segundo a inspiração do Senhor". E acrescentou: "Encontrei no caminho um cego que não tinha outro guia além de um cãozinho; não quero, portanto, parecer mais afortunado que ele".
Esta foi sempre a sua glória: renunciar a toda espécie de privilégio e de ostentação, para que a virtude de Cristo habitasse nele.
CAPÍTULO 41
Como renunciou a seu cargo à frente da Ordem
por causa de alguns maus superiores
Tendo sido interpelado por um dos frades que lhe perguntou a razão por que havia renunciado à direção dos frades e os havia entregue a outras mãos como se não significassem mais nada para ele, respondeu-lhe: "Meu irmão, eu amo os frades, tanto quanto me é possível, mas se eles seguirem minhas pegadas, amá-los ainda mais e não me tornarei estranho para eles. Há alguns superiores que procuram afastálos de mim e lhes propõem o exemplo dos antigos considerando meus ensinamentos como coisa de somenos importância, mas um dia se verá claramente o resultado de sua conduta".
Pouco depois, tendo caído gravemente enfermo, ergueu-se de seu leito e gritou com veemência: "Quem são estes que ousam arrebatar de minhas mãos os meus frades e minha Ordem? Se eu for ao capítulo geral mostrar-lhes-ei minha vontade".
CAPÍTULO 42
Como pede humildemente carne para os enfermos
e lhes ensina humildade e paciência
São Francisco não se envergonhava de ir esmolar nas praças das cidades carne para os irmãos doentes. Todavia, ensinava-lhes a suportar seus males e a não causar escândalo quando não fossem atendidos convenientemente. Assim, fez escrever na primeira Regra: "Suplico a meus irmãos enfermos que não se encolerizem nem se revoltem contra o Senhor ou contra os irmãos, que não peçam remédios com insistência, nem desejem demasiadamente salvar a carne mortal, que é inimiga da alma. Mas que por tudo dêem graças ao Senhor e desejem ser tais como Deus os quer. Com efeito, o Senhor os destinou à vida eterna, e os preparou para o jugo do sofrimento e da doença, como ele mesmo disse: 'Eu repreendo e corrijo ao que amo"'.
CAPÍTULO 43
Da humilde resposta de São Domingos e São Francisco quando lhes perguntaram,
a ambos, se eles desejavam que seus filhos ocupassem prelaturas na Igreja
Quando São Francisco e São Domingos se encontravam juntos, em Roma, na presença do bispo de Óstia, que depois se tornou Papa, enquanto falavam de Deus em termos mais doces que mel, o Senhor Bispo de Óstia lhes falou assim: "Na Igreja primitiva os pastores e os prelados eram pobres, ardentes de caridade e destituídos de ambições. Por que não faremos de vossos frades bispos e prelados que superarão os outros pelo testemunho e pelo exemplo?"
Estabeleceu-se então um diálogo humilde e piedoso entre os dois santos, não que um quisesse convencer o outro, mas para ceder alternativamente a palavra e levar o outro a uma resposta. Por fim prevaleceu a humildade de São Francisco em não ser o primeiro a responder, recaindo a escolha sobre são Domingos que humildemente aceitou a incumbência de ser o primeiro a responder. São Domingos então respondeu: "Senhor, com esta experiência meus frades receberiam, por certo, grande honra; mas, tanto quanto puder impedir, não permitirei que eles recebam nem mesmo a aparência de uma dignidade".
Ao ouvi-lo, São Francisco inclinou-se ante o cardeal e lhe disse: "Senhor, meus frades são chamados menores para que não pretendam tornar-se maiores. Sua vocação os obriga a permanecer em posição modesta e a seguir as pegadas de Cristo, a fim de, por este meio, serem elevados mais que os outros aos olhos dos santos. Se, pois, desejais que eles produzam frutos na Igreja de Deus, conservai-os e mantende-os no estado de sua vocação e, mesmo que eles aspirem a alguma honra, fazei-os voltar a sua antiga posição e não permitais que sejam elevados a qualquer dignidade".
Ao se separarem, São Domingos pediu a São Francisco se dignasse dar-lhe a corda com que estava cingido. Mas o Seráfico Pai recusou por humildade o que São Domingos lhe pedira por amor. Por fim, venceram os piedosos rogos do suplicante e São Francisco, movido pela força do amor, cedeu sua corda a São Domingos que cingiu com ela sua túnica inferior, usando-a desde então com grande devoção e reverência.
Deram-se mutuamente as mãos e se recomendaram um ao outro com grande doçura. São Domingos disse então a São Francisco: "Desejaria, irmão Francisco, que tua Ordem e a minha não formassem senão uma só, e que nós vivêssemos na Igreja sob a mesma Regra".
Finalmente, quando se separaram, São Domingos disse aos que se achavam presentes: "Em verdade vos digo, todas as religiões deveriam Imitar este santo homem Francisco; tão perfeita é a sua santidade".
CAPÍTULO 44
Como quis que seus frades servissem aos leprosos
a fim de consolidar a humildade
Desde o início de sua conversão, como bom arquiteto, São Francisco quis, com a ajuda de Deus, edificar a sua obra sobre sólido rochedo, isto é, sobre a insigne humildade e pobreza do Filho de Deus. Quis por humildade que sua Ordem se chamasse "dos Frades Menores".
Assim, no começo da Ordem, determinou que os frades morassem nos leprosários, para servir a seus moradores, e que aí estabelecessem os fundamentos da santa humildade. Quando os frades, nobres ou não, entraram na Ordem, ele lhes disse, entre outras advertências, que eles deveriam servir humildemente aos leprosos e habitar nos próprios leprosários, como consta da primeira Regra. "Não queiramos possuir nada neste mundo, além da santa pobreza, em virtude da qual o Senhor lhes proporcionará alimentos corporais e espirituais e lhes alcançará no futuro a herança celestial".
Deste modo fundamentou, para os outros como para si mesmo, a sua Ordem sobre a mais estrita humildade e pobreza, pois, embora tivesse podido ser um grande prelado na Igreja de Deus, escolheu e preferiu ser rebaixado, não somente na Igreja, mas também entre os seus frades. No seu pensar e no seu desejo, este rebaixamento era uma grande honra aos olhos de Deus e dos homens.
CAPÍTULO 45
Como quis que a glória e a honra de suas palavras
e boas ações fossem atribuídas unicamente a Deus
Um dia, quando em praça pública pregava ao povo de Terni, aconteceu que, terminado o sermão, o bispo do lugar, homem atilado e de profunda espiritualidade, ergueu-se e disse estas palavras: "O Senhor, desde o dia em que plantou e edificou a sua Igreja, a iluminou sempre com santos que, pela palavra e pelo exemplo, lhe proporcionam honra e glória. Nos últimos tempos, ele a engrandece na pessoa deste Francisco, paupérrimo, desprezado e iletrado. Eis a razão por que deveis amar e honrar o Senhor e vos abster do pecado. A nenhum outro povo ele distinguiu com tantas maravilhas".
Proferidas estas palavras, o bispo abandonou o lugar de onde havia falado e entrou na sua catedral. Mas São Francisco foi-lhe ao encalço e, encontrando-o, inclinou-se e lançou-se a seus pés, dizendo: "Em verdade vos digo, Senhor Bispo, ninguém jamais me fez tanta honra neste mundo, como vós me fizestes hoje. Todos os homens dizem: é um santo, e me atribuem a glória de santidade em vez de atribui-la ao Criador. Vós, ao contrário, homem de discernimento, distinguistes o vil do precioso".
Quando o santo era objeto de louvores ou chamado santo, respondia: "Ainda não estou seguro de que jamais terei filhos e filhas. A qualquer momento o Senhor poderá retirar-me o tesouro que me confiou. Que me restaria, então, se também o corpo e a alma são as únicas coisas que os infiéis possuem? Por isso creio que se o Senhor tivesse concedido aos ladrões e aos infiéis tantos bens quanto me concedeu, eles lhe seriam mais fiéis do que eu o sou. Diante de um quadro de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem pintado sobre madeira, o que se honra e se louva não é a madeira ou pintura, mas as pessoas venerandas de Deus e da Virgem. Do mesmo modo, o servo de Deus é como uma pintura ou um quadro no qual é louvado o próprio Deus por causa de seus divinos benefícios".
CAPÍTULO 46
Como quis, até sua morte, ter um guardião escolhido
entre os seus companheiros e viver sob sua autoridade
Querendo viver até a morte na humildade perfeita e na submissão, muito tempo antes de ser estigmatizado, suplicou ao ministro geral: "Rogo-te que delegues tua autoridade sobre mim a um de meus companheiros, a quem obedecerei em teu lugar; em razão do salutar efeito da obediência desejo que, na vida e na morte, tu permaneças sempre comigo".
Desde então, até a morte, teve como guardião um de seus companheiros, ao qual ele obedecia em lugar do ministro geral. Um dia, chegou mesmo a afirmar a seus companheiros: "O Senhor me concedeu, entre outras graças, a de obedecer pontualmente tanto a um noviço que entrasse hoje na Ordem, se ele me fosse dado como guardião, como ao mais velho e mais antigo na Ordem. Na verdade, o súdito deve considerar seu superior, não como um homem, mas como Deus, por cujo amor ele foi submetido a sua autoridade". Mais tarde acrescentou; "Se eu quisesse, o Senhor me faria temido de meus frades, mais do que qualquer superior o é de seus súditos neste mundo. Mas Q Senhor me concedeu a graça de estar contente com tudo, como o menor da Ordem".
Nós que vivemos com ele vimos com os próprios olhos que tudo isto se passou como ele declarou. Se alguns frades não lhe davam satisfação por algo de que ele tinha necessidade ou lhe diziam alguma palavra que, de ordinário, irritaria os homens, imediatamente se punha em oração e, ao retornar, não queria se lembrar mais do ocorrido. Jamais se queixava: "Tal irmão não me deu satisfação" ou: "tal frade me disse tal palavra".
Perseverou neste propósito até a morte. Quanto mais se aproximava da morte, tanto maior era a sua ânsia de saber como poderia viver e morrer com toda humildade e pobreza, na perfeição de todas as virtudes.
CAPÍTULO 47
Como ensinava a perfeita maneira de obedecer
O Seráfico Pai dizia a seus frades: "Irmãos caríssimos, executai sem tardanças as ordem que vos forem dadas; não espereis que vos mandem uma segunda vez, enfim, não deis a impossibilidade como pretexto, por mais impossível que vos pareça esta ordem. Se eu vos ordenar algo acima de vossas forças, não vos faltará, para executá-lo, a da santa obediência
CAPÍTULO 48
Como comparou a perfeita obediência a um cadáver
Outra vez, sentado entre seus companheiros, dizia suspirando: "Há apenas um religioso no mundo que obedece perfeitamente a seu superior".
Ao ouvi-lo, seus companheiros lhe perguntaram: "Dize-nos, pai, qual a mais perfeita e melhor obediência?" São Francisco respondeu-lhes então, descrevendo a verdadeira e perfeita obediência sob a figura de um cadáver: "Tomai um corpo sem vida e colocai-o onde quiserdes. Vereis então que ele não resistirá ao movimento, não se queixará da posição, não reclamará se o mudardes de lugar. Se o puserdes num trono, não olhará para o alto, mas para o chão, se o vestirdes de púrpura, parecerá duas vezes mais pálido. Tal é a verdadeira obediência: não pergunta por que o mudaram de posição, não se preocupa com o lugar onde o colocaram, não insiste para ser mandado alhures. Elevado a um cargo, conserva a humildade costumeira; quanto mais se vê cumulado de honra, tanto mais indigno se julga".
Considerava como santa obediência a que é imposta pura e simplesmente e não a que é solicitada. Julgava que a suprema obediência, aquela em que a carne e o sangue não têm parte alguma, é a que consiste em ir inspirado por Deus, para o meio dos infiéis, seja para ajudar o próximo, seja por desejar o martírio. No seu entender, pedir tais coisas era muito agradável a Deus.
CAPÍTULO 49
Como considerava temerário dar ordens com precipitação em nome da obediência,
como também não obedecer a estas mesmas prescrições
O Seráfico Pai entendia que só com muita raridade se devia dar ordens em nome da obediência, que esta arma não devia ser usada senão em último recurso: "Não se deve lev8r a mão com tanta pressa à espada", dizia ele. E acrescentava que o que não obedece imediatamente ao preceito da obediência não tem temor de Deus, nem dos homens, a menos que, para tanto, tenha uma razão relevante. E não há nada mais razoável que isto, pois que é a autoridade do mando confiada a um superior irresponsável, senão uma espada na mão de um louco? E que há de mais desesperador do que um religioso que negligencia ou despreza a obediência?
CAPÍTULO 50
Como respondeu a alguns frades que queriam persuadi-lo a solicitar privilégio
que lhes permitisse pregar livremente
Certos frades disseram a São Francisco: "Pai, não vês que às vezes os bispos não nos permitem pregar e nos obrigam a ficar muitos dias sem fazer nada num lugar, sem poder anunciar a palavra do Senhor? Seria melhor que pedisses ao Senhor Papa um privilégio sobre este assunto, pois se trata da salvação das almas".
Mas o santo respondeu-lhes com severidade: "Vós, frades menores, não compreendeis a vontade de Deus e me impedis de salvar o mundo inteiro conforme a vontade deste mesmo Deus. Quero, antes, convencer os prelados pela santa humildade e pelo respeito que lhes testemunho. Assim, quando virem nossa vida santa e a nossa humilde reverência para com eles, pedir-vos-ão que pregueis e convertais o povo a quem chamarão a escutar-vos com mais eficácia que vossos privilégios, que só servirão para vos encher de soberba. Quando tiverdes sido libertados de vossa avareza e persuadido o povo a dar à Igreja o que lhe é devido, eles vos pedirão que ouçais a confissão de seus pecados, embora não vos devais ocupar disto, pois quando tiverem sido convertidos, encontrarão facilmente confessores. Para mim, não desejo senão este privilégio: o de nunca receber de homens qualquer privilégio. Quero tratar a todos com grande respeito e, pela obediência à santa Regra, converter todos os homens pela palavra e pelo exemplo..."
CAPÍTULO 51
Como reconciliava os frades daquele tempo quando ocorriam
entre eles motivos de mágoa ou ressentimentos
O Seráfico Pai afirmava que os frades menores haviam sido enviados pelo Senhor, naqueles tempos, para darem o bom exemplo aos que se achavam envolvidos nas trevas do pecado. E confessava que quando ouvia falar das maravilhas operadas pelos frades santos espalhados por todo o mundo, sentia-se impregnado de suavíssimo odor e ungido das virtudes de um óleo precioso. Sucedeu, pois, que em certa ocasião um frade injuriou a outro na presença de um nobre da ilha de Chipre. Percebendo que havia ofendido a seu companheiro e desejando ardentemente punir-se por esta falta, apanhou um pouco de esterco do chão, pô-lo na boca e o mordeu dizendo: "Que a lingua que espalhou o veneno da cólera mastigue o esterco". Vendo aquilo, o nobre encheu-se de admiração e retirou-se tão edificado que, pouco depois, pôs sua pessoa e todos os seus bens à disposição dos frades.
Todos eles tinham o costume de, quando um injuriasse ou magoasse o outro, lançar-se imediatamente por terra, beijar os pés do irmão ofendido e lhe pedir humildemente perdão. O Seráfico Pai encheu-se de alegria ao constatar que seus frades haviam aprendido a tirar de si mesmos exemplos de santidade. Por isso cumulava de bênçãos os que, pela palavra e pelo exemplo, conduziam os pecadores ao amor de Cristo. No zelo pelas almas, que o abrasava e enchia totalmente, queria que seus frades fossem verdadeiramente semelhantes a ele.
CAPÍTULO 52
Como Cristo se lamentou a Frei Leão, companheiro de São Francisco,
da ingratidão e do orgulho dos frades
O Senhor Jesus Cristo disse uma vez a Frei Leão, companheiro de São Francisco: "Frei Leão, tenho algumas queixas contra os frades». Frei Leão perguntou-lhe: "Por que, Senhor?" E o Senhor lhe respondeu: «Por três razões:
Porque não reconhecem os benefícios que, como sabes, tenho espalhado sobre eles, uma vez que não semeiam nem ceifam... Porque durante todo o dia se entregam a murmurações e nada fazem. Porque sempre estão dando motivo de cólera, uns contra os outros, não retornam ao amor nem perdoam as injúrias recebidas".
CAPÍTULO 53
Como o Seráfico Pai deu uma humilde mas sábia resposta a um doutor
da Ordem dos Pregadores, o qual o havia interpelado
sobre uma palavra da Sagrada Escritura
Durante uma estada em Sena, certo doutor em teologia da Ordem dos Pregadores, notável não só pela humildade, mas também por uma grande espiritualidade, veio procurá-lo. Após terem dissertado sobre as palavras do Senhor, o mestre interrogou-o sobre estas palavras de Ezequiel: "Se não exortares o ímpio a abandonar a sua má conduta, é a ti que eu pedirei conta de sua alma". "Conheço muitos, meu pai, que estão em pecado mortal e não lhes mostrei a sua impiedade. Serei, porventura, obrigado a prestar conta de sua alma?"
Ao ouvi-lo, São Francisco respondeu com humildade que era ignorante, e que lhe era mais conveniente receber instruções de seu interlocutor do que responder sobre esta palavra da Sagrada Escritura. O humilde mestre respondeu-lhe, então: "Irmão, embora já tenha ouvido a opinião de muitos homens de ciência sobre estas palavras, gostaria de ouvir o teu parecer". Instado deste modo, São Francisco respondeu: "Se estas palavras devem ser interpretadas em termos gerais, eu as entendo assim: o servo de Deus deve brilhar e refulgir de tal modo pela santidade de sua vida, que o seu exemplo seja uma censura aos maus. Sim, digo-vos, o exemplo de sua vida e sua boa fama tornarão todos os ímpios conscientes de suas iniqüidades".
O teólogo retirou-se profundamente edificado e disse a seus companheiros: «A teologia deste homem, apoiada na pureza de sua vida e no espírito de contemplação, é semelhante à águia que voa, enquanto que a nossa se arrasta pelo chão".
CAPÍTULO 54
Como deviam viver com humildade
e em paz com os clérigos
São Francisco queria que seus filhos vivessem em paz com todos os homens e se fizessem os menores diante de todos, e lhes ensinassem pela palavra e pelo exemplo a se mostrarem humildes com os clérigos.
Afirmava, com efeito: "Nós fomos enviados para ajudar o clero a salvar as almas. Assim, se lhes faltar alguma coisa, é a nós que devem recorrer, pois está escrito: 'Cada um receberá o seu salário na medida do seu próprio esforço', e não segundo sua necessidade. Sabei, meus irmãos, que salvar almas é o que há de mais agradável a Deus e que nós podemos atingir melhor esta meta vivendo em paz com o clero do que na discórdia. Se são eles que impedem a salvação do povo, 'é a Deus que cabe a vingança e recompensa através dos tempos'. Sede pois submissos aos prelados a fim de que um falso zelo não perturbe vossa tarefa. Se fordes filhos da paz, ganhareis a boa vontade do povo e do clero; isto será mais agradável a Deus do que ganhar o povo escandalizando o clero. Dissimulai-lhes as faltas, supri-lhes as lacunas, e, quando tiverdes agido assim, sede ainda mais humildes".
CAPÍTULO 55
Como adquiriu humildemente do abade de São Bento de Assis
a Igreja de Santa Maria dos Anjos, quis que seus frades
a habitassem sempre e vivessem com humildade
Vendo que o Senhor desejava multiplicar o número dos frades, São Francisco lhes disse: "Irmãos caríssimos, meus filhinhos, vejo que o Senhor quer nos multiplicar. Parece-me conveniente que obtenhamos do bispo, ou dos cônegos de São Rufino, ou do abade de São Bento, uma igreja onde os frades possam dizer as Horas e, próximo a ela, uma casa pobre e pequenina, feita de barro e palha, onde possam repousar e trabalhar. O lugar onde nos encontramos não é conveniente nem suficiente para os frades, agora que o Senhor quer multiplicá-los e, sobre tudo, carecem de igreja onde possam recitar suas orações. Se um frade vier a morrer, não será conveniente sepultá-lo aqui, nem numa igreja do clero secular".
Os frades aprovaram todas estas palavras.
Foi então procurar o bispo de Assis e lhe expôs sua questão. Ao ouvi-lo o bispo respondeu: "Irmão, eu não tenho igreja para te dar". Os cônegos responderam-lhe da mesma forma.
Foi então falar com o abade de São Bento do Monte Subásio e lhe apresentou a mesma questão. Movido pelo amor fraterno, o abade, depois de ouvir o conselho de seus monges e guiado pela graça e vontade de Deus, concedeu a São Francisco e a seus frades a igreja de Santa Maria da Porciúncula, que era a menor e mais pobre de suas possessões. O abade disse a São Francisco: "Irmão, nós te concedemos o que nos pedes, mas se o Senhor multiplicar tua fraternidade, queremos que este lugar se torne a cabeça de todas as tuas igrejas.
