Dos santos sagrados Estigmas de São Francisco e de suas Considerações
Nesta parte, veremos, com devota consideração, os gloriosos, sagrados e santos estigmas do bem-aventurado pai nosso monsior São Francisco, que ele recebeu de Cristo sobre o santo monte do Alverne. E como os ditos estigmas foram cinco, segundo as cinco chagas de nosso Senhor Jesus Cristo, este tratado vai ter cinco considerações.
1.A primeira consideração será sobre o modo como São Francisco chegou ao monte santo do Alverne.
2.A segunda consideração será sobre a vida e conversão que ele teve e manteve com os seus companheiros no dito monte.
3.A terceira consideração será sobre a aparição seráfica e a impressão dos sagrados estigmas.
4.A quarta consideração será como São Francisco desceu do monte Alverrne depois que recebeu os agrados estigmas, e voltou a Santa Maria dos Anjos.
5.A quinta consideração será sobre certas aparições e revelações divinas feitas depois da morte de São Francisco a santos frades e outras pessoas devotas sobre os sagrados e gloriosos estigmas.
Primeira consideração sobre os sagrados santos estigmas.
Quanto à primeira consideração, devemos saber que São Francisco, com a idade de quarenta e três anos, em 1224, inspirado por Deus, moveu-se do vale de Espoleto para ir à Romanha com Frei Leão, seu companheiro. E na viagem passou ao pé do castelo de Montefeltro, onde havia então um grande banquete com cortejo pela cavalaria nova de um dos condes de Montefeltro. Quando São Francisco soube dessa solenidade que ali se realizava, e que lá estavam reunidos muitos gentis-homens de diversos países, disse a Frei Leão: “Vamos lá em cima para essa festa porque, com o auxílio de Deus, faremos algum fruto espiritual”.
Entre os outros gentis-homens que tinham ido daquela região para aquele cortejo, havia um grande e também rico homem da Toscana, que se chamava Orlando de Chiusi de Casentino, o qual, pelas coisas maravilhosas que tinha ouvido da santidade e dos milagres de São Francisco, tinha grande devoção para com ele e tinha muita vontade de vê-lo e de ouvi-lo pregar.
São Francisco chegou ao castelo, entrou e foi à praça, onde estava reunida toda a multidão dos gentis-homens, e com fervor de espírito subiu sobre um murinho e começou a pregar, propondo como tema da pregação esta palavra em vulgar: Tanto é o bem que eu espero, que toda pena é um prazer para mim. E sobre este tema, por ditado do Espírito Santo, pregou tão devota e tão profundamente, provando-o pelas diversas penas e martírios dos santos Apóstolos e dos santos Mártires, e pelas duras penitências dos santos Confessores, pelas múltiplas tribulações e tentações das santas Virgens e dos outros Santos, que toda as pessoas estavam com os olhos e a mente suspensos olhando para ele, e escutavam como se estivesse falando um Anjo de Deus. Entre eles, o dito monsior Orlando, tocado por Deus no coração pela maravilhosa pregação de São Francisco, resolveu no coração que ia tratar e discorrer com ele, depois da pregação, sobre as coisas de sua alma.
Por isso, terminada a pregação, levou São Francisco à parte e lhe disse: “Ó pai, eu gostaria de tratar contigo da salvação de minha alma”. São Francisco respondeu: “Muito me agrada; mas, nesta manhã, ide honrar os vossos amigos que vos convidaram para a festa e comei com eles, e, depois da refeição, falaremos os dois quanto vos agradar”.
Então monsior Orlando foi jantar e, depois de jantar voltou a São Francisco e tratou e dispôs com ele plenamente os fatos de sua alma. No fim, esse monsior Orlando disse a São Francisco: “Eu tenho na Toscana um monte muito devoto, que se chama Monte Alverne, que é muito solitário e selvagem, muito adequado para quem quiser fazer penitência ou para quem deseja vida solitária, num lugar afastado das pessoas. Se ele te agradar, eu vou dá-lo de boa vontade a ti e a teus companheiros, pela salvação de minha alma”.
Ouvindo São Francisco essa oferta tão liberal daquilo que ele tanto desejava, ficou muito alegre, louvando e agradecendo primeiro a Deus e depois ao predito monsior Orlando, e lhe disse assim: “Monsior, quando tiverdes voltado para vossa casa, eu vos mandarei companheiros meus e vós lhes mostrareis o monte. Se lhes parecer adequado para a oração e para fazer penitência, eu aceito desde agora a vossa caridosa oferta”.
Dito isso, São Francisco foi embora. Quando acabou sua viagem, voltou a Santa Maria dos Anjos. E monsior Orlando, de maneira semelhante, acabada a solenidade daquele cortejo, voltou ao seu castelo, que se chamava Chiusi, e estava perto do Alverne, a uma milha.
Então, quando São Francisco voltou a Santa Maria dos Anjos, mandou dois de seus companheiros ao referido monsior Orlando. Quando chegaram a ele, foram recebidos com grande alegria e caridade. E como queria mostrar-lhes o monte Alverne, mandou com eles bem cinqüenta homens armados, para que se defendessem dos animais selvagens. Assim acompanhados, os frades subiram ao monte e o revisaram diligentemente. No fim, chegaram a uma parte do monte muito devota e muito adequada para contemplar, na qual havia um pouco de terreno plano. Escolheram esse lugar para morarem, eles e São Francisco.