O Seráfico Pai e seus frades aceitaram com alegria a proposta do abade, e o santo experimentou indizível alegria ao ver que a igreja levava o nome da Mãe de Deus e, por ser pequenina e pobre, tinha o subtítulo de Porciúncula, antevendo nisto o seu glorioso destino de cabeça e mãe dos frades menores. Chamava-se Porciúncula porque antigamente aquele lugar tinha este nome.
São Francisco disse: "Foi por isto que o Senhor quis que nenhuma outra igreja fosse concedida aos frades e que os primeiros frades não construíssem uma igreja nova nem tivessem outra além desta". Desta maneira, com o advento dos frades menores cumpriu-se uma profecia.
Embora fosse muito pobre e estivesse quase em ruína, em todas as épocas os habitantes de Assis e de toda a região tinham uma grande devoção para com esta igreja. Hoje esta devoção ainda é grande e cresce dia a dia.
Desde que os frades se estabeleceram ali para morar, o Senhor aumentou, quase cada dia, o número deles. Sua boa fama se espalhou maravilhosamente por todo o vale de Espoleto e em muitas partes do mundo. Outrora esta igreja se chamava Santa Maria dos Anjos porque, segundo reza a lenda, ouviam-se ali muitas vezes cantos angélicos.
Se bem que o abade e seus monges a tivessem doado sem condições a São Francisco e seus frades, este, como bom e hábil administrador, quis construir a sua casa, isto é, sua Ordem, sobre um sólido rochedo: a mais estrita pobreza. Todo ano o santo pai enviava ao abade e a seus monges uma cesta de peixes chamados cadozes, como sinal da maior humildade e pobreza e para que os frades não tivessem, por direito, qualquer lugar e não o habitassem senão sob a dependência de outrem e, ainda, para que não pudessem vendê-lo, nem aliená-lo.
Quando os frades levavam, cada ano, os peixinhos aos monges, estes, em razão da humildade de São Francisco, que assim havia procedido por iniciativa própria, lhes davam um cântaro de óleo.
Nós, que vivemos com o Seráfico Pai, testemunhamos haver ele dito e afirmado, falando desta igreja, que lhe havia sido revelado ali que a Santíssima Virgem tinha por esta igreja especial afeição, em virtude das grandes predileções que o Senhor lhe testemunhara. Por este motivo teve desde então grande respeito e devoção para com ela.
Para que os frades guardassem estas memórias no seu coração, mandou escrever no seu testamento que eles, após a sua morte, procedessem da mesma forma. Pouco antes de sua morte disse diante do ministro geral e de todos os frades: "Quero dispor da casa de Santa Maria da Porciúncula e deixá-la aos frades por testamento, para que a tratem sempre com grande respeito e devoção".
Proferidas estas palavras, o Seráfico Pai concluiu com grande fervor e piedade: "Quero que este lugar seja imediatamente submetido à autoridade do ministro geral e servo de todos, a fim de que vele por ele com grande cuidado e solicitude e reúna aí uma boa e santa comunidade.
Que os clérigos sejam escolhidos entre os melhores, os mais santos e os mais virtuosos dos frades, entre os que souberem melhor recitar o oficio e estiverem mais bem integrados no espírito da Ordem, a fim de que não somente os leigos, mas também os frades os ouçam de boa vontade e com grande devoção.
Que os irmãos leigos que os servem sejam escolhidos entre homens santos, discretos, humildes e de vida honesta. Ordeno igualmente que ninguém, frade ou leigo, entre neste lugar, além do ministro geral daqueles que estão a serviço dos irmãos. Que os irmãos aí residentes não falem com ninguém a não ser com os frades incumbidos do serviço e com o ministro geral, quando este for visitá-los.
Desejo ainda que os frades leigos que os servem estejam obrigados a não dizer palavras ociosas e a hão lhes levar noticias do século ou qualquer coisa que não seja útil a suas almas. Desejo de modo especial que ninguém entre neste lugar para que os frades guardem melhor sua pureza e sua santidade, e que nada de inútil seja aí dito ou feito, mas este lugar seja preservado santo e puro no meio de hinos e canto de louvores ao Senhor.
Quando um destes frades emigrar para o Senhor, desejo que o ministro geral chame para seu lugar, de qualquer parte onde ele se encontre, outro frade de vida santa. Mesmo que os frades algum dia se afastem da pureza e da honestidade, quero que este lugar abençoado permaneça sempre um espelho e um bom exemplo para toda a Ordem, que seja uma lâmpada ardente e brilhante diante do trono de Deus e da Santa Virgem e que, graças a ele, o Senhor seja indulgente para com as faltas e defeitos de todos os frades, conserve e proteja a Ordem, sua pequena planta".
CAPÍTULO 56
Da humilde reverência que testemunhou às igrejas,
varrendo-as e limpando-as
No tempo em que São Francisco morava em Santa Maria dos Anjos e os frades eram pouco numerosos, o Seráfico Pai percorria as aldeias e igrejas em torno de Assis, pregando aos homens penitência. Levava sempre uma vassoura para varrer as igrejas, pois causava-lhe grande pena ver que uma igreja hão estava tão limpa como ele desejava.
Terminado o sermão, reunia todos os padres num lugar reservado, a fim de que hão fosse ouvido pelos leigos, e lhes falava da salvação das almas e, sobretudo, os exortava a serem mais zelosos com a limpeza das igrejas, dos altares e de tudo o que concernia à celebração dos santos mistérios.
CAPÍTULO 57
Do camponês que o encontrou varrendo, com humildade,
uma igreja e que, tendo-se convertido, entrou na Ordem
e se tornou um santo religioso
Certo dia foi a uma igreja de uma aldeia nos arredores de Assis e se pôs com humildade a varrê-la e a limpá-la. A noticia se espalhou imediatamente por todo o lugarejo. Com efeito, o povo da aldeia gostava de vê-lo e, ainda mais, de ouvi-lo. Logo que tomou conhecimento do fato, um camponês, homem de grande simplicidade, chamado João, veio ter imediatamente com ele e encontrou-o varrendo a igreja, com grande humildade e devoção. E lhe disse: "Irmão, dá-me a vassoura que eu quero te ajudar". Tomando-lhe a vassoura das mãos, acabou a tarefa.
Sentaram-se em seguida, e o homem disse a São Francisco: "Há muito tempo que eu desejava servir a Deus, sobretudo depois que ouvi falar de ti e de teus frades, mas não sabia como vir ter contigo. Agora que o Senhor permitiu que nos encontrássemos, desejo fazer tudo o que me aconselhares". Vendo o seu querer, o Seráfico Pai alegrou-se no Senhor, principalmente porque tinha poucos irmãos e por lhe parecer que aquele homem seria um bom religioso por causa de sua simplicidade e pureza de alma. Assim, lhe disse: "Irmão, se queres compartilhar de nossa vida e de nossa companhia, convém que te despojes de tudo o que não puderes conservar sem escândalo e que dês aos pobres, conforme prescreve o santo Evangelho, pois assim fizeram todos os meus frades, na medida em que isto lhes foi possível".
Ouvindo isto, o homem voltou ao campo onde havia deixado os bois e os desatrelou e levou a São Francisco, dizendo: "Irmão, tendo servido a meus pais e a minha família durante estes anos, embora a parte de minha herança seja pequena, quero tomar este boi para mim e dá-lo aos pobres, segundo melhor te parecer". Vendo que ele pretendia deixá-los, seus pais, seus irmãos, que ainda eram pequenos, e toda a família se pôs a chorar e derramar copiosas lágrimas e a gritar e lamentar-se com tamanha dor e de tal modo que São Francisco se condoeu de seus prantos, pois. a família era numerosa e pobre. São Francisco lhes disse: "Preparai uma refeição, tomem-na juntos e não choreis mais, porque vos tornarei a todos felizes e alegres". Preparada a comida, sentaram-se todos à mesa com grande alegria e contentamento.
Quando acabaram a refeição, São Francisco lhes disse: "Vosso filho deseja servir a Deus, não deveis, portanto, vos afligir, mas antes vos alegrar. Ele propicia uma grande honra e um grande beneficio para vossas almas, não somente aos olhos de Deus como também aos dos homens, pois Deus será honrado por alguém de vosso próprio sangue e todos os nossos frades serão vossos filhos e vossos irmãos. Não quero devolver-vos vosso filho, porque ele é uma criatura de Deus e deseja servir a seu Criador. Mas para vos dar um pouco de consolação, consinto que ele se despoje do boi em vosso favor, pois sois pobres, se bem que, segundo o Evangelho, ele devesse dá-lo a outros". Todos ficaram consolados com as palavras de São Francisco e se alegraram imensamente ao ver que o boi lhes fora devolvido, pois eram muito pobres.
Como a pureza e simplicidade daquele homem tivessem agradado muito ao santo pai, este o revestiu imediatamente do hábito dos religiosos e tomou-o humildemente por companheiro. Ele era, com efeito, de tal simplicidade que se julgava obrigado a fazer tudo o que fazia o Seráfico Pai. Quando este entrava numa igreja para rezar, ele o olhava para conformar-se em tudo com seus gestos e ações. Se São Francisco se ajoelhava, levantava as mãos para o céu, tossia, cuspia ou suspirava, ele fazia o mesmo. Ao perceber isto, São Francisco repreendeu-o suavemente e com bom humor por estas mostras de simplicidade. João respondeu-lhe: "Irmão, prometi fazer tudo o que fizeres, por conseguinte, convém que me conforme em tudo contigo". Tamanha simplicidade e inocência não poderiam deixar de suscitar no santo grande alegria e admiração.
E começou a fazer tamanho progresso na virtude e nos bons costumes que são Francisco e os demais irmãos se admiraram grandemente de sua perfeição e fervor. Pouco depois morreu, em avançado grau de santidade. Mais tarde, quando o Seráfico Pai, com indizível alegria interior e exterior, narrava a sua conversão, não o chamava de Frei João, mas São João.
CAPÍTULO 58
Como puniu a si mesmo comendo na escudela
de um leproso a quem havia ofendido
Tendo ido a Santa Maria da Porciúncula, São Francisco encontrou aí a Frei Tiago, o Simples, com um leproso coberto de úlceras. Com efeito, o Seráfico Pai havia-lhe confiado este leproso e todos os outros, pois ele era como que médico de todos eles; de bom grado lavava e pensava-lhes as feridas, pois neste tempo os frades costumavam morar nos leprosários.
São Francisco, então, repreendeu a Frei Tiago nestes termos: "Tu não deves trazer a este lugar os irmãos em Cristo, pois isto não convém nem a ti nem a eles". Embora quisesse servi-los, não gostava que levassem para fora do hospital os que estavam cobertos de chagas, pois os homens sentiam por eles grande repulsa.
Frei Tiago era de tal simplicidade e candura que ia com eles do leprosário à igreja de Santa Marta da Porciúncula, como costumava fazer com os frades. São Francisco chamava os leprosos "irmãos em Cristo". Mas assim que terminou de falar, começou a refletir que com aquela repreensão a Frei Tiago poderia ter ocasionado ao leproso, alguma humilhação ou mau exemplo. Querendo dar uma satisfação a Deus e ao leproso, confessou sua culpa a Frei Pedro Cattani, então ministro geral, e lhe disse: "Quero que confirmes a penitência que escolhi para esta falta e que não me contradigas". E o ministro respondeu-lhe: "Irmão, faze como te agradar", pois Frei Pedro Cattani o respeitava e estimava tanto, que não ousava contradizê-lo, embora muitas vezes muito sofresse com isto. São Francisco lhe disse então: "Eis a minha penitência, comerei com o meu irmão em Cristo na mesma escudela".
Quando o santo se sentou à mesa, os frades colocaram uma escudela entre São Francisco e o leproso, que naquela ocasião tinha um aspecto repelente: cheio de úlceras, os dedos contraídos e cobertos de sangue. Quando tirava um pedaço de pão da escudela, escorria-lhe dos dedos sangue e pus. Ao ver isto, Frei Pedro e os demais irmãos ficaram consternados, mas não ousavam dizer nada, por respeito e veneração para com o santo.
Este que escreveu estas coisas, as presenciou e dá testemunho de que são verdadeiras.
CAPÍTULO 59
Como afugentou o demônio pela humildade de suas palavras
Em certa ocasião São Francisco foi à igreja de São Pedro de Bovara, próximo ao castelo de Trevi no vale de Espoleto.
Estava acompanhado de Frei Pacifico que, no século, era chamado "o rei dos versos", homem nobre, cortês e mestre na arte de cantar. A igreja estava abandonada. são Francisco disse, então, a Frei Pacifico: "Volta ao leprosário, pois eu desejo ficar só, e vem juntar-te a mim amanhã de manhã".
Ficou, pois, sozinho e depois de rezar as Completas e as outras orações quis repousar e dormir, mas não pôde. Seu espírito encheu-se de pavor e seu corpo tremia, perturbados por sugestões diabólicas.
Saindo da igreja, fez o sinal-da-cruz e disse: "Da parte de Deus todo-poderoso, eu vos conjuro, demônios, a fazerdes do meu corpo tudo que o Senhor Jesus Cristo vos permitir, pois estou pronto a tudo suportar. E como este corpo é o meu maior inimigo, vingar-me-ei de meu maior adversário e pior inimigo". Imediatamente cessaram por completo as tentações e ele retornou ao lugar e adormeceu em paz.
CAPÍTULO 60
Da visão que teve Frei Pacifico, pela qual viu e ouviu
que o trono de Lúcifer estava reservado ao humilde Francisco
De manhã Frei Pacifico voltou como lhe recomendara o santo e o encontrou em oração diante do altar; esperou-o fora do coro, orando também aos pés do Crucifixo. Enquanto orava foi arrebatado ao céu, com o corpo ou sem ele, só Deus o sabe. E viu ali numerosos tronos, e entre eles um mais elevado e mais glorioso que os outros, refulgente e cravejado de toda espécie de pedras preciosas. Admirando a sua beleza, indagou a si mesmo a quem seria destinado aquele trono. No mesmo instante ouviu uma voz que dizia: "Este trono pertenceu ao anjo Lúcifer e em seu lugar sentar-se-á o humilde Francisco".
Quando ele voltou a si, São Francisco saiu da igreja e foi ter com ele. Ao vê-lo, Frei Pacifico lançou-se a seus pés com os braços em cruz. E considerando-o como se já estivesse no céu sentado no seu trono, lhe disse: "Pai, tem piedade de mim e pede ao Senhor que se compadeça de mim e perdoe os meus pecados". São Francisco estendeu-lhe as mãos, levantou-o do solo e conheceu imediatamente que ele havia tido uma visão enquanto orava. Com efeito, estava completamente mudado e falava a São Francisco não como a um homem deste mundo, mas como se já estivesse reinando no céu.
Frei Pacifico não quis contar ao Seráfico Pai a sua visão, e começou a falar-lhe de coisas incompreensíveis; por fim disse entre outras palavras: "Que pensas de ti mesmo, irmão?" São Francisco respondeu-lhe: "Parece-me que sou o maior pecador que existe no mundo". No mesmo instante Frei Pacifico ouviu uma voz interior que dizia: "Nisto reconhecerás que tua visão foi verdadeira, pois assim como Lúcifer por seu orgulho foi alijado daquele trono, Francisco por sua humildade merecerá ser elevado e sentado nele".
CAPÍTULO 61
Como fez que o apresentassem despido com uma corda
no pescoço diante do povo
Em outra ocasião, como convalescesse de uma grave enfermidade, pareceu-lhe que se havia excedido um pouco na alimentação, embora na realidade houvesse comido muito pouco. levantou-se, se bem que a febre quartã não o tivesse abandonado de todo, mandou reunir na grande praça o povo de Assis para pregarlhe. Terminada a pregação, ordenou que ninguém se afastasse dali até que ele voltasse. Em seguida, entrou na catedral de São Rufino com numerosos confrades, entre eles Pedro Cattani que havia sido cônego da catedral e era o primeiro ministro geral da Ordem. Ordenou a este que fizesse tudo que ele lhe ordenasse, sem objeções.
Frei Pedro Cattani respondeu-lhe: "Irmão, no que se refere a mim ou a ti não posso querer nem fazer senão o que te agrada".
Despindo sua túnica, São Francisco ordenou-lhe que o conduzisse, nu, com uma corda ao pescoço, diante do povo, até o lugar onde antes havia pregado. Ordenou em seguida a um irmão que tomasse uma escudela cheia de cinza, subisse ao púlpito onde pregara e, chegando lá, atirasse-lhe a cinza sobre o rosto. Movido de compaixão e piedade o irmão recusou-se a obedecer. Mas Frei Pedro, segurando a corda que ele tinha no pescoço, conduziu-o como lhe ordenara, mas lastimando-se em alta voz. Os outros irmãos, como ele, choravam de compaixão e amargura.
Tendo sido levado, despido, ao lugar onde havia pregado e posto na presença do povo, disse: "Vós, e todos os que a meu exemplo deixaram o mundo e entraram na Ordem, credes que sou um santo. Mas eu confesso a Deus e a vós que durante minha enfermidade comi carne e tomei caldo gordo". Todos se puseram a chorar tomados de piedade e compaixão, considerando sobretudo que além de estarem no inverno, o frio era intenso e Francisco ainda não estava completamente restabelecido da febre quartã. Batiam no peito acusandose mutuamente, e dizendo: "Se por uma necessidade justa e manifesta este santo homem se acusa, infligindo a seu corpo tais mortificações, ele que sabemos levar uma vida santa, que vemos viver num corpo quase morto, em razão da grande abstinência e austeridade a que o tem sujeitado depois de sua conversão a Cristo, que será de nós, miseráveis, que durante toda a nossa vida temos vivido segundo os desejos da carne?"
CAPÍTULO 62
Como queria que todos soubessem das mitigações
e regalos que seu corpo recebia
Em outra ocasião, como passasse a Quaresma de São Martinho no eremitério, tomou alimentos condimentados com gordura de porco, pois, em virtude de suas enfermidades, o azeite lhe era altamente prejudicial. Terminada a Quaresma, enquanto pregava a uma grande multidão, disse: "Irmãos caríssimos, com grande devoção viestes a mim, crendo com certeza que eu seja um homem santo, mas eu confesso a Deus e a vós que durante esta Quaresma comi alimentos condimentados com gordura de porco".
Mais ainda, quase sempre que tomava refeições com seculares ou quando os frades, por causa de suas enfermidades, lhe proporcionavam algo especial, declarava imediatamente dentro e fora de casa, diante dos frades e dos leigos que não sabiam do fato: "Eu tomei tal alimento". Com efeito, não sabia ocultar aos homens o que era manifesto ao Senhor. Do mesmo modo, se o seu espírito se inclinasse ao orgulho? vanglória ou a qualquer outro vicio, ele o confessava diante de todos, com humildade e sem pejo algum. Uma vez disse a seus companheiros
"Quero viver nos eremitérios ou em outros lugares onde me encontrar como se todos os homens me vissem. Na verdade, eles me têm por santo, e eu, por não levar uma vida que condiga com essa opinião, sou um hipócrita".
Quando o guardião, um de seus companheiros, quis costurar sob sua túnica um pedaço de pele de raposa, no lugar correspondente ao estômago e ao baço, não só por causa de suas enfermidades como também por causa do frio que o maltratava então, São Francisco lhe disse: "Irmão, se queres colocar-me sob a túnica uma pele de raposa, manda colocar outra por cima, para que todos os homens saibam que estou agasalhado por dentro com outro pedaço". Assim foi feito. Mas, embora isto lhe fosse absolutamente necessário, ele a usou poucas vezes.
CAPÍTULO 63
Como confessou imediatamente a vanglória
que experimentou ao dar uma esmola
Quando atravessava a cidade de Assis, uma pobre velha aproximou-se dele e lhe pediu uma esmola pelo amor de Deus. Ao ouvi-la, deu imediatamente o manto que trazia sobre os ombros e, sem demora, confessou aos que o acompanhavam o pensamento de vanglória que havia experimentado nesta ocasião.
Nós, que vivemos com ele, vimos e ouvimos tantos exemplos semelhantes de sua grande humildade, que não podemos relatá-los todos, nem com palavras nem por escrito.
Além de tudo, São Francisco tinha por princípio não aparecer jamais como um hipócrita diante de Deus. E embora tivesse necessidade de alimentos especiais, por causa de suas enfermidades, julgava-se, todavia, obrigado a dar bom exemplo aos frades e a todos os demais, suportando por isso, com paciência, as necessidades corporais, para suprimir as causas de murmurações e queixas.
CAPÍTULO 64
Como descreveu o estado de perfeita humildade partindo de si mesmo
Como se aproximasse o tempo do capítulo, São Francisco disse a seu companheiro: "Não me parece que eu seja um verdadeiro frade menor, se não estiver nas condições que vou te descrever: eis que os frades me convidam ao capítulo com grande devoção e reverência. Movido por esta piedade eu vou. Em assembléia eles me suplicam que anuncie a palavra de Deus e pregue. Levanto-me e lhes prego o que o Espírito Santo me ensinou. Suponhamos que, terminado o sermão, todos me digam aos gritos: 'Não queremos mais que tu nos dirijas, pois não tens a eloquência que o cargo requer e, além do mais, és demasiado simples e ignorante. Envergonhar-nos-íamos de um superior tão simples e tão desprezível. Não queremos, portanto, chamar-te nosso superior!' E assim me despedissem com grande vergonha e desprezo. Parece-me que não seria perfeito frade menor se não me alegrasse quando eles me humilhassem, me depusessem vergonhosamente e não me quisessem mais como superior do mesmo modo como me alegraria se me honrassem e respeitassem! Nos dois casos o proveito e a utilidade são os mesmos. Se me alegro quando me exaltam e honram por causa do proveito que tiram disto e de sua piedade, o que pode ser um perigo para minha alma, devo tanto mais me alegrar do proveito e salvação de minha alma, quando me desprezam, pois disto advém para mim lucro espiritual certo".
CAPÍTULO 65
Como quis humildemente partir para terras distantes,
como enviou para 'á outros frades
e como os ensinou a irem pelo mundo com devoção e humildade
Ao terminar aquele capítulo, vários frades foram enviados a algumas províncias de além-mar. Ficando só com alguns irmãos, São Francisco lhes disse: "Caríssimos irmãos, eu devo ser um modelo e um exemplo para todos os irmãos. Se eu os envio a regiões longínquas para ai padecerem o árduo trabalho, o temor, a fome, a sede e outras adversidades, é justo, e a santa humildade o exige, que eu parta para alguma província distante. Quando os frades souberem que padeço como eles os mesmos trabalhos e fadigas, suportarão, com mais paciência, as adversidades. Ide, pois, e rogai ao Senhor que me inspire a escolher a província que melhor convier à sua glória, à salvação das almas e que seja um bom exemplo para nossa Ordem".
Com efeito, quando desejava partir para alguma província, o Seráfico Pai tinha por costume rogar primeiro ao Senhor e mandava a seus frades que rezassem para que Ele dirigisse seu coração ao lugar que mais lhe agradasse. Os frades se puseram, portanto, em oração. Terminadas as suas preces, vieram ter com o santo que, ao vê-los, lhes disse com grande alegria interior: "Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e da gloriosa Virgem, sua Mãe, e de todos os santos, escolhi a província da França, que é um pais católico e entre todas as nações católicas do mundo é a que testemunha mais respeito e veneração ao Corpo de Cristo. E isto me causa imensa alegria. Viverei feliz no meio deles".
Na verdade, São Francisco tinha tão grande respeito e devoção para com o Corpo de Cristo, que desejou escrever na- Regra que os frades tivessem grande cuidado e solicitude, nas províncias ou onde residissem, com o Santíssimo Corpo de Deus, e ajudassem os clérigos e padres a depositá-lo em lugares apropriados e convenientes e que, se estes se mostrassem negligentes, o fizessem eles mesmos.
Desejou também escrever na Regra que, se os frades encontrassem o nome do Senhor e as palavras pelas quais seu Corpo é consagrado em algum lugar pouco conveniente, os recolhessem e os depositassem em lugares mais condizentes com o respeito que merecem, honrando assim o Senhor nas palavras que Ele pronunciou. Embora não tivesse mandado escrever na Regra estas prescrições, pois os ministros não viam com bons olhos que os frades fossem incumbidos dessa missão, quis, todavia, manifestar sua vontade sobre este ponto no seu Testamento e escritos.
Em outra ocasião quis enviar alguns frades a todas as províncias para levarem grande quantidade de vasos sagrados preciosos e limpos a fim de colocarem neles a Santa Eucaristia, se a encontrassem em lugares pouco honrosos. Quis igualmente enviar outros frades a todas as províncias com bons e belos ferros de fazer hóstias para que pudessem fazê-las belas e alvas.
Quando o Seráfico Pai escolheu os frades que queria levar consigo, lhes disse: "Em nome do Senhor, ide dois a dois, com humildade e modéstia, observai sobretudo o silêncio desde o amanhecer até à hora da Terça, rogando ao Senhor em vossos corações que vos preserve de palavras inúteis e ociosas. E embora viajando, seja vossa conduta tão humilde e honesta como se estivésseis num eremitério ou em uma cela, porque em qualquer lugar em que nos encontrarmos - mesmo em viagem - nossa cela está em nós mesmos. Com efeito, nosso irmão corpo é uma cela em cujo interior mora - como um ermitão - a nossa alma para orar ao Senhor e meditar nele. Portanto, se a alma não vive tranqüila nesta sua cela, de pouca utilidade será ao religioso a construída pela mão dos homens
Quando chegou a Florença, encontrou ali o Senhor Hugolino, bispo de Óstia, que depois se tornou Papa com o nome de Gregório IX. Ao ser informado pelo próprio São Francisco de que este desejava ir à França, impediu-o, dizendo: "Meu irmão, não quero que vás além dos montes, pois há numerosos prelados que procuram atrair sobre tua Ordem a má vontade da Cúria Romana. Eu mesmo, e os cardeais que são afeiçoados a ti e a tua Ordem só poderemos protegê-la e ajudá-la eficazmente se permaneceres nos limites desta província - A estas ponderações, respondeu São Francisco. "Senhor, será motivo de grande vergonha para mim ter enviado meus frades a terras longínquas, se permanecendo aqui não compartilhar das tribulações que eles vão padecer pelo Senhor!" Mas o Senhor Bispo retrucou-lhe: "Por que enviaste teus frades tão longe para morrerem de fome e padecerem tamanhas tribulações?" Ao que São Francisco respondeu com grande devoção e inspiração profética: "Senhor, julgais porventura que o Senhor enviou meus frades apenas para esta província? Em verdade vos digo, o Senhor escolheu e enviou os frades para proveito espiritual e salvação de todos os homens do mundo. Serão, por conseguinte, acolhidos não somente entre os fiéis, mas também entre os infiéis, ganhando assim numerosas almas para o Senhor".
O Senhor Bispo de Óstia admirou-se sobremodo destas palavras e reconheceu que o santo dizia a verdade. Mas, como o cardeal não queria que ele fosse à França, o santo pai enviou em seu lugar Frei Pacifico, com vários companheiros, ao passo que ele regressou ao vale de Espoleto.
CAPÍTULO 66
Como ensinou aos frades a ganharem pela humildade
e caridade as almas de alguns ladrões
Os ladrões que se homiziavam nos bosques e assaltavam os transeuntes, vinham às vezes pedir pão aos frades em seu eremitério situado nas proximidades do Borgo San Sepolcro. Alguns frades entendiam que não era conveniente dar-lhes esmolas; outros, no entanto, davam-lhes por compaixão e os exortavam à penitência.
Ora, aconteceu que nesta ocasião São Francisco veio ao eremitério e os religiosos perguntaram-lhe se convinha dar esmolas aos salteadores. Ao que o santo respondeu: "Se fizerdes como vos disser, confio no Senhor que ganhareis para Ele as almas destes ladrões. Ide, pois, procurai bom pão e vinho, depositai-os na floresta onde eles se encontram e gritai: 'Irmãos ladrões, vinde a nós, pois somos vossos irmãos e vos trazemos bom vinho e bom pão!' Ao ouvi-lo, aqueles salteadores virão imediatamente. Estendei uma toalha sobre a terra e depositai nela o pão e o vinho e servi-os com alegria e humildade enquanto eles comerem. Depois da refeição anunciai-lhes a palavra do Senhor e fazei este primeiro pedido: que eles vos prometam não saquear os transeuntes nem fazer mal a ninguém. Com efeito, se pedirdes tudo de uma vez eles não vos escutarão, mas, porque sois humildes e caridosos, prometerão imediatamente fazer o que pedis. Por esta boa promessa, levai-lhes outra vez ovos, queijo com pão e vinho e servi-os enquanto comem. Após a refeição, dizei-lhes: 'Por que permaneceis aqui todo o dia a morrer de fome e a suportar tantas adversidades? Por que fazeis, por desejo e ação, tanto mal pelo qual perdereis vossas almas se não vos converterdes ao Senhor? Seria melhor que servísseis ao Senhor que vos dará neste mundo tudo o que for necessário a vosso corpo e, no final, salvará as vossas almas'. Então, por causa da humildade e caridade que tiverdes mostrado, o Senhor suscitará neles o arrependimento e a conversão".
Os frades fizeram exatamente como São Francisco lhes aconselhara. Os ladrões, pela graça e misericórdia de Deus, escutaram-nos e observaram ao pé da letra, ponto por ponto, tudo o que os frades lhes haviam pedido humildemente. Outros, movidos pela humildade e amizade que lhes testemunharam aqueles religiosos, puseram-se a servi-los humildemente, levando sobre os ombros a lenha de que necessitavam; e, finalmente, alguns entraram na Ordem. Outros confessaram seus pecados, fizeram penitência e prometeram, na presença dos frades, viver de seu próprio trabalho e não retornar mais ao gênero de vida que até então haviam levado.
CAPÍTULO 67
Como, atormentado pelo demônio, conheceu que agradava mais a Deus
permanecendo em lugares pobres e humildes que nos palácios
Um dia, São Francisco dirigiu-se a Roma para visitar o Senhor Bispo de Óstia. Tendo passado alguns dias com o prelado, foi igualmente visitar o Senhor Cardeal Leão por quem nutria particular afeição. Era então tempo de inverno, o vento, o frio e as chuvas tornavam muito penosas, senão impraticáveis, as viagens a pé. Por isso o cardeal pediu a São Francisco que ficasse mais alguns dias e, na qualidade de pobre, recebesse dele o sustento diário, como faziam os outros pobres. Falava assim porque sabia que o santo patriarca em qualquer lugar onde se encontrava queria ser recebido como pobre, se bem que o Santo Padre e os cardeais o recebessem com grande piedade e devoção, e o venerassem como a um santo. E acrescentou: "Dar-te-ei aposentos afastados onde poderás rezar e tomar tuas refeições quando quiseres".
Então Frei Ângelo Tancredo, um dos primeiros doze frades e que morava com o cardeal, disse a São Francisco: "Irmão, perto daqui há uma torre bastante ampla, afastada, onde poderás morar como num eremitério".
O lugar agradou a São Francisco e este depois de tê-lo visto foi à presença do cardeal e declarou-lhe: "Senhor, ficarei alguns dias convosco". O cardeal alegrou-se muito. Frei Angelo foi à torre e preparou aposentos para São Francisco e seu companheiro. Como o santo não quisesse descer de seus aposentos enquanto estivesse com o cardeal e nem permitisse a ninguém ir a eles, Frei Angelo decidiu levar-lhe todas as refeições, sua e de seu companheiro, em seu alojamento particular.
Na primeira noite, após a chegada de são Francisco e seu companheiro, como o santo se dispusesse a dormir, os demônios vieram e fustigaram-no impiedosamente. O santo então chamou o seu companheiro e lhe disse: "Irmão, os demônios me espancaram rudemente, desejo, portanto, que fiques perto de mim, pois tenho medo de sentir-me mal". Esta noite o companheiro permaneceu ao lado dele, pois São Francisco tremia como quem tivesse febre. Assim passaram a noite em claro.
São Francisco disse ao seu companheiro: "Por que os demônios me açoitaram e por que lhes deu o Senhor poder sobre mim?» E acrescentou: "Os demônios são a milícia do Senhor, isto é, assim como as autoridades enviam seus agentes para punir os que cometeram uma falta, da mesma maneira o Senhor corrige e castiga os que ama, por meio desta milícia. Com isto quero dizer que os demônios, por sua missão, estão a seu serviço. E pode acontecer que mesmo um religioso modelar peque sem o saber. Quando ele não conhece a sua falta, o diabo o pune para que reflita e examine diligentemente as coisas em que possa ter cometido algum pecado. Nesta vida o Senhor não deixa nada impune, naquele a quem ama ternamente. Pela graça e misericórdia de Deus penso não ter cometido nenhuma falta que não tenha sido apagada pela confissão e pela expiação; mas o Senhor, por sua infinita bondade, concedeu-me a graça de conhecer claramente em minhas orações em que lhe agradei ou desagradei. Embora o Senhor Cardeal me tenha dado esta demonstração de simpatia e o meu corpo necessite de um pouco de alivio, é bem possível que Deus me tenha castigado, enviando-me seus agentes infernais. Meus irmãos, percorrendo o mundo, padecem fome e inúmeras tribulações. Eles e os demais que moram nos eremitérios e míseras choupanas, quando souberem que estou hospedado no palácio do Senhor Cardeal, encontrarão motivos para se queixarem de mim e dirão: 'Nós suportamos todas as adversidades e ele desfruta de suas comodidades!' Ora, sou obrigado a dar sempre o bom exemplo, porque para isto me pôs o Senhor entre eles. Os frades ficarão mais edificados quando permaneço com eles em casinhas pobres e toscas do que quando me hospedo nos palácios. E suportarão com mais paciência suas tribulações quando souberem que também eu as padeço".
Este foi o grande e constante desejo de nosso pai: dar a todos o bom exemplo e afastar dos irmãos os motivos de murmurações.
CAPÍTULO 68
Como repreendeu os frades que queriam seguir o caminho de sua sabedoria
e de sua ciência e lhes predisse a reforma da Ordem
Achava-se São Francisco no capítulo geral celebrado em Santa Maria da Porciúncula, capítulo que se chamou das esteiras, por não haver ali mais acomodações que as construídas com esteiras, ao qual concorreram cinco mil frades. Sucedeu que alguns homens de letras e de ciências foram ter com o Senhor Cardeal de Óstia que se achava presente e lhe disseram: "Senhor, gostaríamos que persuadísseis a Francisco a seguir a opinião dos religiosos entendidos e sábios e a se deixar, de tempos em tempos, governar por eles". Invocaram a Regra de são Bento, a de Santo Agostinho e a de São Bernardo, nas quais se dispõe que se viva a vida regular segundo urna norma estabelecida.
O cardeal relatou tudo a São Francisco, como advertência. O Seráfico Pai, sem nada responder, tomou o cardeal pela mão e o conduziu à presença dos frades reunidos em assembléia capitular, falando-lhes nestes termos, com grande fervor e sob a inspiração do Espírito Santo: "Meus irmãos, meus irmãos, Deus me chamou para caminhar na senda da simplicidade e da humildade e por sua inspiração me revelou o verdadeiro caminho para mim e para os que me quiserem imitar. Por conseguinte, não quero que me citeis a Regra de são Bento ou a de Santo Agostinho ou a de São Bernardo nem qualquer outro modo ou maneira de viver senão os que o Senhor na sua misericórdia se dignou revelar-me e ensinar. O Senhor me manifestou o seu desejo de que eu seja um novo insensato no mundo e não deseja me conduzir por outro caminho que não o desta ciência. Deus vos confundirá por meio de vossa ciência e sabedoria. Confio na 'milícia' do Senhor, pois Ele a enviará para vos punir e, quer queirais, quer não, volvereis para vossa vergonha, ao estado primitivo".
Ao ouvir isto, o cardeal admirou-se grandemente, sem atrever-se a responder nada, e os frades encheram-se de grande e salutar temor.
CAPÍTULO 69
Come previu e predisse que a ciência se tornaria ocasião de ruína para a Ordem
e proibiu a um irmão se dedicar ao estudo da pregação
São Francisco ficava profundamente penalizado quando percebia que se negligenciava a virtude por causa da "vá ciência que ensoberbece", sobretudo se um dos frades não perseverasse na vocação para a qual havia sido primeiramente chamado. Nestas ocasiões costumava falar-lhes nestes termos: "Os irmãos que se deixam arrastar por um desejo exagerado de saber, nos dias das tribulações serão encontrados de mãos vazias. Eis por que preferiria que vos exercitásseis mais na prática da virtude a fim de que, quando chegar este dia, o Senhor esteja convosco na vossa agonia, porque nos dias de tribulações de nada vos servirão os livros que serão atirados pelas janelas e encerrados nos mais escuros esconderijos".
Não falava assim porque o estudo das Sagradas Escrituras lhe desagradasse, mas para os desviar de um zelo excessivo e inútil pelos estudos. Preferia vê-los progredir na mais ardente caridade a vê-los crescer nesta ciência fátua e enganadora.
Pressentia assim que em tempos vindouros, não muito remotos, a ciência "que ensoberbece" acarretaria a ruína da Ordem. Assim, um dia após a sua morte, vendo um de seus companheiros sofregamente atarefado com o estudo da pregação, apareceu-lhe, repreendeu-o e, mais ainda, proibiu que se consagrasse com tão imoderado empenho a tais estudos. E ordenou-lhe que procurasse com afã seguir o caminho da humildade e da simplicidade.
CAPÍTULO 70
Como serão abençoados os que entrarem na Ordem nos dias de tribulações
e os que tiverem sofrido maiores provações que seus precedentes
São Francisco costumava dizer: "Tempo virá em que esta Ordem amada de Deus terá tão má reputação que os frades se envergonharão de se apresentar em público. Mas os que vierem, então, revestir-se do hábito da Ordem, serão conduzidos a ela unicamente pela ação do espírito, pois a carne e o sangue não terão exercido sobre eles nenhuma ação, e eles serão abençoados pelo Senhor. Todavia nenhuma obra meritória será realizada por eles, pois o espírito de caridade que faz agir os santos arrefecer-se-á. Tentações imensas assaltá-los-ão E neste momento que os que superarem estas provas serão considerados melhores que seus antecessores. Infelizes aqueles que, não tendo senão a imagem e a aparência de vida religiosa, felicitam-se a si mesmos e se fiam de sua própria sabedoria e ciência, pois serão encontrados ociosos, isto é, infelizes os que não se exercitarem em obras virtuosas, no caminho da cruz e da penitência, na pura observância do Evangelho que eles são obrigados a seguir pura e simplesmente em virtude de sua profissão. Estes, na verdade, não resistirão firmemente às tentações que o Senhor enviar para provar os eleitos. Os que tiverem sido provados e resistirem às provas receberão a coroa da vida que a impiedade dos condenados os impediu de ganhar".
CAPÍTULO 71
Como respondeu a seu companheiro que lhe perguntou
por que não reprimia os excessos
e abusos que ocorriam na Ordem em sua época
Certo dia, um companheiro de São Francisco lhe falou assim: "Pai, perdoai-me a ousadia, mas eu gostaria de dizer o que muitos já observaram e comentam". E acrescentou: "Sabeis como outrora, pela graça de Deus, a Ordem inteira prosperava na pureza da perfeição evangélica, como todos os frades observavam acima de tudo a santa pobreza, com grande fervor e zelo, nas suas habitações pequeninas e pobres, no seu mobiliário, nos seus livros pouco numerosos e de pouco valor e nas suas vestimentas. Procuravam todos ter o mesmo espírito e o mesmo fervor no cumprimento destas prescrições e de tudo o que concorria para a nossa vocação, profissão e para o bom exemplo que somos obrigados a dar. Homens profundamente apostólicos e evangélicos, eram eles unânimes no amor a Deus e ao próximo. Ora, acontece que hoje em dia, esta pureza e perfeição começam a arrefecer; embora alguns frades procurem justificar este estado de coisas, alegando que grande número de religiosos os impedem de observar rigorosamente estas santas prescrições. Mais ainda, certos frades chegaram a tamanha cegueira que crêem poder edificar e converter com mais eficácia o povo à piedade e à penitência por este modo de vida do que pelo dos primeiros irmãos. Julgam ser esta maneira de viver mais conforme às conveniências e por isso menosprezam, ou têm em pouco ou nenhum valor o caminho da simplicidade e da pobreza que foi o primeiro princípio e fundamento de nossa Ordem. Estamos certos de que tais abusos te desagradam e admiramonos grandemente que, sendo assim, os tolereis e não os corrijais".
Depois de ouvi-lo, o Seráfico Pai retrucou-lhe: "Que o Senhor te perdoe, irmão, o ousares opor-te a mim e me envolveres nos teus negócios que não são de meu ofício nem de minhas atribuições. Em verdade te digo, durante o tempo em que exerci o cargo de superior dos irmãos, eles permaneceram fiéis à sua vocação e profissão e, embora desde o começo de minha conversão tenha estado sempre doente, minha humilde solicitude, meu exemplo e minhas exortações os satisfaziam. Mais tarde, porém, vi que o Senhor multiplicava o número dos frades e que, por tibieza e falta de zelo, estes se afastaram do caminho reto e seguro que haviam trilhado até então. Caminhavam pelo caminho largo que conduz à morte, sem levar em consideração sua vocação e profissão nem o bom exemplo que estavam obrigados a dar. Apesar de minhas prédicas, advertências e bom exemplo que continuo a lhes dar, não querem deixar o caminho perigoso e mortal por que enveredaram.