Juntos, com a ajuda daqueles homens armados, que estavam na sua companhia, fizeram uma pequena cela de ramos de árvores. E assim aceitaram e tomaram, no nome de Deus, o monte Alverne e o lugar dos frades nesse monte. Partiram e voltaram a São Francisco. Quando chegaram a ele, contaram como e de que modo tinham tomado o lugar no monte Alverne, muito adequado para a oração e a contemplação. Quando ouviu essa notícia, São Francisco se alegrou muito e, louvando e agradecendo a Deus, disse a esses frades com o rosto alegre: “Meus filhos, estamos nos aproximando de nossa quaresma de São Miguel Arcanjo: creio firmemente que é vontade de Deus que façamos esta quaresma no monte Alverne, que por disposição divina foi-nos aprontado para que, para honra e glória de Deus e de sua gloriosa Virgem Maria e dos santos Anjos nós mereçamos de Deus, pela penitência, a consolação de consagrar aquele monte abençoado”.
Dito isso, São Francisco tomou consigo Frei Masseo de Marignano de Assis, que era homem de muito bom senso e de grande eloqüência, e Frei Ângelo Tancredi de Rieti, que era muito gentil-homem e no século tinha sido cavaleiro, e Frei Leão, que era homem de grande simplicidade e pureza (por isso São Francisco o amava muito, e lhe revelava quase todos os seus segredos).
Com esses três frades, São Francisco se pôs em oração e depois, acabada a oração, recomendou às orações dos frades que ficavam ele mesmo e os preditos companheiros e se moveu com aqueles três no nome de Jesus Cristo crucificado para ir ao monte Alverne. Movendo-se, São Francisco chamou um dos três, que foi Frei Masseo, e lhe disse assim: “Tu, Frei Masseo, serás nosso guardião e nosso prelado nesta viagem, isto é, enquanto nós formos e ficarmos juntos, e assim observaremos nosso costume de dizermos o ofício, ou falar de Deus, ou manter silêncio, não pensaremos antes nem em comer nem em beber ou dormir: quando for hora de nos abrigarmos, pediremos um pouco de pão e vamos ficar e repousar no lugar que Deus nos aprontar”.
Então esses três companheiros inclinaram a cabeça e, fazendo o sinal da cruz, foram em frente.Na primeira tarde chegaram a um lugar dos frades e aí se albergaram. Na segunda tarde, pelo mau tempo e porque estavam cansados, não puderam chegar a um lugar dos frades nem a vila alguma. Sobrevindo a noite com mau tempo, recolheram-se para se albergar em uma igreja abandonada e desabitada, e aí se puseram a repousar.
Os companheiros dormiram e São Francisco se pôs em oração. E eis que, na primeira vigília da noite, veio uma grande multidão de demônios ferocíssimos, com rumor e um grandíssimo estropício. Começaram a dar-lhe fortemente combate e aborrecimento: um o pegava de um lado e outro do outro; um puxava-o para baixo e outro para cima; um ameaçava-o de uma coisa e outro o criticava por outra. E assim, em diversos momentos, engenhavam-se por perturba-lo na oração. Mas não podiam, porque Deus estava com ele. Por isso, quando São Francisco tinha suportado bastante dessas batalhas dos demônios, começou a gritar em altas vozes: “Ó espíritos danados, vós não podeis nada a não ser o que vos permite a mão de Deus. Pois da parte de Deus onipotente eu vos digo que façais no meu corpo o que Deus permitir, pois vou suportar de boa vontade, porque não tenho inimigo maior do que o meu corpo. Então, se me vingais do meu inimigo, é um grande favor que me fazeis”.
Então os demônios, com grande ímpeto e fúria, agarram-no e começaram a arrastá-lo pela igreja, fazendo-lhe muito mais moléstia e aborrecimento do que antes. Então São Francisco começou a gritar e a dizer: “Senhor meu Jesus Cristo, eu te agradeço por tanto amor e caridade que demonstras para comigo, pois isso é sinal de grande amor, quando o Senhor pune o servo por todos os seus defeitos neste mundo para que não seja punido no outro. E eu estou pronto para suportar alegremente toda pena e toda adversidade que tu, meu Deus, me quiseres mandar por meus pecados”.
Então os demônios, confusos e vencidos pela sua constância e paciência, foram embora. E São Francisco, com fervor de espírito, saiu da igreja e entrou em um bosque que havia ali perto. Lá lançou-se em oração e, com súplicas e lágrimas, batendo no peito, procurou encontrar Jesus Cristo esposo e dileto de sua alma. Finalmente, quando o encontrou no segredo de sua alma, ora lhe falava reverente como ao Senhor, ora respondia como ao seu juiz, ora lhe suplicava como ao pai, ou conversava com ele como um amigo.
Naquela noite e naquele bosque, os seus companheiros, porque tinham acordado e estavam escutando e considerando o que fazia, viram-no e o ouviram rogar a divina misericórdia pelos pecadores, com prantos e vozes. Foi então ouvido e visto chorando em alta voz a paixão de Cristo, como se a visse corporalmente. Nessa mesma noite viram-no orar, com os braços postos em cruz, suspenso e levantado da terra, por muito tempo, e cercado por uma nuvem resplandecente. E assim, nesses santos exercícios, passou toda aquela noite sem dormir.