Eis por que confiei o cargo de superior da Ordem e a sua direção ao Senhor e aos ministros. Se bem que na época em que resignei o cargo de superior da Ordem me tenha escusado diante deles, no capítulo geral, de tomar conta dos irmãos por causa de minhas enfermidades, se eles quisessem agora marchar sob mi direção, não aceitaria, pois desejo, para sua salvação e para seu bem, que tenham até a minha morte outro ministro. Com efeito, quando um súdito bom e fiel conhece a vontade de seu superior e lhe obedece, este se preocupa pouco com ele. Ademais me alegraria tanto com o progresso espiritual dos irmãos, o que redundaria em proveito seu e meu, que mesmo se estivesse prostrado no leito por causa de minhas enfermidades não hesitaria em atendê-los.
Meu ofício de superior é agora um cargo exclusivamente espiritual e consiste em dominar os vícios e em corrigi-los e emendá-los espiritualmente. Todavia, se não puder corrigi-los e emendá-los com minhas exortações, observações e exemplo, não me quero tornar um carrasco que pune e fustiga como os poderosos deste mundo.
Pois tenho confiança no Senhor que os inimigos invisíveis, que são seus agentes para punir neste mundo e no outro, vingar-se-ão dos que transgrediram as ordens de Deus e a promessa de sua profissão. Serão, para sua vergonha e confusão, castigados pelos homens deste mundo, e assim retornarão ao estado de sua primeira vocação. No entanto, até o dia de minha morte não cessarei de ensinar aos frades, com meu exemplo e minhas ações, a seguir o caminho que o Senhor me revelou a fim de que não tenham desculpas diante d'Ele e eu não seja obrigado, mais tarde, a prestar contas a Deus".
INTERPOLAÇÂO
Transcrevem-se aqui as palavras que Frei Leão, companheiro e confessor de São Francisco, escreveu a Frei Conrado de Offida, dizendo-lhe que as recolhera do próprio São Francisco. Frei Conrado as transcreveu em São Damião, próximo a Assis.
Estando o Seráfico Pai em oração no coro da igreja de Santa Maria dos Anjos, erguia as mãos aos céus e suplicava a Cristo tivesse compaixão do povo nos dias das grandes tribulações que haveriam de vir. E o Senhor respondeu-lhe: "Francisco, se queres que eu me compadeça do povo cristão, faze que tua Ordem permaneça no estado em que a estabeleci, pois não tenho senão a ela em todo o mundo. Por amor de ti e da tua Ordem, prometeste que não advirão tribulações sobre o mundo, mas te asseguro que os que se afastam do caminho em que os pus provocam de tal modo a minha cólera que serei obrigado a voltar-me contra eles. Chamarei os demônios e dar-lhes-ei todo o poder que eles desejam. Causam tanto escândalo, com seu mau exemplo, a si mesmos e ao mundo que ninguém terá coragem de usar teu hábito a não ser nos bosques. Quando o mundo perder a fé, nenhuma luz subsistirá além de tua Ordem, pois os escolhi para serem a luz do mundo".
Ao ouvi-lo, o Seráfico Pai perguntou-lhe: "De que viverão os meus frades, se vivem nos bosques?" E Cristo respondeu-lhe: "Eu os alimentarei, como alimentei o povo de Israel, com o maná do deserto, e eles tornarão ao estado primitivo em que foi fundada e começou a Ordem".
CAPÍTULO 72
Como as almas que parecem convertidas pela ciência e pregação de certos frades,
e foram na verdade pelas preces dos irmãos humildes e simples
O Seráfico Pai combatia nos irmãos a avidez do saber e dos livros, mas desejava, e não se cansava de recomendar-lhes em suas orações, que se aplicassem em alcançar a santa humildade e em seguir a simplicidade, a santa oração e a Senhora Pobreza sobre as quais os santos primeiros frades edificaram a Ordem. E lhes assegurava ser este o caminho mais seguro para sua salvação e edificação do próximo, pois Cristo, a quem fomos chamados a imitar, não nos deu senão este único caminho e nos ensinou a trilhá-lo, com palavras e exemplos.
Com efeito, pressentindo os tempos futuros, o Seráfico Pai sabia, por inspiração do Espírito Santo, e o repetia muitas vezes aos frades, que muitos dentre eles, no intuito de edificar o próximo, abandonariam sua vocação, isto é, a santa humildade, a simplicidade, a oração, a devoção, bem como a nossa Senhora Pobreza. Acontecer-lhes-á pensar que estavam mais instruídos, mais cheios de fervor, mais inflamados de amor e mais iluminados no conhecimento desse mesmo Deus, por causa de sua compreensão das Santas Escrituras, embora dentro de si mesmos estivessem vazios e frios. Não teriam assim possibilidade de tornar à sua vocação, pois com estudos falsos e inúteis haviam perdido o tempo em que deviam viver segundo a sua vocação. "E tenho medo que as graças que receberam lhes sejam retiradas, porque negligenciaram completamente a missão que lhes foi confiada, isto é, de conservarem-se firmes na sua vocação e segui-la".
E acrescentava: "Muitos frades põem todo o seu zelo e todos os seus cuidados na aquisição da ciência, negligenciando sua santa vocação e afastando-se tanto com o corpo como com a mente da senda da humildade e da santa devoção. Assim, quando pregam ao povo e sentem que alguns ficaram edificados e convertidos à penitência, inflamam-se e se envaidecem de sua obra e do proveito que outros alcançaram, como se fossem seus. Mas antes pregaram para sua própria condenação sem nada alcançar, pois não foram senão instrumentos de que seu Deus se serviu para os grandes efeitos de sua divina misericórdia. Os que eles julgam ter edificado e convertido à penitência por seu saber e pregações foram tocados e convertidos pelo Senhor, por causa das orações e das preces dos irmãos pobres, humildes e simples, se bem que estes santos irmãos ignorem o que operaram suas orações. Com efeito, a vontade do Senhor é que eles não o saibam para que não se orgulhem disto.
Estes irmãos são os meus cavaleiros da Távola Redonda, que se ocultam nos lugares desertos e retirados para se aplicarem diligentemente à prece e à meditação. Choram seus próprios pecados e os dos outros, vivem simplesmente e se conduzem com humildade; sua santidade é conhecida de Deus e ignorada dos homens. Quando suas almas forem apresentadas pelos anjos ao Senhor, este mostrar-lhes-á o fruto e a recompensa de seus trabalhos, isto é, as numerosas almas que foram salvas por seu exemplo, preces e lágrimas, e lhes dirá: 'Meus amados filhos, vede quantas almas foram salvas por vossas orações, vossas lágrimas e vossos exemplos e, porque permanecestes fiéis nas pequenas coisas, eu vos constituirei sobre muitas. Os outros operaram por palavras, sabedoria e ciência, mas eu operei frutos de salvação por vossos méritos. Por conseguinte, recebei a recompensa de vossos trabalhos e o fruto de vossos merecimentos que é o reino eterno que haveis arrebatado por humildade e simplicidade à força de vossas preces e lágrimas'.
Assim, levando consigo os seus feixes, isto é, o fruto e os méritos da santa humildade e de sua simplicidade, entrarão alegres e exultantes na glória do Senhor. Mas os que não se aplicaram a outra coisa senão a adquirir a ciência, na ilusão de mostrar aos outros o caminho da salvação, sem nada terem feito para si mesmos, encontrar-se-ão despidos e de mãos vazias diante do tribunal de Cristo, sem ostentarem outros feixes além de sua confusão, vergonha e castigo.
Então, a verdade da santa humildade, simplicidade, santa oração e santa pobreza, que é a nossa vocação, será exaltada e glorificada: esta mesma verdade que os frades, envaidecidos de sua ciência, arrancaram de suas vidas pelas palavras vás de sua falsa sabedoria. Afirmaram no seu orgulho que esta verdade era falsidade, e, como cegos, perseguiram cruelmente os que trilharam a senda da verdade. Então o erro e a falsidade das crenças que praticavam e que pregavam como verdade, e nas quais precipitavam muitas almas presas nos laços de sua cegueira, se encontrarão na aflição, na confusão e na vergonha. Eles próprios e suas opiniões tenebrosas serão lançados nas trevas exteriores com os espíritos das trevas".
O Seráfico Pai comentava com freqüência estas palavras: "A mulher estéril conceberá muitas vezes, a mãe de muitos filhos tornar-se-á infecunda. A mulher estéril é o bom religioso, simples, humilde, pobre, desprezado, que edifica o próximo com suas santas orações e suas virtudes e que gera com dolorosos gemidos".
Dizia sempre estas palavras na presença dos ministros e dos outros frades e, especialmente, no capítulo geral.
CAPÍTULO 73
Como desejava e ensinava que os superiores e pregadores
deviam exercitar-se nas orações e na prática da humildade
Fiel servidor e perfeito imitador de Cristo, Francisco sentia que estava completamente transformado em Cristo pela virtude da santa humildade e desejava que esta mesma virtude resplandecesse em seus frades acima de todas as demais. E não cessava de exortar afetuosamente, pela palavra e pelo exemplo, a amar, adquirir e conservar esta virtude e exortava acima de tudo os ministros e pregadores e os estimulava a exercerem humildes tarefas.
Recomendava-lhes não menosprezar a piedosa oração, a mendicância de porta em porta, o trabalho manual e outras tarefas que os frades realizavam, sob o pretexto de que os impediam seu cargo de superior ou suas atividades de pregador, isto para dar o bom exemplo e para o bem de suas almas e da do próximo. "Os frades, vossos súditos, dizia ele, ficarão mais edificados quando virem que seus ministros e seus pregadores se dedicam de boa vontade à oração e se ocupam de tarefas humildes e vis. Caso contrário, não podereis exortar os irmãos a fazer tais coisas sem vergonha, prejuízo e condenação de vós mesmos. Convém, portanto, a exemplo de Cristo, primeiro agir e depois ensinar, ou antes agir e ensinar simultaneamente".
CAPÍTULO 74
Como, humilhando-se, quis ensinar aos frades
quando ele era servo de Deus e quando não
Certo dia São Francisco reuniu vários frades e lhes disse: "Roguei ao Senhor que se dignasse mostrarme quando sou seu servo e quando não o sou, pois não desejaria ser outra coisa senão seu servidor. Então o boníssimo Senhor se dignou responder-me: 'Es realmente meu servo quando ages e pensas santamente'. Por isso vos chamei, meus caríssimos irmãos, e vos confiei isto para que possa envergonhar-me diante de vós quando virdes que eu falhei em um ou em todos os pontos que declarei aqui".
CAPÍTULO 75
Como Francisco expressa a vontade de seus frades se ocuparem
com trabalho manual de vez em quando
O Seráfico Pai afirmava que os frades indolentes, que não se aplicavam a algum trabalho com humildade e simplicidade, serão rejeitados prontamente pela boca do Senhor. Por isso ninguém podia aparecer de mãos vazias ou ocioso diante do santo sem que este o repreendesse severamente. Ele mesmo, modelo de todas as perfeições, trabalhava humildemente com suas próprias mãos e não permitia que se desperdiçasse tempo, preciosíssimo dom de Deus.
E afirmava com freqüência: "Desejo que todos os meus frades trabalhem, aplicando-se humildemente a bons trabalhos, a fim de serem menos onerosos aos homens e para evitar que o coração ou a língua divaguem na ociosidade. Que os que não sabem trabalhar aprendam!"
QUARTA PARTE
Do zelo de Francisco pela observância da Regra e pelo bem da Ordem
CAPÍTULO 76
Como louvava a observância da Regra e desejava que os frades
a conhecessem e morressem professando-a
Perfeito zelador da observância do santo Evangelho, São Francisco desejava ardorosamente que todos observassem nossa Regra que, no seu entender, era o livro da vida, a. medula do Evangelho, e concedeu uma bênção especial aos que a cumprissem fielmente.
Dizia, com efeito, a seus discípulos que a Regra que professamos é o livro da vida, a esperança da salvação, a escada da glória, a medula do Evangelho, a senda da cruz, o estado da perfeição, a chave do paraíso e o pacto da eterna aliança. Desejava que a compreendessem e a conhecessem e que nas conversações discutissem sobre ela, a fim de reanimar os desencorajados, e que para trazer à memória os votos proferidos meditasse cada um sobre ela, atenta e freqüentemente.
Ensinou-lhes também que a tivessem sempre diante dos olhos como testemunho da vida que deviam levar e de sua observância. Mais ainda, ensinava e aconselhava seus frades a conservarem-na consigo até a morte.
CAPÍTULO 77
Como um santo Irmão leigo foi martirizado
com a Regra na mão
Certo irmão leigo, que acreditamos sem dúvida alguma ter sido admitido no coro dos mártires, não esqueceu este santo ensinamento e as admoestações de nosso santo pai. Tendo sido enviado aos infiéis, pois consumia-o o desejo do martírio, foi finalmente conduzido ao suplicio pelos sarracenos. Chegando ao lugar da execução, ajoelhou-se humildemente e, segurando a Regra com as duas mãos, disse com grande ardor a seu companheiro: "Caríssimo irmão, confesso-me culpado, na presença da divina majestade e diante de ti, de tudo que fiz contra nossa Regra". Apenas terminada esta breve e tocante confissão, a espada do verdugo pôs fim à sua existência e ele obteve a coroa do martírio. Este religioso entrou na Ordem quase criança; por isso suportava com ingente sacrifício os jejuns prescritos pela Regra.
CAPÍTULO 78
Como desejava que a Ordem permanecesse sempre sob a proteção
e a disciplina da Igreja
São Francisco costumava dizer: "Um dia terei de ir-me deste mundo, por isso confio a Ordem dos Frades Menores à santa Igreja Romana. Os malévolos serão amedrontados e repreendidos pelo azorrague de sua autoridade e os filhos de Deus fruirão por toda parte de inteira liberdade, para ganhar a salvação eterna. Que os filhos conheçam os doces benefícios de sua mãe e que sigam as suas pegadas veneráveis com particular devoção.
Sob esta proteção nenhum mal advirá à Ordem. Nenhum filho de Belial atravessará impunemente a vinha do Senhor. Pois até mesmo nossa santa Mãe (a Igreja) desejará imitar a glória de nossa pobreza e não permitirá que nossos votos de humildade sejam obscurecidos pela sombra do orgulho. Conservará intatos, entre nós, os bens da caridade e da paz e repreenderá severamente os que se afastarem de nossa forma de vida.
A santa observância da pureza evangélica será sempre florescente e a santa Igreja não permitirá que o perfume de nossa boa fama se perca, nem por urna hora sequer".
CAPÍTULO 79
Dos quatro privilégios que o Senhor concedeu à Ordem,
os quais foram revelados a São Francisco
O Seráfico Pai afirmava ter obtido do Senhor os quatro seguintes privilégios que lhe haviam sido revelados por um anjo:
A Ordem e o estado de frade menor não desapareceriam até o dia do juízo final; ninguém que perseguisse de modo proposital e deliberado a Ordem viveria longo tempo; ninguém que deliberadamente quisesse viver mal permaneceria na Ordem por muito tempo; quem amasse a Ordem de todo o coração, embora pecador, obteria a mi sericórdia final.
CAPÍTULO 80
Das qualidades que julgava necessárias ao ministro geral
e a seus companheiros
O zelo pela perfeição da Ordem era tão grande e a perfeita observância da Regra lhe parecia tão importante, que indagava sempre a si mesmo quem, após a sua morte, conviria para governar toda a Ordem e mantê-la, com a ajuda de Deus, na perfeita observância da Regra. Não encontrava ninguém idôneo para isto.
Ora, pouco antes de sua morte, certo religioso lhe disse: "Pai, brevemente irás para o Senhor e esta família que te seguiu vai ficar neste vale de lágrimas. Indica pois, se tu o conheces na Ordem, aquele em quem teu espírito possa confiar e seja digno de ocupar o cargo de ministro geral".
O Seráfico Pai respondeu-lhe, acentuando cada palavra com um suspiro: "Meu filho, não vislumbro ninguém que seja capaz de ser o chefe de um exército tão grande e tão diverso, o pastor de um rebanho tão vasto e tão espalhado. Mas vou te descrever como deverá ser o chefe e o pastor desta família.
Tal homem deverá ter uma vida muito recatada, grande discrição, uma excelente reputação; não devera' ter nenhuma afeição pessoal para evitar escândalo; deverá ser muito inclinado à oração e, no entanto, distribuirá seu tempo entre o cuidado de sua alma e o de seu rebanho. Ao romper d'alva deverá celebrar, antes de tudo, o santíssimo sacrifício da missa e, por uma longa oração, recomendar-se-á fervorosamente, com seu rebanho, à proteção divina. Após a oração, postar-se-á no meio de seus frades para ai escutar suas petições. Responderá a todos e proverá às necessidades de todos com caridade, paciência e bondade.
Não deverá fazer acepção de pessoas, ocupar-se-á mais dos simples e Ignorantes do que dos sábios e prudentes. Se o dom da ciência lhe foi concedido deverá, pelo seu modo de agir, ser Igualmente modelo de piedade, simplicidade, paciência e humildade. Cultivará a virtude tanto em si mesmo como nos outros: exercitar-se-á praticando-a continuamente e estimulará os outros, mais com exemplos que com palavras, a praticá-la. odeie o dinheiro, grande corruptor de nosso estado e de nossa perfeição. Cabeça e exemplo que todos devem imitar, não disporá jamais de cofres. O hábito e alguns opúsculos lhe sejam suficientes, mas para atender aos outros disponha do necessário para escrever, incluindo o selo. Não acumule livros, e não se absorva demasiado no estudo, a fim de não roubar ao seu ministério o tempo consagrado a essas atividades. Console piedosamente os aflitos. Seja o último consolo em suas tribulações, a fim de que os enfermos não sejam tomados de desespero, quando não puderem conseguir remédios para sua saúde. Humilhe-se, ele próprio, e abandone um pouco seus direitos para domar os mais violentos e levá-los à doçura de coração. Dê sempre testemunho de imensa indulgência com aqueles que fugiram da Ordem como ovelhas tresmalhadas e não lhes negue jamais a sua misericórdia, considerando quão fortes devem ter sido as tentações que os impeliram e que talvez ele tivesse caído num abismo mais profundo se o Senhor tivesse permitido que fosse exposto a tais tentações. Desejo que, como vigário de Cristo, seja honrado por todos, com respeito e devoção, e todos o ajudem em tudo, segundo suas necessidades e o que convém a nosso estado.
Não deve, todavia, rejubilar-se com as honrarias nem comprazer-se mais com as deferências do que com as injúrias. Estas honras e deferências não mudem em nada seu modo de vida a não ser para torná-lo melhor e mais perfeito. Se por acaso tiver necessidade de um alimento mais delicado, que não o tome nunca às ocultas, mas em público, a fim de que os doentes e os de frágil compleição não tenham vergonha de fazer o mesmo, quando se virem obrigados a isso por causa de suas enfermidades e achaques.
Convém-lhe sondar na medida do possível o interior dos corações a fim de pesar e distinguir a verdade nas intenções ocultas de cada um. Tenha por duvidosas todas as acusações até que a verdade comece a se revelar depois de conscienciosas investigações. Não dê ouvido a tagarelas e suspeite de suas bisbilhotices e acusações. Não acredite neles facilmente.
Enfim, que, sob pretexto de conservar seu cargo ou honrarias, não aja contra a justiça, a eqüidade, nem transija com os que violam nossa santa Regra. Tenha cuidado para nunca perder uma alma por excesso de rigor ou de autoridade; a tibieza não resulte de uma excessiva condescendência, nem a disciplina seja quebrada por demasiada indulgência. Seja temido por todos e amado pelos que o temem. Considere e exerça sempre o oficio de superior mais como um serviço do que como uma honra. Tenha como colaboradores bons companheiros de comprovada honestidade. Seja severo contra os prazeres, corajoso nas dificuldades, piedoso e complacente com os culpados, demonstrando por todos igual afeição. Não receba nada em troca de seu trabalho além do que lhe for necessário ao corpo. Não almeje a nada além do louvor de Deus e do progresso de nossa Ordem, o bem da sua alma e a salvação de todos os irmãos. Seja, por conseguinte, amável para com todos, acolha com santa alegria todos os que se dirigirem a ele e se mostre para com eles, pela pureza e simplicidade, modelo e exemplo de observância do Evangelho, conforme a Regra que professa. Eis o que deve ser o ministro geral desta Ordem e de seus companheiros".
CAPÍTULO 81
Como o Senhor lhe falou, por estar ele, Francisco,
multo aflito por causa dos frades que se afastavam da perfeição evangélica
Francisco, zeloso defensor da perfeição da Ordem, entristecia-se profundamente quando percebia ou constatava alguma imperfeição. Assim, notando que certos frades davam maus exemplos à Ordem e que alguns já começavam mesmo a se afastar de sua profissão, experimentou no seu coração intensíssima dor, e, um dia, enquanto orava, suplicou ao Senhor: "Senhor, recomendo-te a família que me deste".
Imediatamente o Senhor lhe disse: "Homenzinho simples e ignorante, dize-me por que te afliges tanto quando um frade sai de tua Ordem ou quando não segue o caminho que te indiquei? Ademais, dize-me quem estabeleceu a Ordem dos Frades? Quem arrasta o homem à penitência? Quem lhe dá a coragem de nela perseverar? Não sou eu? Não te escolhi e coloquei à frente de minha família por seres tu um homem instruído e eloqüente, pois não quero que tu, nem os que forem verdadeiros frades e fiéis observantes da Regra que te dei, sigam o caminho da ciência e da eloquência. Escolhi-te, simples e ignorante, para que tu, e os outros, saibam que velarei por meu rebanho. Escolhi-te como modelo para que teus frades realizem por teu exemplo as obras que realizei em ti. Os que seguirem o caminho que te indiquei me possuem e me possuirão plenamente, mas aos que preferirem seguir outro caminho, ser-lhes-á tirado o que possuem. Eis por que te exorto a não te afligires tanto, mas a agir como tens agido, a trabalhar como tens trabalhado, pois estabeleci a Ordem dos Frades no amor eterno. Sabe que a amo tanto, que mesmo se algum frade 'retornar ao seu vômito' e morrer fora da Ordem, enviarei outro que, em seu lugar, tomará a coroa e, se por acaso não tiver nascido ainda, fá-lo-ei nascer. E para que saibas quão grande é o meu amor e a minha complacência para com ela declaro-te que ainda que restassem apenas três frades esta será sempre a minha Ordem e eu não a abandonarei jamais, por toda a eternidade".
Ao ouvir estas palavras o seu espírito encheu-se de suave e maravilhosa consolação. E embora, por causa do grande empenho que tinha em fazer a Ordem progredir, não pudesse deixar de muito se afligir quando percebia alguma imperfeição nos frades que poderia constituir motivo de mau exemplo ou de escândalo, depois que o Senhor o reconfortou, vinham-lhe sempre a memória estas palavras do Salmo: "'Jurei observar e cumprir a justiça do Senhor', como também observar a Regra que o Senhor me deu, a mim e a todos os que me quiserem imitar. Todos os frades estão, assim como eu, obrigados a observá-la. No presente, depois que renunciei à direção dos frades em virtude de minhas enfermidades e de outras causas razoáveis, não estou obrigado a outra coisa senão rezar pela Ordem e dar o bom exemplo aos frades. Com efeito, o Senhor me revelou e eu sei com certeza que, se as muitas enfermidades não me obrigassem a renunciar ao cargo que tinha à frente da Ordem, a maior ajuda que poderia dar-lhe seria rezar para que o Senhor a governe, proteja e guarde. Por isso estou obrigado para com o Senhor a prestar-lhe contas se algum frade se perder por meu mau exemplo".
Estas eram as palavras que repetia a si mesmo para tranqüilizar o seu espírito e que expunha aos frades com freqüência, em conversa ou no capítulo.
Se acontecia vir algum frade dizer-lhe que deveria ocupar-se do governo da Ordem, respondia-lhe com estas palavras: "Os frades têm a Regra que prometeram observar, e não podem eximir-se de observá-la, pois quando suplicaram ao Senhor me fizesse seu superior, jurei diante deles observá-la da mesma maneira. Assim, se bem que os frades saibam o que devem fazer como também o que devem evitar, cumpre-me ser um exemplo para eles, pois para isto lhes fui dado na vida e depois da morte".
CAPÍTULO 82
Do zelo particular que tinha por Santa Maria da Porciúncula
e das prescrições que fez contra as palavras ociosas
Enquanto viveu, o Seráfico Pai teve sempre particular e excepcional empenho em manter a perfeição da vida religiosa em Santa Maria da Porciúncula, cabeça e mãe de toda a Ordem, de preferência às outras casas.
Desejava que ela fosse modelo e exemplo de humildade e de todas as perfeições evangélicas para todas as outras casas e que os frades que aí residissem fossem em todas as suas ações mais atentos à perfeita observância da Regra que os outros.
Assim, um dia, para evitar a ociosidade, que é a raiz de todos os males, máx:ime na vida religiosa, ordenou que todos os dias, após as refeições, os frades se dedicassem a qualquer trabalho, temeroso de que perdessem, por palavras inúteis ou ociosas, a que o homem é particularmente inclinado após as refeições, os frutos espirituais que houvessem lucrado na oração.
Em outra ocasião ordenou e prescreveu rigorosamente que, se um frade, no lazer e no trabalho, viesse a proferir palavras ociosas, fosse obrigado a dizer um pai-nosso, louvando ao Senhor tanto no começo como no fim.
Se, consciente de sua falta, se tivesse acusado antes, devia dizer, para salvação de sua alma, o pai-nosso com os louvores ao Senhor, como já foi dito acima. E se, antes de confessar sua culpa, houvesse sido repreendido por um irmão, deveria rezar o pai-nosso, da maneira indicada, pela alma deste irmão.
Mas se, tendo sido repreendido, recusasse dizer o pai-nosso, ficaria obrigado a rezar dois na forma anterior, pela alma do irmão que o havia repreendido. Se, conforme testemunho deste irmão ou de outro, ficasse provado que ele proferiu palavras ociosas, diria também os louvores a Deus, no começo e no fim da oração, em voz alta e de modo a ser ouvido por todos os frades presentes. Enquanto estiver falando, os frades presentes devem ficar calados e escutá-lo. Se acontecer que um frade, tendo ouvido outro dizer palavras ociosas, não o repreendeu, estará da mesma maneira obrigado a recitar um pai-nosso com os louvores pela alma deste frade.
Quando um frade entrar numa cela, casa ou qualquer lugar onde se encontrar um ou mais irmãos deverá imediatamente bendizer e louvar piedosamente ao Senhor. O Seráfico Pai tinha grande cuidado em dizer sempre os louvores ao Senhor e ensinava os outros frades a dizê-los com unção e piedade.
CAPÍTULO 83
Como exortou os frades a jamais abandonarem
Santa Maria dos Anjos
Embora o Seráfico Pai soubesse que o reino dos céus é estabelecido em todos os lugares da terra e acreditasse firmemente que a graça divina pode ser concedida aos eleitos onde quer que se encontrem, sabia, no entanto, por experiência, que Santa Maria dos Anjos havia sido contemplada com bênçãos especiais e recebia com mais freqüência a visita de espíritos celestiais.
Por isso recomendava sempre aos frades: "Meus filhos, tende cuidado de jamais abandonar este lugar. Se vos expulsarem por uma porta, entrai pela outra. Este lugar é sagrado, morada de Cristo e da Virgem Maria, sua bendita Mãe. Aqui, quando éramos apenas um pequeno número, o bom Deus nos multiplicou. Aqui Ele iluminou a alma destes pequeninos com a luz de sua sabedoria, abrasou a nossa alma do fogo de seu amor. Finalmente, aqui, os que rezarem com o coração sincero obterão tudo o que pedirem, e as ofensas que lhes forem feitas serão duramente punidas. Por isto, meus filhos, tende este lugar como digno de toda honra e de todo vosso respeito, como habitação temporária de Deus, particularmente amada por Ele e sua santa Mãe. E, aqui, de todo vosso coração, glorificai a Deus Pai e a seu Filho o Senhor Jesus na unidade do Espírito Santo, por meio de louvores e ação de graças".
CAPÍTULO 84
Dos favores que o Senhor concedeu a Santa Maria dos Anjos
Este “santo dos santos”, lugar entre os lugares, é considerado por isso mesmo digno das maiores honras. Célebre por seu sobrenome, o é ainda mais pelo seu nome, e seu qualificativo é presságio de bênção.
A poderosa munificência dos anjos o circunda de luz. Costuma-se passar ai a noite a cantar hinos em alta voz. Francisco a reconstruiu, quando ela foi totalmente destruída. Esta foi, com efeito, uma das três igrejas que o nosso pai restaurou pessoalmente. Escolheu-a quando domava sua carne com cilício, e pela mortificação forçou o seu corpo a submeter-se ao espírito.
Neste tempo nasceu a Ordem dos Frades Menores, multidão de homens que, então, começou a seguir o exemplo do Seráfico Pai. Clara, esposa de Cristo, recebeu nesta igreja a tonsura, despojando-se das pompas do mundo para seguir a Cristo.
Aqui, para Cristo, a Santa Virgem Maria gerou os frades e as Pobres Damas, e, por meio deles, deu Cristo ao mundo. Aqui, a estrada larga do mundo antigo tornou-se estreita e a coragem dos que foram chamados tornou-se maior.
Aqui foi composta a Regra, a santa pobreza foi reabilitada, a vaidade humilhada e a cruz alçada às alturas. Se algumas vezes o Seráfico Pai sentiu-se conturbado e aflito, neste lugar reanimou-se, e o seu espírito recuperou a paz interior. Aqui desaparece toda a dúvida. Por fim, aqui se concede aos homens tudo que o pai pediu por eles.
QUINTA PARTE
Do zelo testemunhado por São Francisco pela perfeição dos frades
CAPÍTULO 85
Como descreveu o frade perfeito
Tendo o Seráfico Pai, de algum modo, transformado os frades em santos pelo ardor do seu amor e pelo zelo fervoroso que nutria pela perfeição, examinava em si mesmo as qualidades e as virtudes de que deveria ser dotado o bom frade menor. E dizia que seria um bom frade menor o que reunisse em si a vida e os méritos destes santos frades: "A fé de Frei Bernardo, que a tinha tão perfeita quanto seu amor à pobreza; a simplicidade e a pureza de Frei Angelo que foi o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem e foi dotado de grande cortesia e gentileza; a distinção e o bom senso natural de Frei Masseo com sua bela e piedosa eloquência; o espírito elevado à contemplação que Frei Gil teve em toda perfeição; a prece virtuosa e constante de Frei Rufino que rezava constantemente, sem parar: fosse dormindo ou trabalhando seu espírito estava sempre com o Senhor; a paciência de Frei Junípero que alcançou um estado de paciência perfeita, porque tinha constantemente na consciência a evidente realidade de sua própria vileza e um ardente desejo de imitar a Cristo, seguindo a via da cruz; o vigor corporal e espiritual de Frei João das laudes que no seu tempo suplantava em força corporal os outros homens; a caridade de Frei Rogério cuja vida inteira e a conversão foram inspiradas por uma fervente caridade; enfim, a inquietação de Frei Lúcio que estava sempre muito preocupado, não querendo ficar em um mesmo lugar mais que um mês, pois quando começava a gostar de um lugar punha-se de novo a caminho, dizendo: 'Não temos morada aqui, mas no céu"'.
CAPÍTULO 86
Como descreveu os olhares impudicos a fim de exortar os frades à caridade
Entre todas as virtudes que São Francisco amava e desejava encontrar entre seus frades, depois da santa humildade, que considerava a virtude por excelência da santidade, estimava sobretudo a bela e pura castidade. Desejando ensinar aos frades a terem olhares reservados, descrevia-lhes habitualmente os olhares impudicos por esta parábola: "Certo rei, homem de grande devoção e mui poderoso, enviou sucessivamente dois mensageiros à rainha. O primeiro foi e relatou simplesmente sua mensagem sem nada mais dizer à rainha, pois havia sabiamente contido o seu olhar no intimo de seu coração, não pousando de modo algum sobre a pessoa da rainha olhares indiscretos; o outro foi e, após algumas respostas, descreveu longamente a beleza da soberana. 'Em verdade, senhor, disse ele, eu vi a mais bela das mulheres. Feliz o homem que a possui'. Ouvindo isto, o rei retrucou-lhe: 'Servo mau, lançaste olhares impudicos sobre a minha mulher. E evidente que desejaste possuir o que viste'.
E, chamando à sua presença o primeiro mensageiro, perguntou-lhe: 'Que te parece a rainha?' 'Parece-me dotada de grande bondade e distinção, respondeu sabiamente, pois me ouviu com agrado e paciência'. O rei disse então: 'Não é realmente encantadora?' 'Senhor, a vós compete averiguar isto. A mim competia apenas desincumbir-me da missão que me confiastes'.
Ao ouvi-lo, o rei proferiu estas palavras: 'Tens os olhos castos, és mais casto ainda de corpo, entra nos meus aposentos e compartilha de meus bens. Quanto ao impudico, que saia imediatamente de meu palácio, para que não venha a profanar minha câmara nupcial"'. E concluía: "Quem não temeria lançar um olhar indiscreto sobre uma esposa de Cristo?"
CAPÍTULO 87
Das três máximas que legou aos frades
para que perseverassem na perfeição
Um dia, estando doente do estômago, fez tamanho esforço para vomitar que teve uma hemorragia, que durou a noite toda. De tal modo ficou fraco e abatido que seus companheiros, supondo ter chegado a hora de sua morte, perguntaram-lhe com grande dor e efusão de lágrimas: "Pai, que faremos nós sem ti? A quem deixas os teus órfãos? Tens sido para nós um pai e uma mãe, engendrando-nos e criando-nos para Cristo. Tu foste nosso guia e nosso pastor, nosso mestre e nosso censor, ensinando-nos e corrigindo-nos, mais por exemplos do que por palavras. Aonde iremos nós, ovelhas sem pastor, órfãos sem pai, ignorantes e simples sem guia? Onde iremos encontrar a glória da pobreza, louvor da simplicidade, honra de nossa humilde condição? Quem nos mostrará, a nós pobres cegos, o caminh6 da verdade? Onde estará a boca que nos falará, a lingua que nos aconselhará? Onde estará tua alma fervorosa que nos dirigirá no caminho da cruz e nos fortalecerá na perfeição evangélica? Onde estarás para que recorramos a ti, luz de nossos olhos, para que te busquemos, consolador de nossas almas? Vais nos deixar, pai, aproxima-se a hora de tua morte! Vais, pois, nos deixar tristes, desolados e cheios de amargura! Eis que é chegado o dia sobre o qual não ousávamos nem pensar! E não é para menos, pois tu tens sido para nós uma luz perene e tuas palavras, como tochas ardentes, nos iluminam sem cessar na estrada da perfeição evangélica, do amor e da imitação do dulcíssimo Crucificado.
Ao menos, pai, dá-nos a tua bênção, a nós e aos outros frades, filhos que engendraste em Cristo, e deixanos a expressão de tua última vontade, para que os frades a tenham sempre na memória e possam dizer: 'Eis as palavras que nosso pai deixou a seus frades e seus filhos na hora de sua morte"'.
Então o Seráfico Pai dirigiu o olhar paternal a seus filhos e lhes disse: "Trazei à minha presença Frei Bento de Pirato". Este frade era um sacerdote santo e discreto que celebrava para São Francisco, quando este estava de cama, pois o santo, embora estivesse enfermo, ouvia a missa sempre que podia.
Quando o frade chegou, o Seráfico Pai lhe disse: "Escreve que eu dou a bênção a todos os meus frades aqui presentes, não só aos que estão na Ordem, mas também aos que vierem a pertencer a ela até o fim do mundo. E como não posso por causa de minha fraqueza, dos sofrimentos provenientes da doença, desejo manifestar simplesmente, em três palavras, minha vontade e intenção aos frades presentes e futuros. Que eles, em minha memória, de minha bênção e de meu testamento, se amem sempre uns aos outros, como eu os amei e amo. Que respeitem e amem sempre a nossa Senhora Pobreza, que se mostrem sempre fiéis e obedientes aos bispos e padres da nossa santa Mãe Igreja".
No fim dos capítulos, nosso pai costumava, com efeito, abençoar e absolver todos os frades presentes e futuros e muitas vezes, no fervor de sua caridade, procedia da mesma forma fora do capítulo. Exortava os frades a temerem os maus exemplos e a fugirem deles, e amaldiçoava todos os que levavam os homens a dizerem mal da Ordem e da vida dos frades por causa de seus maus exemplos, causando ainda, com sua conduta reprovável, vergonha e aflição aos bons frades.
CAPÍTULO 88
Como ao aproximar-se a morte demonstrou seu amor aos frades
dando-lhes um bocado de pão, a exemplo de Cristo
Uma noite, o santo sofria tanto de seus achaques que não pôde repousar nem dormir durante toda a noite. Ao amanhecer, como as dores arrefecessem um pouco, mandou chamar todos os frades do convento e fá-los sentarem-se em volta de si e os olhava como se eles representassem todos os frades.
Pousando a mão direita sobre a cabeça de cada um deles, abençoou-os a todos, presentes e ausentes, e ainda todos quantos no futuro ingressassem na Ordem, até o fim do mundo. Parecia-lhes que o Seráfico Pai sofria muito por não poder ver a todos os seus frades e filhos antes de sua morte.
Todavia, querendo imitar na morte seu Senhor e Mestre, como o havia feito tão perfeitamente em vida, mandou trazer-lhe alguns pães, benzeu-os e fê-los partir em vários pedacinhos, pois não podia parti-los ele mesmo, por causa de sua grande fraqueza. Depois, tomando-os, deu um pedaço a cada frade, ordenando-lhe que o comesse todo.
Assim como o Senhor antes de sua morte quis tomar uma refeição com os apóstolos, na Quinta-feira Santa, em sinal de seu amor, o Seráfico Pai, seu fiel imitador, quis dar aos frades a mesma mostra de amor.
Assim procedeu à semelhança de Cristo, pois perguntou em seguida se era quinta-feira. E, como fosse outro dia, respondeu que pensava ser quinta-feira. Um de seus frades conservou um pedacinho deste pão. Depois da morte 1dó santo, vários enfermos que o experimentaram foram curados imediatamente.
CAPÍTULO 89
Como temia que os frades se aborrecessem
por causa de seus achaques e enfermidades
Como, por causa de suas enfermidades, não pudesse repousar e visse os frades por sua causa distrair-se de suas ocupações ou muito fatigados e como amasse as suas almas mais do que seu próprio corpo, começou a temer que eles, no seu acúmulo de trabalho, cometessem, por impaciência, leves ofensas a Deus.
Por isso, um dia disse com piedade e compaixão a seus companheiros: "Irmãos caríssimos, meus filhinhos, que os trabalhos provocados por minhas enfermidades não sejam motivo de fadigas para vós, pois o Senhor vos pagará por mim, seu humilde - servidor, todo o fruto de vossas obras, neste mundo e no outro, e ainda das que não tiverdes podido fazer por causa dos cuidados de minha doença. Além do mais tereis maior lucro do que se trabalhardes para vós mesmos, pois quem me ajuda a toda a Ordem e a vida dos frades. De resto, podeis redargüir-me: 'Fizemos despesas por ti e o Senhor será nosso devedor em teu lugar.
O Seráfico Pai, no seu ardente zelo pela perfeição de suas almas, falava assim para elevar e reanimar seus espíritos arrefecidos. Temia, com efeito, que alguns, tentados por causa desse trabalho, dissessem: "Não podemos rezar porque estamos demasiado atarefados". E que assim, tornando-se impacientes e ociosos, perdessem o grande proveito espiritual deste pequeno trabalho.
CAPÍTULO 90
Como exortou as Irmãs de Santa Clara
Depois que São Francisco compôs o Cântico das Criaturas, compôs também alguns cânticos para consolação e edificação das Pobres Damas, pois sabia-as muito aflitas com suas enfermidades. Como não podia ir vê-las pessoalmente, enviou-lhes tais palavras por intermédio de seus companheiros. Desejava deste modo manifestar-lhes seu desejo de que elas vivessem e se conduzissem com humildade, sendo unânimes na caridade. Na verdade, sua conversão e santa forma de vida constituíam não somente um motivo de afeição para a Ordem, mas também de edificação para toda a Igreja.
Informado de que após a sua conversão elas levavam uma vida muito austera e de extrema pobreza, sentiu por elas grande piedade e compaixão. E como o Senhor as tivesse reunido de toda parte para viverem em comunidade a santa caridade, a santa pobreza e a santa obediência, suplicava-lhes por estas palavras que vivessem e morressem observando-as.
Exortava-as especialmente a proverem discretamente às suas necessidades na alegria e na ação de graças, servindo-se das esmolas que o Senhor lhes enviava. E lhes recomendava particularmente socorrerem suas irmãs enfermas, ajudando-as a suportar com paciência suas enfermidades.
SEXTA PARTE
De seu ardente e contínuo amor à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo
CAPÍTULO 91
Como negligenciava as suas próprias enfermidades por amor à paixão de Cristo
O Seráfico Pai tinha tão grande e fervoroso amor à paixão de Cristo e às suas dores, experimentandoas em si mesmo, e de tal modo se afligia interior e exteriormente com os mistérios de tão dolorosa paixão, que descurava de suas próprias enfermidades. Embora sofresse já há muito tempo, e até à sua morte, do estômago, do fígado e do baço e, depois que regressou do Oriente, sofresse também dos olhos, que estavam constantemente enfermos, não se tratava de modo algum.
Por isso, vendo o Senhor de Óstia quanto o santo era austero para seu próprio corpo e vendo, sobretudo, que começava a perder a vista por não permitir que tratassem dela, admoestou-o com muita compaixão, dizendo-lhe: "Irmão, não ages bem quando não te deixas tratar, pois teu corpo e tua saúde são úteis aos frades, aos leigos e à Igreja inteira; se tiveste compaixão de teus frades enfermos, se te mostraste sempre compassivo e misericordioso para com eles, não deverás agora, que te encontras em grande necessidade, ser cruel contigo mesmo. Ordeno-te, pois, que te faças socorrer e medicar para ver se recuperas a saúde".