De manhã, conhecendo os companheiros que, pela fadiga da noite que passou sem dormir, São Francisco estava com o corpo muito enfraquecido e mal teria podido andar a pé, foram a um pobre trabalhador da região e lhe pediram por amor de Deus o seu burrinho emprestado para Frei Francisco, seu pai, que não podia andar a pé. Ouvindo que lembravam Frei Francisco, perguntou-lhes: “Vós sois dos frades daquele Frei Francisco de Assis, de quem falam tanto bem?”. Os frades responderam que sim e na verdade era para ele que estavam pedindo a montaria. Então o bom homem, com grande devoção e solicitude aprontou o burrinho e o levou a São Francisco e, com grande reverência, fez com que montasse. E foram adiante; e o homem com eles, atrás do burrinho.
Quando já tinha caminhado um pouco, disse o aldeão a São Francisco: “Diz-me, tu és Frei Francisco de Assis?”. São Francisco respondeu que sim. “Então te esforça, disse o aldeão, por ser tão bom como és tido por toda gente, porque muitos têm grande fé em ti. Então eu te admoesto que em ti não haja outra coisa senão o que o povo espera”. Ouvindo essas palavras, São Francisco não se incomodou de ser admoestado por um aldeão, e não disse consigo: “Que animal é este que me admoesta? como diriam hoje muitos soberbos que usam o hábito. Mas saltou na mesma hora do burro para o chão, ajoelhou-se diante do homem e lhe beijou os pés, agradecendo-lhe humildemente porque ele se dignara admoesta-lo tão caridosamente. Então o vilão, com os companheiros São Francisco levantaram-no do chão com grande devoção e o repuseram no burro. E foram adiante.
Quando chegaram talvez à metade do monte, como calor era muito grande e a subida cansativa, o aldeão ficou com uma enorme sede, tanto que começou a gritar atrás de São Francisco dizendo: “Ai de mim! Estou morrendo de sede. Se eu não tiver alguma coisa para beber já vou me sufocar”. Por isso, São Francisco desceu do burro e se pôs em oração. Ficou ajoelhado, com as mãos erguidas para o céu até que soube, por revelação, que Deus o escutara.
Então disse ao aldeão: “Corre, vai depressa àquela pedra, e lá encontrarás a água viva que Cristo, agora, em sua misericórdia, fez sair daquele pedra”. O homem correu para o lugar que São Francisco tinha mostrado e encontrou uma fonte belíssima, produzida pela virtude da oração de São Francisco de uma rocha duríssima, bebeu copiosamente e ficou confortado.
E ficou bem claro que aquela fonte foi produzida por Deus milagrosamente a pedido de São Francisco, porque nem antes nem depois viu-se jamais uma fonte de água naquele lugar; nem numa grande distância dali. Feito isso, São Francisco com o aldeão e com os companheiros agradeceram a Deus pelo milagre mostrado; e foram adiante.
Quando chegaram perto do pé da própria rocha do Alverne, São Francisco quis repousar um pouco sob um carvalho que havia no caminho, e ainda há. Estando embaixo dele, São Francisco começou a considerar a disposição do lugar e da região. Estando nessa consideração, eis que veio um grupo grande de diversos pássaros que, cantando e batendo as asas, mostravam todos muita festa e alegria. Cercaram São Francisco de tal modo que alguns ficaram em cima de sua cabeça, outros nos ombros, alguns nos braços e outros no regaço, e mais alguns aos pés, ao redor. Como os seus companheiros e o aldeão viram isso e se admiraram, São Francisco todo alegre em espírito disse assim: “Eu creio, queridos irmãos, que nosso Senhor Jesus Cristo gosta que moremos neste monte solitário, porque os nossos irmãos e irmãs pássaros estão mostrando tanta alegria pela nossa vinda”. Ditas essas palavras, levantaram-se e foram adiante, chegando finalmente ao lugar que seus companheiros já tinham tomado antes.
E isto é quanto à primeira consideração, isto é, como São Francisco chegou ao monte santo do Alverne.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Segunda consideração dos sagrados santos estigmas.
A segunda consideração é sobre o comportamento de São Francisco com os companheiros no referido monte.
Quanto a esta é preciso saber que, quando monsior Orlando ouviu que São Francisco com três companheiros tinha subido para morar no monte Alverne, teve uma enorme alegria e, no dia seguinte, partiu com muitos do seu castelo e foram visitar São Francisco, levando pão, vinho e outras coisas para viver, para ele e para seus companheiros. Quando chegaram lá em cima, encontraram-nos em oração.
Chegaram perto deles e os saudaram. Então São Francisco se levantou e recebeu com grande caridade e alegria monsior Orlando com a sua companhia. Feito isso, puseram-se a conversar. Depois que conversaram, e São Francisco agradeceu pelo devoto monte que ele tinha dado e pela sua vinda, ele pediu que lhe fizesse construir uma pequena cela pobre ao pé de uma faia muito bonita, que estava uma pedrada longe do lugar dos frades, pois aquele lugar lhe parecia muito devoto e apto para a oração.