Mas nosso santo pai tinha como doçura todas as amarguras, pois encontrava grande consolação em imitar o humilde Filho de Deus e em seguir-lhe as pegadas.
CAPÍTULO 92
Como o encontraram várias vezes lamentando com grandes gemidos a paixão de Cristo
Pouco depois de sua conversão e enquanto caminhava pela estrada, não longe de Santa Maria da Porciúncula, ele chorava e gemia em alta voz. Um homem de grande espiritualidade o encontrou neste estado e, temendo que padecesse de alguma enfermidade, interpelou-o: "Que tens, irmão?" "Eu devia percorrer assim, sem envergonhar-me disso, o mundo inteiro, chorando a paixão de meu Senhor". Ouvindo estas palavras aquele homem começou a chorar com ele e a derramar copiosas lágrimas.
CAPÍTULO 93
Como suas recreações se transformavam, às vezes,
em lágrimas de compaixão por Cristo
Ébrio de amor e compaixão por Cristo, o santo muitas vezes agia assim: de sua alma brotavam as mais doces melodias que se exprimiam em francês; a poesia dos murmúrios divinos ouvidos por ele em segredo explodia em cantos, nessa mesma lingua.
As vezes apanhava da terra um pedaço de pau, colocando-o no braço esquerdo, apanhava com a mão direita uma vara à maneira de arco e esfregava sobre o pau, como uma viola ou outro instrumento de corda. Fazendo gestos apropriados, cantava em francês ao Senhor Jesus Cristo. Toda essa alegria terminava, enfim, em lágrimas e se convertia em piedade pela paixão de Cristo.
Soltava, então, compungidos suspiros e redobrava os gemidos esquecendo o que tinha nas mãos. E seu espírito se elevava ao céu.
SÉTIMA PARTE
De seu zelo pela oração e ofício divino e como preservava
a alegria do espírito nele e em seus companheiros
CAPÍTULO 94
Da oração e do ofício divino
Embora agravado por numerosas enfermidades, como já dissemos, o santo continuava tão piedoso e assíduo na oração e no ofício divino, que orava ou recitava as Horas Canônicas sem se apoiar jamais à parede ou a um pilar. Mantinha-se sempre de pé, cabeça descoberta e, às vezes, de joelhos. Além disso passava grande parte da noite em oração.
Mesmo quando percorria o mundo a pé, suspendia sempre suas andanças quando queria dizer as Horas.
Se ia a cavalo, por causa de uma enfermidade qualquer, apeava sempre para recitar as Horas.
Um dia em que viajava a cavalo, coagido pela enfermidade e por uma premente necessidade, quis descer do animal para recitar o ofício, se bem que chovesse torrencialmente. Recitou o ofício em plena chuva, com tanto fervor e unção, como se estivesse na igreja ou em sua cela. Nesta ocasião disse a seu companheiro estas palavras: "Se o corpo tem necessidade de comer em paz e sossego seu alimento, com que respeito e devoção a alma deverá receber seu alimento, isto é, seu próprio Deus?"
CAPÍTULO 95
Como estimava a alegria de espírito -
interior e exterior - nele e nos outros
São Francisco se empenhava de modo particular em possuir, fora da oração e do oficio divino, a alegria interior e exterior. E ainda gostava de vê-la nos outros frades, repreendendo-os sempre que revelavam tristeza e mau humor.
Costumava dizer: "Se o servo de Deus se dispõe a alcançar e conservar interior e exteriormente a alegria de espírito, que provém da pureza do coração e se obtém pela piedade na oração, os demônios não poderão causar-lhe mal algum e hão de dizer: 'Porque o servo de Deus possui a alegria, tanto na adversidade como na prosperidade, não encontram meios de penetrar nele e molestá-lo'. Todavia alegram-se muito quando conseguem, de qualquer maneira, arrefecer e impedir-lhe a piedade e a alegria que emanam da oração fervorosa e de outras santas obras. Pois se o diabo pode alcançar alguma coisa para si do servo de Deus e se este não sabe nem procura, quanto antes, destruí-lo e aniquilar-lhe a influência por meio da santa oração, da contrição e da confissão, o demônio fará em pouco tempo do fio do cabelo uma corda que engrossará continuamente. Pois, meus irmãos, esta alegria de espírito brotará da limpidez do coração e da pureza da oração continua. Urge, pois, que vos empenheis, antes de tudo, por adquirir e conservar estas duas virtudes, para poderdes possuir, interior e exteriormente, esta mesma alegria que amo com toda minha alma e desejo firmemente encontrar em vós e em mim, para a edificação do próximo e confusão do inimigo. A este e a seu cortejo infernal cabe a tristeza, a nós a alegria e o regozijo de estarmos no Senhor".
CAPÍTULO 96
Como repreendeu um de seus frades em cujo rosto transparecia a tristeza
São Francisco costumava dizer: "Eu sei que o demônio inveja os dons que o Senhor me deu, sei também e percebo que, não podendo me fazer mal, ele se esforça para fazê-lo a meus companheiros. Todavia, não podendo prejudicar nem a mim nem a meus companheiros, ele se afasta grandemente confuso. Ademais quando sou tentado ou molestado, considero a alegria do meu companheiro e passo desta tentação e desfalecimento para a alegria interior e exterior".
Por esta razão, o Seráfico Pai repreendia vivamente os que mostravam tristeza ou desânimo. Certo dia repreendeu um companheiro que apresentava um ar de tristeza, dizendo-lhe: "Por que mostras cá fora a dor e a tristeza de teus pecados? Guarda esta tristeza entre ti e Deus e roga-lhe que se compadeça de ti e devolva à tua alma a alegria de tua salvação de que foi privada por teus pecados. Diante dos outros e de mim esforça-te para conservar a alegria, pois não convém que um servo de Deus mostre a seus irmãos ou a outrem um semblante triste e conturbado".
Mas isso não quer dizer, nem se deve presumir, que o Seráfico Pai, amante da perfeição e da modéstia, quisesse testemunhar esta alegria por risos ou abundância de vás palavras. Isto não significa alegria interior, senão vaidade e insensatez. Detestava de modo particular no servo de Deus o motejo e as palavras inúteis. Este não devia zombar nem oferecer aos outros a menor ocasião de fazê-lo. Assim, definiu claramente em uma admoestação o que devia ser a alegria do servo de Deus, dizendo: "Feliz o religioso que não encontra prazer e alegria senão nas palavras e nas santas obras do Senhor, e se serve delas para levar os homens ao amor de Deus, com toda a alegria. Maldito o religioso que se compraz com histórias fúteis e frívolas e se serve delas para levar os homens ao riso".
Pela alegria do rosto ele percebia o fervor, o desvelo, a disposição e preparação do espírito e do corpo para fazer de boa vontade o bem, pois este fervor e disposição induzem melhor os outros ao bem do que a própria boa ação. De resto, uma boa ação que não foi feita de boa vontade e com zelo provoca antes o desgosto do que o desejo do bem.
Eis por que não queria ver nos rostos a tristeza exterior, pois ela reflete sempre a indiferença e a má disposição do espírito e a preguiça do corpo a toda boa obra.
Amava de modo particular, nele e nos outros, a gravidade e austeridade do semblante e dos sentidos; e sempre que podia dava exemplo aos outros.
Sabia por experiência que esta gravidade e modéstia são como um muro e uma sólida armadura contra "as flechas"; sem sua proteção a alma é como um soldado desarmado entre inimigos poderosos, bem armados e encarniçadamente empenhados na sua morte.
CAPÍTULO 97
Como ensinava aos frades a manterem o corpo ocupado
para que os benefícios da oração não fossem desperdiçados
Considerando e compreendendo que o corpo foi criado para servir a alma e que os atos materiais devem ser praticados com fins espirituais, o Seráfico Pai dizia sempre: "O servo de Deus deve satisfazer, razoavelmente, seu corpo com alimentação, repouso e outras necessidades, a fim de que o irmão Corpo não se queixe dizendo: 'Não posso mais ficar de pé e assim permanecer durante a oração, nem me fortalecer na adversidade, nem fazer qualquer boa obra, pois não me propicias o de que necessito'.
Mas se o servo de Deus prover razoavelmente o seu corpo dos bens de que necessita, e ele ainda se mostrar negligente, preguiçoso e sonolento na oração, nas vigílias e em outras boas obras, deverá castigá-lo como a um animal ruim e preguiçoso que quer comer, mas recusa-se ao mérito de 'carregar o fardo'. Mas se em razão da indigência e da pobreza não pode ter o que necessita na saúde ou na enfermidade, se pediu ao seu irmão ou superior, humilde e honestamente, por amor de Deus e não lhe foi dado, que suporte pacientemente por amor de Deus que suportou também o mesmo, procurou quem o aliviasse e não encontrou. Se ele suporta com paciência, o Senhor contá-lo-a entre os mártires. E porque fez o que pôde, isto é, porque pediu humildemente que fosse provido daquilo de que necessitava, será absolvido de tudo, mesmo que o seu corpo tenha sofrido gravemente"
OITAVA PARTE
Algumas tentações com que o Senhor quis prová-lo
CAPÍTULO 98
Como o demônio entrou num travesseiro que o santo usava sob a cabeça
Como São Francisco permanecesse no eremitério de Greccio e se entregasse à oração na última cela, que ficava próxima à maior do convento, uma noite, ao primeiro sono, ele despertou seu companheiro que repousava perto dele. Tendo ouvido a voz de São Francisco, o irmão levantou-se e veio até à porta da cela onde se encontrava o santo. Ao vê-lo, o Seráfico Pai lhe disse: "Irmão, não pude dormir esta noite, nem ficar de pé para rezar, pois a cabeça e as pernas estão trêmulas como se eu tivesse comido pão feito de joio».
Tendo o irmão proferido algumas palavras compassivas, o santo lhe disse: "Estou certo de que o demônio está neste travesseiro que tenho sob a cabeça". Embora nunca quisesse, desde que deixou o mundo, deitar-se em colchão de plumas, nem usar travesseiros, os frades persuadiram-no, com grande esforço, a servir-se deste travesseiro por causa da doença dos olhos.
Entregou, pois, o travesseiro a seu companheiro que o pegou com a mão e colocou-o no ombro esquerdo. Ora, quando atravessava a porta da cela, não podendo nem se desvencilhar do travesseiro, nem mover os braços, permaneceu de pé sem poder mover-se, como que privado dos sentidos. Picou assim por algum tempo até que, pela graça de Deus, São Francisco o chamou. Imediatamente voltou a si e deixou cair dos ombros o travesseiro. Voltando para junto de São Francisco narrou-lhe o que lhe havia acontecido. Ao ouvi-lo, o Seráfico Pai lhe disse: "Esta noite, enquanto rezava as Completas, senti que o diabo entrava na cela. Sei que ele é demasiado astucioso, pois, não podendo causar mal a minha alma, queria apoderar-se do que era necessário ao meu corpo e me impedir de dormir e ficar em pé para rezar; e ainda perturbar a minha devoção, alegria de meu coração, e me fazer murmurar contra minha enfermidade".
CAPÍTULO 99
Como foi atormentado dois anos por forte tentação
Demorando-se em Santa Maria dos Anjos, foi-lhe enviada fortíssima tentação para proveito de sua alma. Afligia-se tanto, da alma e do corpo, que freqüentemente se retirava da companhia dos irmãos, por não poder mostrar a alegria habitual. Todavia mortificava-se abstendo-se de comer, beber e falar, e rogava com assiduidade e insistência, derramando copiosas lágrimas, para que o Senhor se dignasse enviar um remédio eficaz a tamanha provação.
Após dois anos de aflições, um dia em que rezava na igreja de Santa Maria, pareceu-lhe ouvir em espírito estas palavras do Evangelho: "Se tiveres fé do tamanho de um grão de mostarda, poderás dizer a esta montanha: desloca-te daqui, e ela se deslocará".
Ao que o santo respondeu imediatamente: "Senhor, o que é esta montanha?" - "E a tentação" - "Neste caso, Senhor, que me seja feito como disseste". Sentiu-se imediatamente tão livre das tentações como se não tivesse sido tentado.
Do mesmo modo, quando recebeu em seu corpo os estigmas do Senhor, no santo monte Alverne, padeceu tantas tentações e tormentos que não podia mostrar sua alegria habitual. Com efeito, dizia com freqüência a seus companheiros: "Se os frades soubessem quantos tormentos e provações me faz sofrer o demônio, não haveria um só que não se sentisse arrebatado de compaixão e piedade para comigo".
CAPÍTULO 100
Da tentação que lhe foi infligida pelos ratos e de como o Senhor
o consolou e o assegurou de que tomaria parte no seu reino
Dois anos antes de sua morte, quando residia em São Damião, numa cela feita de esteira, padeceu tanto dos olhos a ponto de não poder ver a luz do dia nem a do fogo, durante mais de cinqüenta dias.
Aconteceu, por permissão de Deus, que para aumentar suas provações e seus méritos, os ratos invadiram sua cela. Corriam durante a noite em torno dele e por cima dele, não o deixando nem repousar nem rezar. Ademais, quando tomava suas refeições, subiam na mesa e o atormentavam tanto que se tornou evidente a ele, como a seus companheiros, tratar-se de uma tentação diabólica.
Vendo-se atormentado por tantas provações, uma noite o Seráfico Pai teve piedade de si mesmo e disse: "Senhor, vem em meu socorro e vê minhas enfermidades para que as suporte com paciência".
Imediatamente lhe foi dito em espírito: "Dize, irmão, se alguém, por causa de tuas moléstias e provações, te desse um grande e precioso tesouro, em que a terra fosse toda ouro, as pedras todas preciosas, a água bálsamo, não considerarias como nada tuas provações em comparação com estas riquezas? Não te alegrarias com tal dádiva?" Ouviu ainda que lhe diziam: "Então, irmão, alegra-te e rejubila-te no meio de tuas moléstias e provações, pois asseguro-te que já entraste na posse do meu reino".
Levantando-se de madrugada, ele confessou a seus companheiros: "Se o imperador desse um reino inteiro a um de seus companheiros, não deveria este alegrar-se muito com isto? E se lhe desse todo o seu reino não se alegraria ainda mais? Devo desde agora alegrar-me grandemente nas provações e moléstias, encontrar repouso no Senhor e render graças a Deus e a seu Filho único, Jesus Cristo, e ao Espírito Santo, por tal graça que me foi concedida pelo Senhor, que se dignou garantir-me a posse do seu reino, eu, seu indigno servidor, preso ainda a este corpo. Para a sua glória e para a nossa consolação e edificação do próximo, quero compor um novo cântico de louvor às criaturas do Senhor, de quem nos servimos todos os dias e sem as quais não poderíamos viver e com quem o gênero humano ofende sempre a seu Criador. Somos sempre ingratos, em virtude de recebermos tantas graças e benefícios e não louvarmos ao Senhor Criador de todos estes dons, como devíamos".
Sentou-se e refletiu durante algum tempo. Depois pôs-se a cantar: "Altíssimo, poderoso e bom Senhor, etc." Compôs a melodia deste cântico e ensinou a seus companheiros para que o recitassem cantando.
Sua alma encontrou nisto tanta doçura e refrigério que quis enviá-lo a Frei Pacifico, o qual no mundo fora chamado "o rei dos versos" e havia sido mestre de canto de uma corte. Desejou confiar-lhe alguns frades bons, de profunda espiritualidade, para que percorressem o mundo com ele, pregando e cantando os louvores do Senhor. Com efeito, costumava dizer que o que dentre eles soubesse pregar melhor ao povo, que o fizesse; após o sermão todos cantariam os louvores do Senhor, como jograis de Deus.
Terminados os louvores, desejava que o pregador dissesse ao povo: "Nós somos jograis de Deus e, como tais, queremos ser remunerados por estes cantos, isto é, que vivais na verdadeira penitência". E acrescentava: "Que são, com efeito, os servos do Senhor, senão jograis que devem elevar o coração dos homens e levá-los à alegria espiritual?"
Dizia sempre que os frades menores, de modo particular, haviam sido dados ao povo de Deus para sua salvação.
NONA PARTE
Do espírito de profecia
CAPÍTULO 101
Como predisse que a paz seria estabelecida entre o bispo
e o prefeito de Assis, diante dos quais mandou cantar o Cântico das Criaturas,
que havia composto para seus companheiros
Depois que São Francisco compôs o Cântico das Criaturas, que chamara "Cântico do Irmão Sol", uma grande contenda eclodira entre o bispo e o prefeito de Assis, a ponto de o bispo excomungar o prefeito e este proibir vender ou comprar, fosse o que fosse, ao bispo, ou concluir com ele qualquer contrato.
Quando o Seráfico Pai, já enfermo, tomou conhecimento deste fato, ficou profundamente consternado e sentiu por eles grande compaixão, sobretudo por não ter ninguém servido de mediador, para restabelecer a paz entre ambos. Disse então a seus companheiros: "É uma grande vergonha para nós, servidores do Senhor, que o bispo e o prefeito se odeiem a este ponto sem que ninguém se interponha em favor da paz". E, imediatamente, acrescentou um verso alusivo a esta circunstância, ao Cântico das Criaturas, e disse: "Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti e suportam injustiças e tribulações. Bemaventurados os que perseveram na paz porque por ti, lá no alto, serão coroados".
Chamou em seguida um de seus companheiros e lhe disse: "Vai à casa do prefeito e dize-lhe de minha parte que venha ao bispado com os notáveis da cidade, todos os que puderes reunir".
Logo que o irmão partiu ele disse aos seus companheiros: "Ide à presença do bispo e do prefeito e de todos os que se encontrarem com eles e cantai o 'Cântico do Irmão Sol'. Confio no Senhor que tornará seus corações mais humildes e eles voltarão à antiga amizade".
Quando todos se reuniram no palácio do bispo os dois frades se levantaram e um deles exclamou: "Nosso pai Francisco compôs durante a sua doença os louvores do Senhor através de suas criaturas, para a glória de Deus e edificação do próximo. Ele vos roga que os escuteis com grande piedade". Começaram então a recitálos e cantá-los.
Imediatamente o prefeito se levantou, cruzou os braços e escutou-os com grande devoção e copiosas lágrimas como se fosse o próprio Evangelho do Senhor; ele tinha, com efeito, grande confiança em São Francisco e verdadeira devoção por ele.
Terminados os louvores, o prefeito disse diante de todos: "Em verdade vos digo, eu perdôo ao Senhor Bispo a quem quero e devo ter como meu senhor e perdoarei mesmo a morte de um irmão ou de um filho". Proferidas estas palavras, prostrou-se de joelho ante o bispo e acrescentou: "Estou pronto a dar-vos satisfação em tudo, como desejais, por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo e do seu servidor São Francisco". O bispo tomou-lhe as mãos e levantou-o, dizendo-lhe: "Meu ofício exige que eu seja humilde, mas, porque sou por natureza inclinado à cólera, é preciso que me perdoes". Eles se abraçaram com grande bem-querer e afeição.
Os frades, ficaram estupefatos ao ver a reconciliação que São Francisco havia predito e se rejubilaram. Todos os que estavam lá consideraram como grande milagre, que atribuíram aos méritos de São Francisco, o fato de que o Senhor os tivesse visitado assim, subitamente, e os fizesse sair de tamanha discórdia e escândalo para a concórdia e a paz, sem se lembrarem de qualquer injúria passada. Nós que vivemos com São Francisco somos testemunhas de que quando ele dizia: "Isto acontece, ou acontecerá", realizava-se sempre literalmente. Presencia-mos tantos e tantos exemplos que seria demasiado longo escrevê-los ou narrá-los.
CAPÍTULO 102
Como predisse a sorte de um frade que não queria se confessar
sob o pretexto de guardar silêncio
Havia um frade de vida honesta e santa que dia e noite parecia se dedicar à oração. Observava o silêncio de tal modo que quando se confessava a um padre o fazia não por palavras, mas por sinais. Parecia tão piedoso e ardente no amor de Deus que, às vezes, quando estava sentado com os outros frades manifestava, embora não revelasse, uma alegria interior e exterior, porque ao ouvirem suas piedosas palavras eles se sentiam mais inclinados à devoção.
Como persistisse neste modo de vida há vários anos, aconteceu que um dia São Francisco veio à casa onde ele morava. Informado pelos outros frades sobre a conduta daquele religioso, disse: "Em verdade, sabei que é por tentação diabólica que este frade não se quer confessar".
Entrementes, o ministro geral, que viera ter com São Francisco, se pôs a fazer elogios ao dito frade na presença do santo patriarca. Ao ouvi-lo, o Seráfico Pai retrucou-lhe: "Acredita-me, irmão, este homem é conduzido por um espírito maligno que o engana". Ao que o ministro geral respondeu: "Parece-me surpreendente e incrível que isto possa acontecer a um homem que manifesta tantos sinais de santidade e pratica tantas boas ações". São Francisco lhe disse, então: "Põe-no à prova, ordena-lhe que se confesse duas vezes por semana. Se não te escutar, saberás que te digo a verdade".