Monsior Orlando mandou construí-la imediatamente. Feito isso, como a noite vinha chegando e era hora de ir embora, São Francisco, antes que eles se fossem, pregou-lhes um pouco. Depois, quando tinha pregado e lhes dado a bênção, devendo monsior Orlando partir, chamou São Francisco e os companheiros à parte e lhes disse assim: “Meus queridos frades, não é minha intenção que passeis nenhuma necessidade corporal neste monte selvagem, de modo que não possais cuidar bem das coisas espirituais. Por isso eu quero, e isto vos digo por todas as vezes, que recorrais à minha casa para todas as vossas necessidades. E se fizerdes o contrário, eu vou ter isso como um mal”. Dito isso, foi embora com sua companhia e voltou para o castelo.
Então São Francisco mandou seus companheiros sentarem e os instruiu sobre o modo e a vida que deviam ter eles e quem quer que quisesse viver religiosamente nos eremitérios. E entre outras coisas impôs-lhes especialmente a observância da santa pobreza, dizendo: “Não olheis tanto a caridosa oferta de monsior Orlando que ofendais a nossa dama, a senhora santa pobreza. Tende como certo que quanto mais nos esquivarmos da pobreza tanto mais o mundo se esquivará de nós e mais necessidade padeceremos. Mas se nós abraçarmos bem apertada a santa pobreza, o mundo virá atrás de nós e nos nutrirá copiosamente. Deus nos chamou nesta santa religião pela salvação do mundo e estabeleceu este pacto entre nós e o mundo, que nós demos ao mundo bom exemplo e o mundo cuide nós em nossas necessidades. Perseveremos, portanto, na santa pobreza, porque ela é caminho de perfeição e é garantia e penhor das nossas riquezas”.
Depois de muitas palavras bonitas e devotas, e de ensinamentos sobre essa matéria, concluiu dizendo: “Este é o modo de viver, que eu imponho a mim e a vós. E como vejo que estou me aproximando da morte, quero ficar sozinho, recolher-me com Deus e chorar diante dele os meus pecados. E Frei Leão, quando lhe parecer bem, me levará um pouco de pão e um pouco de água. De modo algum permitais que venha a mim algum secular, mas vós respondereis a ele por mim”. Dizendo essas palavras, deu-lhes a bênção e foi para a cela da faia. Os companheiros ficaram no lugar, com o firme propósito de observar os mandamentos de São Francisco.
Daí a poucos dias, estando São Francisco ao lado da referida cela, considerando a disposição do monte e admirado das grandes rachaduras e aberturas de enormes rochas, pôs-se em oração. Foi-lhe então revelado por Deus que aquelas rachaduras tão maravilhosas tinham sido feitas milagrosamente na hora da paixão de Cristo, quando, conforme diz o Evangelista, as pedras se racharam. E foi Deus quem quis que isso aparecesse especialmente no monte Alverne, porque lá deveria renovar-se a paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, na sua alma por amor e compaixão, e no seu corpo pela impressão pela impressão dos sagrados santos estigmas.
Quando São Francisco teve essa revelação, fechou-se imediatamente na cela e se dispôs a pensar no mistério dessa revelação. E, desde então, São Francisco, pela contínua oração, começou a provar mais freqüentemente a doçura da divina contemplação, pela qual ele muitas vezes ficava tão arrebatado em Deus que os companheiros o viam elevado da terra e fora de si.
Nesses arrebatamentos contemplativos eram-lhe reveladas por Deus não só as coisas presentes e futuras mas até os pensamentos secretos e os desejos dos frades, como provou em si mesmo seu companheiro Frei Leão, naquele mesmo dia. O qual Frei Leão, suportando pelo demônio uma grandíssima tentação, não carnal mas espiritual, teve grande vontade de ter alguma coisa devota escrita de própria mão por São Francisco, pensando que, se a tivesse, a tentação iria embora, totalmente ou em parte. Tendo esse desejo, por vergonha e por reverência não tinha tido coragem de dize-lo a São Francisco.
Mas o Espírito Santo lhe revelou o que Frei Leão não disse. Por isso São Francisco chamou-o a si e fez que lhe levassem tinteiro, pena e papel. E escreveu com a própria mão uma lauda de Cristo, conforme o desejo do frade, e no fim colocou-lhe o sinal do Tau e lhe entregou dizendo: “Querido irmão, eu te dou este papel. Guarda-o diligentemente até a morte. Que Deus te abençoe e te guarde contra toda tentação. Não desanimes porque tens tentações, porque é então que eu te acho amigo e mais servo de Deus e mais te amo, quanto mais és combatido pelas tentações. Na verdade eu te digo que ninguém deve ter-se como perfeito amigo de Deus enquanto não tiver passado por muitas tentações e tribulações”.
Quando Frei Leão recebeu o escrito com a maior devoção e fé, toda tentação foi embora de repente. Voltando ao lugar, contou aos companheiros com grande alegria quanta graça Deus lhe tinha feito ao receber aquele escrito de São Francisco. Enrolando-o e guardando-o diligentemente, mais tarde os frades fizeram muitos milagres com ele.
Daquela hora em diante, o dito Frei Leão. Com grande pureza e boa intenção, começou a perscrutar e considerar solicitamente a vida de São Francisco. Por sua pureza ele mereceu ver muitas e muitas vezes São Francisco arrebatado em Deus e suspenso da terra, uma vez a três braças de altura, outra quatro, uma vez até na altura de uma faia e uma vez viu-o elevado tão alto no ar e cercado de tanto esplendor que mal podia enxerga-lo.
E que fazia este simples frade quando São Francisco estava tão pouco elevado da terra que ele podia alcança-lo? Ia piedosamente, abraçava-lhe os pés, beijava-os e dizia entre lágrimas: Meu Deus, tende misericórdia de mim pecador e, pelos méritos deste santo homem, fazei-me encontrar a vossa graça”. E, uma vez entre outras, estando ele assim abaixo dos pés de São Francisco quando ele estava tão elevado da terra que não podia toca-lo, viu uma cédula escrita com letras de ouro descendo do céu e colocando-se sobre a cabeça de São Francisco. Na cédula, estavam escritas estas palavras: Aqui está a graça de Deus. Depois que a leu, ele viu que ela voltava para o céu.
Pelo dom dessa graça de Deus que estava nele, São Francisco não só era arrebatado em Deus pela contemplação estática, mas algumas vezes era até confortado pela visita dos Anjos. Assim, estando um dia São Francisco a pensar em sua morte e na situação de sua religião depois de sua vida, e dizendo: “Senhor Deus, que será, depois de minha morte, de tua família pobrezinha, que por tua bondade confiaste a mim pecador? Quem a confortará? Quem a corrigirá? Quem te pedirá por eles?” e, dizendo palavras como essas, apareceu-lhe o Anjo mandado por Deus e confortando-o assim: “Eu te digo da parte de Deus que a profissão de tua Ordem não há de faltar até o dia do juízo, e não haverá pecador tão grande que, se amar de coração a tua Ordem, não há de encontrar misericórdia da parte de Deus. E ninguém que perseguir por maldade a tua Ordem vai poder viver. E mais, ningúem muito réu na tua Ordem, que não corrija sua vida, poderá perseverar na Ordem. Por isso não fiques triste se vês alguns frades não bons, que não observam a regra como devem, e não penses então que essa religião virá a esvair-se, pois sempre haverá nela muitos e muitos que observarão perfeitamente a vida do Evangelho de Cristo e a pureza da Regra; e aqueles que, depois da vida terrena, irão diretamente para a vida eterna sem passar absolutamente pelo purgatório. Alguns não vão observa-la perfeitamente e até os que vão para o paraíso passarão pelo purgatório, mas o tempo de sua purgação será confiado por Deus a ti. Mas não te preocupes com aqueles que não vão mesmo observar a Regra, diz Deus, porque nem ele se preocupa”. Ditas essas palavras, o anjo foi embora e São Francisco ficou todo confortado e consolado.
Aproximando-se, pois, a festa da Assunção de nossa Senhora, procurou a oportunidade de um lugar mais solitário e secreto em que pudesse fazer a mais à parte a quaresma de São Miguel Arcanjo, que começava na dita festa da Assunção. Por isso chamou Frei Leão e lhe disse assim: “Vai e fica na porta do lugar dos frades; quando eu te chamar, voltarás a mim”. Frei Leão foi e ficou à porta. São Francisco demorou um pouco e o chamou com força. Ouvindo chamar, Frei Leão voltou a ele e São Francisco lhe disse: “Filho, vamos procurar outro lugar mais secreto onde não me possas ouvir assim quando eu te chamar”.
Procurando, viram no lado do monte, na parte do sul, um lugar secreto e muito bem adequado, como ele queria. Mas não se podia chegar lá, porque na frente havia uma abertura na rocha muito terrível e amedrontadora. Com muita fadiga, puseram em cima dela um tronco como ponte e passaram para o outro lado. Então São Francisco mandou chamar os outros frades e lhes disse como queria fazer a quaresma de São Miguel naquele lugar solitário.
Pediu então que lhe fizessem uma pequena cela de modo que, por mais que ele gritasse, não poderia ser ouvido por eles. Feita a celinha de São Francisco, ele lhes disse: Voltai para o vosso lugar e deixai-me aqui sozinho pois, com a ajuda de Deus, pretendo fazer aqui esta quaresma sem estropício da mente. Por isso, nenhum de vós venha a mim, nem permitais que venha algum secular. Mas só tu, Frei Leão, uma só vez por dia virás a mim com um pouco de pão e de água, e à noite uma outra vez na hora de matinas. Então virás a mim em silêncio e, quando estiveres no começo da ponte, dirás: Domine, labia mea aperies. E se eu te responder, passa e vem à cela que vamos dizer juntos as matinas. Se eu não te responder, volta imediatamente”. São Francisco dizia isso porque algumas vezes era arrebatado em Deus e então não ouvia nem sentia nada com sentimentos do corpo. Dito isso, São Francisco deu-lhes a bênção, e eles voltaram para o lugar.
Chegando, portanto, a festa da Assunção, São Francisco começou a santa quaresma e, macerando o corpo com grandíssima abstinência e aspereza, mas confortando o espírito com fervorosas orações, vigílias e disciplinas, crescendo sempre nessas orações de virtude em virtude, dispunha sua alma a receber os mistérios divinos e os divinos esplendores, e o corpo a suportar as batalhas cruéis dos demônios, com os quais muitas vezes combatia sensivelmente. Entre outras, houve uma vez, naquela quaresma em que saindo um dia São Francisco da cela ficando bem perto dali em oração na cavidade de um rochedo, do qual, até lá embaixo no chão há uma grandíssima altura e um horrível e amedrontador precipício, de repente veio o demônio, com tempestade e grandíssimo rumor, em uma forma horrível, e bateu nele para joga-lo dali para baixo.