O ministro geral disse então ao homem: "Irmão, quero, em absoluto, que te confesses duas vezes, ou ao menos uma, por semana". O frade pôs o dedo na boca e sacudiu a cabeça mostrando por sinais que não queria fazê-lo por amor ao silêncio. Temendo escandalizá-lo, o ministro o deixou. Poucos dias depois, o frade saiu da Ordem por sua livre vontade, regressando ao mundo com vestes seculares.
Um dia, dois companheiros de São Francisco, enquanto empreendiam uma viagem, o encontraram no caminho. Ia sozinho como um peregrino, paupérrimo. Cheios de compaixão lhe disseram: "Desventurado, onde está a vida santa e honesta que levavas? Não querias falar e explicar-te na presença de teus irmãos e agora erras pelo mundo como um homem que não conhece a Deus".
Ele então se pôs a falar, jurando sempre "por minha fé", como fazem os homens do mundo. "Desgraçado", retrucaram-lhe os frades, "por que juras por tua fé, como fazem os homens do século, tu que te guardavas não somente das palavras inúteis mas também das boas!"
Em seguida o deixaram. Este homem morreu pouco depois. Ficamos surpresos de ver como era verdade o que São Francisco predissera deste miserável, quando os frades o olhavam como a um santo.
CAPÍTULO 103
De certo jovem que chorava na presença de São Francisco
para ser recebido na Ordem
No tempo em que ninguém era admitido à Ordem sem a permissão de São Francisco, o filho de um nobre de Lucca veio ter com ele, juntamente com outros jovens, desejosos de ingressarem na Ordem, quando o Seráfico Pai se encontrava doente no palácio do bispo de Assis. Logo que foram todos apresentados a São Francisco, o jovem de Lucca inclinou-se diante do santo e começou a chorar, suplicando-lhe o admitisse à Ordem. Ao vê-o chorar deste modo, o santo lhe disse: ('Homem miserável e carnal, por que mentes ao Espirito Santo e a mim? Tuas lágrimas provêm da carne e não do espirito". Com efeito, apenas proferiu estas palavras, os pais do jovem apareceram fora do palácio, para prendê-lo e reconduzi-lo à sua casa. Ouvindo o tropel dos cavalos, o jovem olhou pela janela e avistou os seus pais. Dirigiu-se imediatamente para eles e, como o santo havia previsto, retornou com eles ao mundo.
CAPÍTULO 104
Da vinha despojada de suas uvas por causa de são Francisco
Enquanto São Francisco permanecia na igreja de São Fabiano, próximo a Rieti, com um padre pobre, por causa de sua enfermidade dos olhos, o Senhor Papa Honório encontrava-se na cidade com toda sua Cúria. Quase todos os dias, vários cardeais e clérigos importantes visitavam-no por devoção. Ora, essa igreja possuía uma pequena vinha ao longo da casa, onde se encontrava o santo. Havia na casa uma porta pela qual os visitantes penetravam na vinha: as uvas estavam maduras e o lugar era aprazível, de sorte que a vinha foi quase por completo arrasada e despojada de suas uvas.
O padre ficou furioso e lamentou-se: "Embora fosse pequena a minha vinha, colhia dela o vinho de que necessitava e eis que perdi a vindima do ano".
Tendo-o ouvido, o santo fê-lo vir à sua presença e lhe disse: "Senhor, não te aflijas mais; nada posso fazer agora, mas confia no Senhor, porque ele pode compensar-te inteiramente do prejuízo, por mim, seu servidor. Dize-me: quantas medidas de vinho produz a tua vinha nos seus melhores anos?" A esta pergunta o padre respondeu: "Treze medidas, pai". Então, São Francisco lhe disse: "Não te perturbes, nem te entregues à injúria por isso, tem confiança no Senhor e em minhas palavras, pois se colheres menos de vinte medidas, farei completá-las".
O padre tranqüilizou-se imediatamente. No tempo da colheita, por graça divina, colheu exatamente vinte medidas de vinho, nem uma a menos.
Admirou-se sobremodo com isto, pois todos quantos conheciam sua vinha afirmavam que mesmo que estivesse cheia de uvas lhe era impossível colher vinte medidas.
Nós que vivemos com ele somos testemunhas deste fato e de que tudo o que predisse se realizou literalmente.
CAPÍTULO 105
De certos cavaleiros de Perusa que tentavam impedi-lo de pregar
De outra feita, enquanto o santo pregava na praça de Perusa, no meio de grande multidão, alguns cavaleiros se puseram a galopar na praça, empunhando armas. Impediam-no de pregar e embora os assistentes tivessem protestado se recusaram a parar.
São Francisco voltou-se então para eles e lhes disse com grande fervor e devoção: "Escutai e compreendei o que o Senhor vos anuncia por mim, seu humilde servidor, e não digais: 'Oh! é um habitante de Assis"' (falava assim por haver uma velha amizade entre o povo de Perusa e o de Assis).
E bradou-lhes: ('O Senhor vos elevou acima de vossos vizinhos, devíeis, portanto, ser mais gratos ao vosso Criador, humilhando-vos não somente perante Deus, mas também perante os vossos vizinhos. Mas vosso coração cresceu no orgulho, devastastes os países vizinhos e matastes os seus habitantes. Advirto-vos, portanto, que se não vos converterdes imediatamente a Deus, dando satisfação aos que lesastes, o Senhor que não deixa nada impune vos fará precipitar-vos uns contra os outros, em grande vingança, para castigo vosso. Presa da revolta e da guerra civil, sofrereis também tribulações maiores do que as que os vossos vizinhos padeceram por vossa causa".
Quando são Francisco pregava não silenciava jamais sobre os pecados do povo, mas os expunha pública e rigorosamente. O Senhor lhe dera para isto tanta graça que os que o viam ou ouviam, qualquer que fosse o seu estado ou condição, o temiam e respeitavam tanto que, embora tivessem sido energicamente repreendidos, ficavam sempre edificados com suas palavras e se convertiam ao Senhor, ou se arrependiam em conseqüência.
Poucos dias depois, permitiu Deus que uma disputa eclodisse entre os cavaleiros e o povo, de modo que este os expulsou da cidade. Os cavaleiros, apoiados pela Igreja e devastaram os campos, as vinhas, as árvores e fizeram ao povo todo o mal que puderam. Por seu turno, o povo saqueou os bois dos cavaleiros e assim, como predissera São Francisco, um e outro foi punido.
CAPÍTULO 106
Como conheceu, por intuição as tentações
e tribulações secretas que afligiam um religioso
Certo frade, homem de grande vida interior e amigo de São Francisco, fora atormentado durante longos dias por gravíssimas tentações diabólicas. Tais tribulações o levaram a profunda prostração e desespero. Era diariamente atormentado de tal modo que tinha vergonha de se confessar com freqüência e se mortificava por abstinência, vigílias, lágrimas e disciplina.
Deus permitiu que São Francisco fosse ao convento onde se encontrava o dito frade. Um dia, enquanto caminhava com o frade, o Espírito Santo lhe fez conhecer suas tentações e tribulações. Afastando-se de outro frade que os acompanhava, aproximou-se do que estava conturbado e lhe disse: "Caríssimo irmão, não desejo, de hoje em diante, que sejas obrigado a estas tentações do demônio. Não temas, pois elas não causarão nenhum mal a tua alma. com minha permissão, disse o pai-nosso toda vez que fores tentado".
O frade alegrou-se sobremodo por tê-lo eximido da obrigação de confessar tais tentações, pois isto o aborrecia profundamente. Todavia ficou grandemente surpreso ao verificar que São Francisco sabia o que não era conhecido, senão pelos padres com os quais se confessara.
Imediatamente sentiu-se livre de todas as tentações e experimentou grande tranqüilidade e grande paz pela graça de Deus e méritos de São Francisco. Era justamente o que o santo patriarca esperava e por isso o havia, com toda certeza, dispensado da confissão.
São Francisco já sabia, por inspiração divina, o que iria acontecer; eis por que o dispensou da confissão.
CAPÍTULO 107
De suas predições a Frei Bernardo
e como se cumpriram totalmente
Pouco antes de sua morte, como lhe tivessem preparado finas Iguarias, lembrou-se de Frei Bernardo, que foi o primeiro a segui-lo. Disse então a seus companheiros: "Este prato é bom para Frei Bernardo". Imediatamente aquele religioso foi chamado para junto de são Francisco e chegando ao lugar onde se encontrava o santo, sentou-se perto do leito onde ele estava deitado e lhe disse: "Pai, rogo-te que me abençoes e me dês testemunho de tua afeição para comigo, pois se me mostrares teu amor de pai, creio que o próprio Deus e todos os frades me amarão mais". São Francisco não podia vê-lo, pois havia perdido a vista ha vários dias; estendendo a mão direita, pousou-a sobre a cabeça de Frei Egídio, que foi o terceiro dos primeiros companheiros, pensando que a punha sobre a cabeça de Frei Bernardo que estava sentado a seu lado. Imediatamente, por inspiração do Espirito santo, exclamou: "Não é a cabeça de Frei Bernardo".
Este último se aproxima e o santo passa a mão sobre sua cabeça e o abençoa, dizendo a um dos seus companheiros: "Escreve o que te digo: 'O primeiro companheiro que o Senhor me deu foi Frei Bernardo. Ele foi o primeiro a observar em toda perfeição o santo Evangelho, distribuindo todos os seus bens aos pobres. Por estes méritos e tantos outros, sou obrigado a amá-lo mais do que qualquer frade de toda a Ordem. Quero e ordeno, na medida de minhas possibilidades, que quem quer que for ministro geral o ame e honre tanto quanto eu mesmo o faria. Os ministros e os frades da Ordem o olhem como a mim próprio"'. Frei Bernardo e os outros frades ficaram grandemente reconfortados.
Considerando, com efeito, a grande perfeição de Frei Bernardo, São Francisco profetizou a seu respeito diante de alguns frades dizendo: "Em verdade vos digo que os mais poderosos e engenhosos demônios foram enviados a Frei Bernardo para exercitá-lo na virtude, cumulando-o de grandes tentações e tribulações. Todavia, quando chegar perto de sua morte, o Senhor misericordioso o libertará e trará a sua alma e seu corpo tamanha paz e tranqüilidade que os frades que presenciarem tal fato o admirarão e terão por grande milagre; e ele emigrará para o Senhor nesta paz e consolação de espírito".
Todas estas predições, que os frades ouviram com grande surpresa, realizaram-se integralmente. Frei Bernardo durante sua última doença experimentou tal paz e tal repouso de espírito que não queria deitar-se. E quando o fazia, permanecia quase sentado a fim de evitar que a mais leve distração lhe subisse à cabeça e o impedisse de pensar em Deus, trazendo-lhe o sono ou algum sonho. Se isto às vezes acontecia, levantava-se imediatamente e se batia, dizendo: "Que é que há? Em que estou pensando?"
Não queria nem sequer receber qualquer medicamento e dizia a quem lho oferecia: "Não me perturbes!"
Enfim, para morrer mais livremente e mais pacificamente, confiou o cuidado do seu corpo a um frade que era médico e lhe disse: "Não quero ter nenhuma preocupação com alimentação e bebida, mas tu me proverás disto. Se me deres alguma coisa, comerei; se não, nada pedirei".
Logo que se sentiu mais fraco quis ter sempre um padre ao seu lado até a hora da morte. Quando lhe vinha ao espírito um pensamento que pesava na consciência, logo o confessava.
Após a morte seu semblante tornou-se branco e suave, parecendo sorrir. Tornou-se assim mais belo, estando morto, do que vivo. Os frades se alegravam ao vê-lo, pois lhes parecia um santo de face sorridente.
CAPÍTULO 108
Como, próximo à sua morte, fez saber a Santa Clara que ela o veria;
e como isto aconteceu
Na mesma semana em que morreu São Francisco, Santa Clara, primeira plantinha das Pobres Damas de São Damião de Assis, discípula excepcional de São Francisco, na guarda da pobreza evangélica, teve medo de morrer antes dele, pois ambos se encontravam então enfermos. Ela chorava amargamente sem poder se conformar ao pensar que não veria mais, antes de sua morte, seu único pai depois de Deus, São Francisco, sua alegria, seu mestre e aquele que primeiro a estabeleceu na graça de Deus.
Fez saber a São Francisco suas inquietações por intermédio de um de seus frades. Ao ser informado do que ocorria com Santa Clara, o Seráfico Pai, que a amava com uma especial e paternal afeição, encheu-se de compaixão, mas considerando que não podia fazer o que ela desejava, isto é, mostrar-se a ela, escreveu-lhe para sua consolação e de todas as irmãs e lhe enviou sua bênção e sua absolvição de todas as faltas contra as admoestações, ordens e ensinamentos do Filho de Deus, caso ela as houvesse cometido.
Para que abandonasse toda a tristeza, inspirado pelo Espirito Santo, disse ao frade que lhe enviara: "Vai e dize à Dama Clara que deixe toda tristeza e todo pesar de não me poder mais ver; em verdade lhe digo que ela e todas as suas irmãs me verão antes de sua morte e receberão de mim uma grande consolação".
Pouco depois de São Francisco morrer, ao anoitecer, todo o povo e clero de Assis vieram e retiraram o corpo do santo do lugar onde havia morrido, cantando hinos e louvores e agitando ramos de árvores. Pela vontade de Deus, eles o levaram a são Damião para consolação de suas filhas e servas, a fim de que se cumprissem as palavras que o Senhor havia proferido pela boca de são Francisco.
Tendo sido retirada a grade de ferro através da qual as irmãs costumavam comungar e ouvir a palavra de Deus, os frades descobriram o corpo do santo e o reclinaram sobre a janela, bastante tempo; neste momento Santa Clara e suas irmãs ficaram consoladas, embora sentissem grande dor e derramassem copiosas lágrimas ao se verem privadas do consolo e da exortação de tão santo pai.
CAPÍTULO 109
Como predisse que seu corpo receberia honrarias após a sua morte
Certo dia, quando se achava de cama por estar doente, o bispo de Assis, religioso e homem de profunda espiritualidade, disse-lhe, entre sorrindo e brincando: "Por quanto venderias tu todos os teus sacos ao Senhor? Baldaquinos e tecidos de seda cobrirão este corpo que agora jaz vestido de saco". Efetivamente, ele usava uma cinta coberta de pano de saco e suas vestes eram da mesma fazenda. são Francisco respondeu, ou melhor, o Espírito Santo fê-lo por ele, inspirando-lhe estas palavras, proferidas com grande fervor e alegria interior: "Dizes a verdade, pois assim acontecerá para honra e glória de meu Senhor".
DÉCIMA PARTE
Como a divina Providência proveu às suas necessidades materiais
CAPÍTULO 110
Como o Senhor revigorou os frades que tomaram uma frugal refeição
com o médico de São Francisco
Quando estava no eremitério de Fonte Colombo, um médico veio vê-lo por causa de sua doença dos olhos. Tendo permanecido algum tempo na presença do santo, já se dispunha a sair, quando São Francisco ordenou a um dos frades: "Vai, irmão, e prepara uma boa refeição para este médico". Ouvindo esta ordem, o companheiro respondeu: "Pai, neste momento estamos tão desprovidos que teríamos vergonha de convidá-lo para jantar".
Ante esta resposta, São Francisco repreendeu-o e disse a seus companheiros: "Homens de pouca fé, não me façais repetir a ordem!" E o médico falou a são Francisco nestes termos: "Pai, compreendendo agora a pobreza dos frades, tomarei de bom grado esta refeição com eles". Ora, este médico era tão rico que, embora o santo e seus companheiros o tivessem convidado com freqüência, nunca quis partilhar de suas refeições.
Os frades foram então preparar a mesa e envergonhados olhavam um pequeno pão, um pouco de vinho e l gumes que eles mesmos haviam preparado. Quando estavam à mesa e começaram a comer, bateram à porta. Um frade levantou-se e foi abrir. Uma mulher trazia-lhe uma grande cesta cheia de belos pães, peixes, mel e uvas frescas que uma senhora de um burgo, distante daí sete léguas, enviara a São Francisco.
Ao verem o presente, os frades e o médico encheram-se de admiração e de alegria e, considerando a santidade de São Francisco, atribuíram tudo a seus méritos. O médico disse então aos frades: "Nem vós, nem eu, meus irmãos, conhecemos, como devíamos, a santidade deste homem".
CAPÍTULO 111
Como desejou comer certa espécie de peixe durante sua enfermidade
Certa vez, como estivesse gravemente enfermo no palácio do bispo de Assis, os frades pediram-lhe que se alimentasse. Ele respondeu-lhes: "Não tenho vontade, mas se tivésseis um pouco de peixe chamado lixa, talvez comesse algo".
Logo que disse estas palavras, alguém apareceu trazendo num cesto três lixas preparadas e alguns camarões, de que o Seráfico Pai gostava tanto. Essas iguarias haviam sido enviadas por Frei Geraldo, ministro de Rieti.
Os frades ficaram pasmados da súbita intervenção da divina providência. e louvaram ao Senhor que proveu o seu servidor daquilo que lhes era impossível encontrar em Assis, pois estavam no inverno.
CAPÍTULO 112
De certo prato e de certo alimento que desejou antes de morrer
Como estivesse em Santa Maria dos Anjos, padecendo da última enfermidade, mandou chamar seus companheiros e lhes disse: "Sabeis quanto a Senhora Jacoba dei Settesoli foi e permanece ainda fiel e devotada à Ordem e a mim. Creio que ela haveria de considerar uma grande graça e consolação, se lhe fizéssemos saber de meu estado de saúde. Rogai-lhe de modo especial que' me envie um pedaço de fazenda cuja cor seja semelhante à da cinza e um pouco daqueles bolinhos que ela tantas vezes preparou para mim em Roma".
São aqueles bolinhos que os romanos chamam mostaccioli' e que são feitos de amêndoa, açúcar e outro ingrediente.
Esta senhora era, com efeito, de uma profunda espiritualidade. Viúva, era considerada entre os mais nobres e mais ricos de Roma. Pelos méritos e pregações de São Francisco, recebeu do Senhor' tamanha graça que parecia outra Madalena cheia de lágrimas e devoção pelo amor e ternura de Cristo.
Escreveram, pois, a carta como lhes ordenava são Francisco e um irmão foi procurar um outro para levá-la à tal senhora, quando se ouviu bater à porta. Um frade foi abri-la e viu a Senhora Jacoba que chegara apressada para visitar São Francisco.
Ao vê-la um dos frades foi às pressas ter com o Seráfico Pai, para anunciar-lhe com alegria que a Senhora Jacoba havia chegado de Roma com seu filho e várias pessoas para visitá-lo. E perguntou-lhe: "Que devemos fazer, pai? Deixamo-la entrar e vir ter contigo?" Falava assim porque, por vontade do Seráfico Pai, havia sido decidido que nenhuma mulher entrasse na clausura, a fim de preservar a boa ordem e a piedade do lugar. Ao que o santo respondeu: "Não tem cabimento observar esta regra com respeito a tal dama, porque uma grande fé e uma grande devoção fizeram-na vir de tão longe". A Senhora Jacoba foi, portanto, conduzida à presença do santo e ao vê-lo começou a derramar copiosas lágrimas. E maravilha! Ela trazia um pedaço de fazenda escura, isto é, cor de cinza, para confecção de um hábito e tudo quanto havia sido mencionado na carta, como se a houvesse recebido.
E explicou aos frades: "Foi-me revelado em espírito, meus irmãos, enquanto rezava: apressa-te a visitar teu pai São Francisco, pois se tardares mais um pouco não o encontrarás em vida. Leva-lhe aquela fazenda para o habito e os ingredientes para lhe preparar os bolinhos. E ainda leva contigo uma grande quantidade de cera para confeccionar os círios e também incenso". Tudo aquilo, exceto o incenso, havia sido mencionado na carta que lhe deveria ser entregue.
Assim, aquele que inspirou aos três magos a irem com presentes render homenagem a seu Filho no dia do seu nascimento, inspirou esta nobre senhora a proceder da mesma maneira, para com o seu mui caro servidor no dia de sua morte, na realidade de seu verdadeiro nascimento. A Senhora Jacoba preparou, pois, os bolinhos que o santo pai havia desejado, mas ele comeu pouco, porque estava muito próximo da morte. Mandou igualmente que se fizessem muitos círios para iluminar seu santo corpo depois da morte. Com a fazenda os frades confeccionaram um habito em que foi envolvido. Ele mesmo ordenara aos frades que forrassem o tecido com saco, em sinal da santíssima humildade e da soberana pobreza. E na mesma semana em que velo a Senhora Jacoba o santo pai emigrou para o Senhor.