Como São Francisco não tinha para onde fugir e não podia suportar o aspecto crudelíssimo do demônio, voltou-se de repente com as mãos, o rosto e todo o corpo para a rocha e, recomendando-se a Deus, tateando com as mãos sem poder agarrar-se a nada. Mas, como aprouve a Deus, que nunca permite que seus servos sejam tentados mais do que podem agüentar, de repente, por milagre, a rocha em que ele se encostou foi cavada de acordo com a forma do seu corpo e o recebeu em si, como se ele tivesse posto as mãos e o rosto em cera líquida, assim na referida rocha ficou marcada a forma das mãos e do rosto de São Francisco. Assim, ajudado por Deus, escapou do demônio.
Mas o que o demônio não pode fazer então com São Francisco, joga-lo dali para baixo, aconteceu depois, um bom tempo depois da morte de São Francisco, a um seu querido e devoto frade. Ele, arrumando naquele mesmo lugar alguns troncos para poderem ir lá sem perigo por devoção a São Francisco e do milagre que lá fora feito, um dia o demônio o empurrou quando ele levava na cabeça um tronco grande que queria colocar, e o fez cair lá embaixo, com o tronco na cabeça. Mas Deus, que tinha salvado e preservado São Francisco de cair, pelos seus méritos salvou e preservou o devoto frade seu do perigo da queda.
Por isso, quando ia caindo, o frade se recomendou a São Francisco com grandíssima devoção e em alta voz. Ele apareceu de repente, pegou-o e o colocou lá embaixo, em cima das pedras, sem nenhuma pancada ou lesão. Como os outros frades ouviram o seu grito quando estava caindo, crendo que estivesse morto e esmigalhado pela alta queda sobre rochas cortantes, com grande dor e pranto apanharam o caixão e foram ao outro lado do monte para levar seus pedaços a sepultar.
Quando já tinha descido o monte, o frade que tinha caído encontrou-se com eles com o tronco na cabeça, e cantava em altas vozes o Te Deum laudamus. Com grande maravilha dos frades, ele lhes contou direitinho todo o modo da sua queda e como São Francisco o havia libertado de todo perigo. Então todos os frades juntos foram com ele para o lugar, cantando com muita devoção o predito salmo Te Deum laudamus, louvando e agradecendo a Deus e a São Francisco pelo milagre que tinha operado por seu frade.
Prosseguindo então São Francisco, como foi dito, a referida quaresma, embora sustentasse muitas batalhas do demônio, também recebia muitas consolações de Deus, não só por visitas de anjos, mas por pássaros selvagens: pois em todo aquele tempo da quaresma um falcão fez ninho ali perto de sua cela e, toda noite, um pouco antes de matinas, com o seu canto e batendo-se contra a sua cela, despertava-o e não ia embora enquanto São Francisco não se punha em pé para dizer as matinas. Quando São Francisco estava mais cansado, uma vez ou outra, ou débil ou enfermo, o falcão, como pessoa discreta e compassiva, cantava mais tarde. E assim São Francisco ficava muito contente com esse santo relógio, porque a grande solicitude do falcão afastava dele toda preguiça e o solicitava a orar, e, além disso, de dia ficava algumas vezes domesticamente com ele.
Finalmente, quanto a esta segunda consideração, estando São Francisco muito enfraquecido no corpo, tanto pela grande abstinência como pelas batalhas do demônio, querendo confortar o corpo com o alimento espiritual da alma, começou a pensar na desmesurada glória e gáudio dos bem-aventurados na vida eterna. Estava pensando isso quando lhe apareceu um Anjo com grande esplendor, que tinha uma viola na mão esquerda e um arco na direita. Estando São Francisco todo estupefato pelo aspecto do Anjo, ele passou uma vez o arco sobre a viola; e, de repente, tanta suavidade de melodia dulcificou a alma de São Francisco e a suspendeu de todo sentimento corporal, que, como ele contou depois aos companheiros, não duvidava que, se o anjo tivesse puxado o arco para baixo sua alma teria partido do corpo, pela doçura intolerável.
E isto é quanto à segunda consideração.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Terceira consideração dos sagrados santos estigmas.
Chegando à terceira consideração, sobre a aparição seráfica e a impressão dos sagrados santos estigmas, devemos considerar que, aproximando-se a festa da santíssima Cruz do mês de setembro, uma noite Frei Leão foi ao lugar e na hora habituais para dizer matinas com São Francisco. Quando, na cabeça da ponte, disse, como costumava, Domine, labia mea aperies, e São Francisco não respondeu, Frei Leão não voltou atrás, como São Francisco tinha mandado, mas com boa e santa intenção atravessou a ponte e entrou quietamente em sua cela.
Não o encontrando, pensou que ele estivesse em oração em algum lugar pelo bosque. Então saiu para fora e, devagarinho, à luz da lua, ia procurando-o pelo bosque. Finalmente, ouviu a voz de São Francisco e, aproximando-se, viu que ele estava de joelhos em oração, com o rosto e as mãos levantados para o céu e, com fervor de espírito dizia: “Quem és tu, ó dulcíssimo Deus meu? Quem sou eu, vilíssimo verme e inútil servo teu?”. Repetia sempre essas mesmas palavras e não dizia nenhuma outra coisa. Por isso Frei Leão, muito admirado disso, levantou os olhos e olhou para o céu. Olhando assim, viu baixar do céu uma chama de fogo belíssima e esplendidíssima, que, descendo, pousou na cabeça de São Francisco. Ouvia que saía uma voz dessa chama, que falava com São Francisco. Mas Frei Leão não entendia as palavras. Vendo isso e achando-se indigno de estar tão perto daquele lugar santo onde estava aquela admirável aparição, e temendo ainda ofender São Francisco ou perturba-lo de sua consideração, se fosse ouvido por ele, voltou atrás quietinho e, estando de longe, esperava ver o fim. Olhando fixamente, viu São Francisco estender três vezes as mãos para a chama e, finalmente, depois de um longo espaço, viu a chama voltar para o céu. Então moveu-se segura e alegremente, afastando-se da visão e voltando para a sua cela.
Quando ele ia saindo tranqüilamente, São Francisco escutou-o pelo rumor dos pés sobre as folhas, e mandou que esperasse e não se movesse. Então Frei Leão, obediente, ficou parado esperou-o com tanto medo, que, como ele contou depois aos companheiros, naquela hora ele teria preferido que a terra o engolisse do que esperar São Francisco, que ele pensava estar perturbado contra ele, porque ele se guardava com a maior diligência de ofender a sua paternidade, para que, por sua culpa, São Francisco não o excluísse de sua companhia.
Quando chegou perto dele, São Francisco perguntou: “Quem és tu?”. E Frei Leão, todo trêmulo, disse: “Eu sou Frei Leão, meu pai”. São Francisco: “Por que vieste aqui, frei ovelhinha? Eu não te disse que não me fiques observando? Dize-me, por santa obediência, se tu viste ou ouviste alguma coisa?”. Frei Leão respondeu: “Pai, eu te ouvi falar e dizer muitas vezes: Quem és tu, ó dulcíssimo Deus meu? Quem sou eu, verme vilíssimo e inútil servo teu?”Então, ajoelhando-se diante de São Francisco, Frei Leão deu a culpa pela desobediência que tinha praticado contra a sua ordem, e pediu perdão com muitas lágrimas. Depois, pediu-lhe humildemente que explicasse as palavras que tinha ouvido e que lhe contasse as que não tinha entendido.
Então, vendo São Francisco que Deus tinha revelado ou concedido a Frei Leão, por sua simplicidade e pureza, que ouvisse e visse algumas coisas, concordou em revelar-lhe e expor-lhe o que ele pedia, e disse assim: “Sabe, frei ovelhinha de Jesus Cristo, que quando eu dizia as palavras que ouviste estavam sendo mostrados a minha alma dois lumes: um da notícia e conhecimento de mim mesmo, o outro da notícia e conhecimento do Criador. Quando eu dizia: Quem és tu, ó dulcíssimo Deus meu? eu estava em lume de contemplação, em que via o abismo da infinita bondade, sabedoria e poder de Deus. E quando eu dizia: Quem sou eu? estava em um lume de contemplação em que via a profundeza lamentável de minha vileza e miséria, e por isso dizia: Quem és tu, Senhor de infinita bondade, sabedoria e poder, que te dignas visitar a mim que sou um verme vil e abominável? Naquela chama que tu viste, estava Deus que, naquela forma, falava comigo como tinha falado antigamente com Moisés.
E entre outras coisas que me disse, pediu que eu lhe fizesse três dons, e eu respondi: Senhor meu, eu sou todo teu. Tu sabes bem que eu não tenho mais nada além da túnica, do cordão e dos panos das bragas, e mesmo essas três coisas são tuas. Então, que posso oferecer ou te dar a tua majestade?
Então Deus me disse: Procura no teu seio e me oferece o que encontrares. Eu procurei e achei uma bola de ouro, e a ofereci a Deus. E assim fiz três vezes, conforme Deus me mandou três vezes. Depois me ajoelhei três vezes, bendisse e agradeci a Deus, que me tinha dado o que oferecer. E logo que me foi dado entender que aquelas três ofertas significavam a santa obediência, a altíssima pobreza e a esplendidíssima castidade, que Deus, por sua graça, me concedeu observar tão perfeitamente que de nada me repreende minha consciência.
E como tu viste que eu punha a mão no seio e oferecia a Deus essas três virtudes, significadas por aquelas três bolas de ouro que Deus tinha posto em meu seio, assim me deu Deus virtudes em minha alma, que de todos os bens e de todas as graças que me concedeu por sua santíssima bondade, eu sempre o louvo e engrandeço com o coração e com a boca. Essas são as palavras que ouviste ao levantar três vezes as mãos, como viste.
Mas guarda-te, frei ovelhinha, de me ficares observando. Volta para tua cela com a bênção de Deus e cuida solicitamente de mim, porque daqui a poucos dias Deus fará coisas tão grandes e maravilhosas neste monte que todo mundo vai ficar admirado. Pois ele fará algumas coisas novas, que nunca fez a nenhuma criatura neste mundo”.