DÉCIMA PRIMEIRA PARTE
De seu amor pelas criaturas, e do das criaturas para com ele
CAPÍTULO 113
Do amor todo especial que tinha pelos pássaros chamados cotovias de capuz
por serem a imagem do bom religioso
Completamente absorvido pelo amor de Deus, São Francisco via a bondade não somente na sua alma adornada da perfeição das virtudes, mas também em todas as criaturas. Eis por que as amava de modo particular e profundo, especialmente aquelas em que vislumbrava a representação de uma qualidade divina ou de algo que pertencesse à Ordem.
Entre todas as aves, amava especialmente a uma pequenina chamada cotovia, ou como se diz comumente "cotovia de capuz". Dizia dela: "A irmã cotovia ostenta seu capuz como um religioso, e é um humilde pássaro que percorre voluntariamente os caminhos para encontrar qualquer grão e, embora o encontre no esterco o retira e come. No seu vôo canta suavemente os louvores ao Senhor, como os bons religiosos já desligados da terra, cujos pensamentos estão sempre voltados para o céu e o fervor para o louvor a Deus. Suas vestes, isto é, suas plumas, são semelhantes à terra dando deste modo exemplo aos religiosos a não levarem vestes finas e de bela coloração, mas hábitos de preço e cor semelhante à terra que é o mais vil dos elementos.
Por ver em tais avezinhas todas estas qualidades, gostava muito de encontrá-las. Por isso pediu ao Senhor que estas mesmas avezinhas lhe testemunhassem um sinal de amor na hora de sua morte. Na tarde de sábado antes da noite em que morreu, após as Vésperas, um bando de cotovias se reuniu sobre o teto da casa onde jazia deitado. Puseram-se a voar em volta da casa, circundando o telhado e cantando docemente, como se louvassem ao Senhor.
CAPÍTULO 114
Como pretendeu persuadir o imperador a editar um decreto
que no dia de Natal os homens alimentassem generosamente as aves,
o boi, o asno e os pobres
Nós que vivemos com São Francisco e escrevemos estas palavras, somos testemunhas de que o ouvimos dizer várias vezes: "Se eu pudesse falar com o imperador, suplicar-lhe-ia que editasse, por amor de Deus, uma lei proibindo se capturarem ou matarem nossas irmãs cotovias, ou lhes causarem qualquer mal. E ordenando ainda que todos os prefeitos das cidades e todos os senhores de burgos e aldeias fossem compelidos todos os anos, no dia de Natal, a obrigarem o povo a lançar trigo e outros grãos pelos caminhos, fora das vilas e dos burgos para que nossas irmãs cotovias tivessem o que comer, como também as outras aves, em tão grande dia de festa". E por respeito para com o Filho de Deus a quem nesta noite a Santíssima Virgem deu à luz numa manjedoura entre o boi e o asno, que quem quer que possuísse um destes animais deveria alimentá-lo generosamente nesta mesma noite. Do mesmo modo, neste dia os pobres deveriam ser abundantemente providos pelos ricos.
E porque tinha um grande respeito pela Natividade de Nosso Senhor, como pelas outras solenidades, costumava dizer: "Depois que o Senhor nasceu por nós, urgia que fôssemos salvos". Era, pois, seu desejo que neste dia todos os cristãos se alegrassem no Senhor e, por amor daquele que se deu a si mesmo por nós, todos demonstrassem grande liberalidade, não somente com os pobres, mas também com os animais e as aves.
CAPÍTULO 115
De seu amor pelo fogo
quando com este lhe fizeram uma cauterização
Obrigado pela obediência ao bispo de Óstia e Frei Elias, ministro geral da Ordem, o Seráfico Pai chegou ao eremitério de Fonte Colombo, próximo a Rieti, para tratar dos olhos. Certo dia, o médico veio vêlo e, depois de examinar-lhe a enfermidade, disse-lhe que desejava cauterizá-lo do maxilar ao olho que estava mais doente. São Francisco, no entanto, não queria começar o tratamento antes da chegada de Frei Elias que havia declarado expressamente que desejava estar presente antes que o médico começasse o tratamento.
Causava também ao santo certo pesar preocupar-se tanto consigo mesmo e por isso hesitava e desejava que Frei Elias ordenasse o que julgasse conveniente.
Impedido pelos negócios do governo da Ordem, o ministro geral não pôde vir, sendo esperado em vão. Vendo que Frei Elias não vinha, São Francisco permitiu, finalmente, que o médico fizesse como entendesse. Tendo o médico colocado o ferro no fogo para a cauterização, São Francisco, para tranqüilizar seu espírito contra o medo do fogo, começou a falar-lhe nestes termos: "Meu irmão Fogo, tu és a mais nobre e a mais útil de todas as criaturas; sê-me, pois, favorável nesta hora, porque sempre te amei e continuarei a amar-te por aquele que te criou. Peço-te, portanto, que moderes teu calor a fim de que eu possa suportá-lo". Tendo terminado sua prece, fez sobre o fogo o sinal-da-cruz.
Nós que estávamos com ele nesta ocasião, retiramo-nos por piedade e compaixão, deixando-o sozinho com o medico. Terminada a cauterização, voltamos para junto dele e ouvimos de sua boca estas palavras: “Homens medrosos e de pouca fé, por que fugistes? Em verdade vos digo, não senti nenhuma dor, nem mesmo a do fogo. E se a cauterização não produzir efeito, repeti-la-emos com melhor resultado"
O médico ficou emocionado e disse: "Meus irmãos, senti grande temor de que tão dolorosa cauterização não pudesse ser suportada por ele que está tão fraco e doente, quando homens muito mais robustos não a suportam. Mas ele não se moveu nem mostrou qualquer sinal de dor".
Com efeito, todas as veias da orelha e do sobrolho foram cauterizadas, sem que se obtivesse qualquer melhora. Outro médico perfurou-lhe as orelhas com um ferro em brasa, sem nenhum resultado.
Que ninguém se admire de que o fogo e as outras criaturas lhe obedecessem e o respeitassem. Nós que vivemos com ele vimos muitas vezes como as amava e se alegrava com elas. Seu espírito estava tão cheio de piedade e compaixão, que se entristecia quando as via tratadas com desprezo. Falava-lhes com alegria interior e exterior como se fossem dotadas de razão e aproveitava sempre estas ocasiões para, enternecido, louvar a Deus.
CAPÍTULO 116
Como não quis apagar o fogo que queimava suas calças
nem permitiu que o apagassem
De todas as criaturas inferiores e insensíveis, o santo tinha particular afeição pelo fogo por causa de sua beleza e utilidade. Eis por que não permitia jamais que o impedissem de realizar suas funções.
Um dia, quando se encontrava perto do fogo, seus calções de linho começaram a queimar-se à altura do joelho sem que ele desse conta disso. Embora sentisse o calor do fogo não quis apagá-lo. Seu companheiro, ao ver a fazenda pegar fogo, precipitou-se para apagá-lo, mas ele o impediu, dizendo: "Não, meu caríssimo irmão, não faças mal ao irmão Fogo!" E não permitiu de forma alguma que o irmão o apagasse.
Mas o irmão foi às pressas procurar o irmão guardião e o levou à presença de São Francisco. Imediatamente, contra a vontade deste último, o fogo foi extinto. Desde então, embora fosse indispensável fazê-lo, não queria jamais que se apagasse um fogo, uma lâmpada ou uma candeia, tal era o seu amor por este elemento.
Nem sequer permitia que um irmão atirasse sobre o fogo um tição fumegante, de um lugar a outro, como se costuma fazer. Antes, desejava que o pusessem cuidadosamente sobre o solo em sinal de respeito para com Deus de quem ele é criatura.
CAPÍTULO 117
Como não quis jamais vestir uma capa por não ter permitido
que o fogo a consumisse
Como passasse a Quaresma no monte Alverne, um dia, à hora da refeição, um de seus companheiros acendeu o fogo na cela onde tomaria refeição. Tendo feito o fogo, foi procurar São Francisco que se encontrava em outra cela, onde rezava, levando-lhe um missal para que lesse o Evangelho do dia. Com efeito, o Seráfico Pai desejava sempre ouvir o Evangelho da missa do dia quando não podia assistir à celebração eucarística.
Quando retornou à cela para fazer a refeição, o fogo já havia atingido o teto que ardia em chamas. Seu companheiro procurava apagá-lo, mas em vão, pois o santo não queria ajudá-lo, e era-lhe de todo impossível apagá-lo sozinho. Apanhando uma capa com que se cobrira durante a noite, retirou-se para o bosque.
Quando os outros frades que moravam mais longe da cela a viram arder em chamas, acorreram todos e apagaram o fogo. Pouco depois, São Francisco voltou para a refeição. Depois, disse a seus companheiros: "Não quero mais usar esta capa porque, por avareza, não permiti que o irmão Fogo a devorasse".
CAPÍTULO 118
Como devotava particular amor à água,
às pedras, ao bosque e às flores
Depois do irmão Fogo, amava de modo todo particular a água porque simboliza a santa penitência e as tribulações pelas quais as almas enxovalhadas são purificadas e porque a primeira ablução da alma se faz com a água do batismo.
Quando lavava as mãos procurava um lugar apropriado de modo que a água que caísse não fosse calcada aos pés. Quando andava por sobre pedras, fazia-o com grande reverência e respeito por amor àquele que disse ser pedra. E quando recitava o Salmo "Sobre o rochedo me ergueste..." fazia-ócom grande respeito e devoção, e dizia: "Sobre o rochedo debaixo de meus pés tu me ergueste".
E recomendava ao irmão que cortava e preparava a lenha para o fogo que jamais abatesse a árvore inteira, mas cortasse de maneira que lhe restasse sempre uma parte intata por amor daquele que quis realizar nossa salvação sobre o lenho da cruz.
Costumava dizer ao irmão que tomava conta do jardim que não ocupasse todo o terreno com legumes, mas reservasse uma parte para as árvores que, em seu tempo, produzem nossas irmãs flores, por amor para com aquele que disse: "a flor dos campos e os lírios dos vales".
Recomendava ainda ao jardineiro que reservasse sempre uma parte do jardim para as ervas odoríferas e plantas que produzem belas flores a fim de que, em seu tempo, elas convidassem ao louvor de Deus os homens que vissem tais ervas e flores. Pois toda criatura diz e proclama: "Deus me criou para ti, ó homem". Nós que vivemos com ele vimo-lo rejubilar-se interior e exteriormente à vista de todas as criaturas. Era tal o seu amor por estas maravilhosas criaturas que, ao tocá-las ou vê-las, seu espírito parecia não mais pertencer à terra, mas ao céu. Por causa do grande consolo que recebeu destas criaturas, compôs pouco antes de sua morte os "Louvores do Senhor nas suas criaturas" para incitar os corações dos que os ouvissem a louvar a Deus e para louvar, ele próprio, ao Senhor nas suas criaturas.
CAPÍTULO 119
Como exaltava o sol e o fogo acima
de todas as criaturas
Acima de todas as criaturas destituídas de razão, São Francisco nutria um amor todo particular pelo sol e pelo fogo. Costumava dizer, com efeito: "De manhã, quando o sol se levanta, todos os homens deveriam louvar a Deus que o criou para nossa utilidade, pois é por ele que nossos olhos São iluminados durante o dia. Do mesmo modo, à tarde, quando desce a noite, todos os homens deveriam glorificar a Deus pelo nosso irmão Fogo pelo qual nossos olhos são iluminados durante a noite. Na verdade, somos todos como cegos e o Senhor ilumina nossos olhos por meio destes nossos irmãos. Portanto, devemos louvar de maneira toda especial nosso Criador por causa destas e de todas as outras criaturas, das quais nós nos servimos cada dia".
E foi isto que nosso pai São Francisco fez durante toda sua vida.
Além disso, quando a doença se agravou ainda mais, punha-se a cantar os "Louvores do Senhor através de suas criaturas" que compusera tempos atrás. E fazia que fossem cantados também por seus companheiros para que, pensando no louvor do Senhor, esquecessem a aspereza de suas penas e de suas enfermidades.
Porque considerava o sol a mais bela das criaturas - pois tinha o privilégio de ser semelhante a Deus - e porque na Sagrada Escritura o próprio Deus intitulou-se a si mesmo como "Sol da Justiça", pôs o seu nome à testa dos Louvores que compôs, quando o Senhor lhe assegurou que entraria no seu reino, e denominou-os "Cântico do Irmão Sol".
CAPÍTULO 120
Eis o "Cântico das Criaturas" que o Seráfico Pai compôs
quando o Senhor lhe assegurou que entraria no seu reino:
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E .homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol
Que clareia o dia
E com sua 'luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as estrelas
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Água
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.
DÉCIMA SEGUNDA PARTE
De sua morte e da alegria que experimentou quando conheceu
que a morte estava próxima
CAPÍTULO 121
Da resposta que deu a Frei Elias por lhe ter este censurado
a multa alegria que manifestava
Como se encontrasse doente no palácio episcopal de Assis e a mão do Senhor pesasse sobre ele com mais força do que de costume, o povo de Assis começou a temer que ele morresse à noite e os frades retirassem o seu santo corpo, transladando-o para outra cidade. Decidiram, por isso, que toda a noite um grupo de cavaleiros montasse guarda em torno dos muros do palácio.
Entrementes o Seráfico Pai ordenou que seus companheiros lhe cantassem os "Louvores do Senhor", para reconfortar o seu espírito e impedi-lo de desfalecer por causa das acerbas dores que o afligiam. Ordenou que fizessem o mesmo durante a noite, para edificação e consolação dos leigos que, por sua causa, velavam fora do palácio.
Mas Frei Elias, vendo que São Francisco se reconfortava no Senhor e se fortalecia apesar de seus graves sofrimentos, disse-lhe: "Irmão caríssimo, sinto-me grandemente consolado e edificado pela alegria que experimentas e mostras a teus companheiros, nas tuas enfermidades. Não há dúvida de que os habitantes desta cidade te veneram como a um santo. Todavia, como acreditam firmemente que estás próximo da morte, por causa de tua moléstia incurável, ao ouvir-te assim cantar os Louvores do Senhor, dia e noite, poderão dizer: 'Como pode mostrar tamanha alegria, se está à morte? Deveria antes pensar e meditar"'.
Ao ouvi-lo, o santo pai replicou-lhe: "Lembra-te da visão que tiveste em Foligno, na qual, segundo me disseste, te foi revelado que eu não viveria mais de dois anos? Antes desta visão, pela graça de Deus que suscita tudo que há de bom no coração e inspira palavras santas nos seus servos, meditei continuamente, de dia e de noite, sobre meu fim. Mas depois da revelação que tiveste, fui levado a meditar mais ainda sobre minha morte..."
Em seguida concluiu com grande unção e fervor: "Deixa-me, irmão, alegrar-me no Senhor e cantar seus louvores no meio de meus sofrimentos porque, pela graça do Espírito Santo, eu estou tão unido a meu Senhor que, por sua misericórdia, posso muito bem rejubilar-me no Altíssimo".
CAPÍTULO 122
Como induziu o médico a lhe revelar quantos dias
de vida lhe restavam
Por este tempo um médico de Arezzo, chamado Bom João, muito ligado ao santo, veio lhe fazer uma visita no palácio episcopal de Assis. Em conversa com ele São Francisco o interpelou nestes termos: "Que pensas tu, irmão, de minha enfermidade?" Não quis chamá-lo pelo seu verdadeiro nome por não querer jamais chamar a ninguém de "bom", em respeito para com o Senhor que disse: "Ninguém é bom, senão Deus". Do mesmo modo não chamava a ninguém de mestre ou pai, nem mesmo nas suas cartas, por respeito para com o Senhor que dissera também: "Não vos chameis de mestre, pois não tendes senão um mestre... Não chameis a ninguém de pai na terra, pois não tendes senão um, o Pai celeste".
Ao ouvi-lo, o médico respondeu: "Irmão, ficarás bom, pela graça de Deus". Mas São Francisco replicoulhe: "Dize-me a verdade! Que pensas das minhas enfermidades? Não tenhas medo de me dizer a verdade, pois, pela graça de Deus, não sou tão medroso a ponto de temer a morte. Com a graça do Espírito Santo, estou tão unido a meu Senhor que igualmente estarei contente de viver ou de morrer".
O médico falou-lhe então com toda a franqueza: "Pai, mediante os conhecimentos de medicina, tua moléstia é incurável; penso que morrereis no fim de setembro ou a 4 de outubro".
Ouvindo isto, o santo patriarca estendeu as mãos para o Senhor com grande devoção e respeito, excluindo, com grande alegria de corpo e de alma: "Bendita sejas tu, minha irmã Morte".
CAPÍTULO 123
Como, tão logo soube da Iminência de sua morte,
pediu que lhe cantassem os "Louvores"
Depois disto um frade lhe disse: "Pai, tua vida e teu exemplo foram e ainda são uma luz e um espelho não somente para teus frades mas também para toda a Igreja, e o mesmo será a tua morte. Assim, embora ela seja motivo de tristeza e de dor para teus frades, para ti será uma consolação e uma alegria infinita. Passarás de um grande trabalho ao repouso, de numerosas penas e tentações para a paz eterna, da pobreza material, que tu sempre amaste e perfeitamente serviste, para a vida eterna, onde vereis o Senhor teu Deus face a face, a Ele que neste mundo amaste e desejaste com um amor tão ardente".
Em seguida acrescentou com toda a franqueza: "Pai, sabe em verdade que se o Senhor não te enviar um remédio do céu, tua moléstia é incurável e que te resta, conforme afirmam os médicos, poucos dias de vida. Digo-te isto para reconfortar teu espírito e para que te fortaleças interior e exteriormente no Senhor, a fim de que os frades e os leigos que te visitam te encontrem sempre alegre no Senhor e que depois de tua morte isto seja uma recordação perpétua para os que a presenciaram ou ouviram falar como foram tua vida e tua morte".
Mas o santo, embora sofresse mais do que de costume, parecia estar possuído de uma nova alegria, por saber que sua irmã Morte estava próxima. Com grande fervor de espírito louvou o Senhor, dizendo: "Já que apraz ao Senhor que eu morra brevemente, chamai-me Frei Angelo e Frei Leão para que eles cantem a minha irmã Morte".
Quando os dois frades se apresentaram diante dele, cheios de piedade e tristeza, e com olhos banhados em lágrimas, começaram a cantar "O Cântico do Irmão Sol e das outras criaturas do Senhor", que ele próprio compusera.
Ao chegarem ao penúltimo verso, o santo compôs mais alguns versos em louvor irmã Morte, dizendo:
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Aí dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
CAPÍTULO 124
Como abençoou a cidade de Assis,
quando era transportado a Santa Maria para morrer
Enquanto permanecia no palácio do bispo de Assis, o Seráfico Pai foi advertido, não só por inspiração do Espirito Santo como também pela palavra dos médicos, de que sua morte estava próxima. Sentindo que seu estado se agravava de dia para dia, pois suas forças declinavam, fez-se transportar sobre uma padiola a Santa Maria da Porciúncula, a fim de que sua vida corporal terminasse no mesmo lugar onde começara a conhecer a luz e a vida do espírito.
Quando os carregadores chegaram ao hospital que havia a meio caminho entre Assis e Santa Maria, o santo ordenou-lhes que pusessem a padiola no chão. Como não visse quase nada por causa de sua longa e grave enfermidade dos olhos, pediu que o virassem para a cidade de Assis e, erguendo-se um pouco, abençoou a cidade, dizendo: "Senhor, sei que esta cidade foi outrora lugar e morada de homens iníquos. Mas agora vejo que na tua grande misericórdia, no momento escolhido por ti, mostra-lhe tua imensa compaixão. Somente por tua bondade a escolheste para ser morada e habitação dos que te conhecem na verdade, rendem glória a teu santíssimo nome e espalham entre o povo cristão o aroma de sua santa vida, da verdadeira ciência e da perfeição evangélica. Rogo-te, pois, meu Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia, que não olhes para as nossas ingratidões, mas te lembres sempre da grande compaixão que tiveste para com ela, a fim de que esta cidade permaneça sempre como habitação e morada dos que te conhecem verdadeiramente e glorificam teu bendito e mui glorioso nome pelos séculos dos séculos. Amém".
Proferidas estas palavras, foi conduzido a Santa Maria, onde, com quarenta anos de idade e vinte de perfeita penitência, emigrou, no dia 4 de outubro do ano do Senhor de 1226, para o Senhor Jesus Cristo, a quem havia amado com todo o coração, com toda sua alma, com todas as suas forças, com ardente desejo e com todo seu afeto; seguindo-o com toda perfeição, correndo atrás de suas pegadas e chegando, por fim, à glória daquele que reina com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.
Aqui termina o Espelho da Perfeição do estado de Frade Menor, no qual se reflete a perfeição de sua vocação.
Louvor e glória a Deus Pai e ao Pilho e ao Espírito Santo.
Aleluia. Aleluia. Aleluia.
Honra e glória sejam dadas à Gloriosa Virgem Maria.
Aleluia. Aleluia. Aleluia.
Exaltemos o seu santo servidor Francisco. Aleluia. Amém.
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