Ditas essas palavras, mandou buscar o livro dos Evangelhos, pois Deus lhe tinha posto no coração que, ao abrir três vezes o livro dos Evangelhos ser-lhe-ia demonstrado o que Deus pretendia fazer com ele. Quando o livro lhe foi levado, São Francisco pôs-se em oração. E quando completou essa oração, fez com que o livro fosse aberto três vezes por mão de Frei Leão no nome da Santíssima Trindade. E como aprouve à divina disposição, naquelas três vezes sempre se lhe deparou a paixão de Cristo. Por isso foi-lhe dado entender que, assim como ele tinha seguido Cristo nos atos de sua vida, devia segui-lo e conformar-se a ele nas aflições e dores da paixão, antes de passar desta vida.
Daquele ponto em diante, São Francisco começou a provar e a sentir mais abundantemente a doçura da divina contemplação e das divinas visitas. Entre as quais teve uma imediata e preparatória para a impressão dos sagrados santos estigmas, desta forma: No dia que vem antes da festa da santíssima Cruz do mês de setembro, estava São Francisco em oração secretamente na sua cela. Apareceu-lhe o Anjo de Deus e lhe disse da parte de Deus: “Eu te conforto e aconselho a te preparares e dispores humildemente com toda paciência para receber o que Deus te quiser dar e fazer em ti”. São Francisco respondeu: “Eu estou preparado para suportar pacientemente tudo que o meu Senhor quer me fazer”. Dito isso, o Anjo foi embora.
Chegou o dia seguinte, isto é, da santíssima Cruz, e São Francisco, de manhã, antes do dia, pôs-se em oração na frente da porta da sua cela, virando o rosto para o oriente, e orava desta forma: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que eu me faças antes de eu morrer: a primeira, que em vida eu sinta na minha alma e no meu corpo, quanto for possível, a dor que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão. A segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele amor sem medidas de que tu, Filho de Deus, estavas incendiado para suportar, por querer, tamanha paixão por nós pecadores”.
E, estando longamente nessa oração, entendeu que Deus o escutaria e que, quanto fosse possível para uma oura criatura, tanto lhe seria concedido sentir aquelas coisas. Em breve, tendo São Francisco essa promessa, começou a contemplar com toda devoção a paixão de Cristo e a sua infinita caridade. E crescia tanto nele o fervor da devoção, que ele se transformava todo em Jesus, pelo amor e pela compaixão. E quando assim estava, inflamando-se nessa contemplação, naquela mesma manhã viu vir do céu um Serafim com seis asas resplandecentes e em fogo.
Esse Serafim, voando rapidamente aproximou-se de São Francisco de forma que ele podia discerni-lo, e conheceu claramente que tinha em si a imagem de um homem crucificado. E suas asas eram dispostas de maneira que duas asas estendiam-se sobre a cabeça, duas se abriam para voar e as outras duas cobriam todo o seu corpo. Vendo isso, São Francisco ficou fortemente espantado e ao mesmo tempo ficou cheio de alegria pelo gracioso aspecto de Cristo, que lhe aparecia tão familiarmente e o olhava tão graciosamente. Mas, por outro lado, vendo-o crucificado na cruz, tinha uma desmesurada dor de compaixão. Também se admirava muito de uma visão tão estupenda e incomum, sabendo bem que a enfermidade da paixão não combina com a imortalidade do espírito seráfico.
E, estando nessa admiração, foi-lhe revelado por aquele que lhe aparecia que, por divina providência, aquela visão lhe era demonstrada dessa forma para que ele entendesse que, não por martírio corporal mas por incêndio mental, ele devia ser todo transformado na expressa semelhança de Cristo crucificado.
Nessa aparição admirável todo o monte do Alverne parecia estar incendiado numa chama esplendisíssima, que resplandecia e iluminava todos os montes e vales ao redor, como se fosse o sol sobre a terra. Por isso os pastores que vigiavam naquela região, vendo o monte inflamado e tanta luz ao redor, ficaram com um medo enorme, como contaram depois aos frades, afirmando que aquela chama tinha durado sobre o monte Alverne por uma hora ou mais. De maneira semelhante, ao esplendor dessa luz, que resplandecia nos albergues da região pelas janelas, alguns almocreves que iam para a Romanha levantaram-se imediatamente, crendo que o sol se levantara, selaram e carregaram seus animais e, quando caminhavam, viram a luz cessar e levantar-se o sol material.
Nessa aparição seráfica, Cristo, que aparecia, contou a São Francisco algumas coisas secretas e altas, que São Francisco não quis revelar durante sua vida a ninguém, mas revelou depois de sua vida, como demonstramos adiante. E as palavras foram estas: “Sabes, disse Cristo, o que eu te fiz? Eu te dei os Estigmas que são os sinais da minha paixão, para que tu sejas o meu porta-bandeira. E, assim como no dia de minha morte desci ao limbo, e carreguei todas as almas que lá encontrei em virtude de meus Estigmas, assim te concedo que, cada ano, no dia da tua morte, possas ir ao purgatório e trazer todas as almas das tuas três Ordens, isto é, Menores, Irmãs e Continentes, e também dos outros que a ti forem muito devotos e que lá encontrares, em virtude dos teus Estigmas, e as leves para a glória do paraíso, para que sejas conforme a mim na morte, como és na vida”.
Quando desapareceu essa visão admirável, depois de um tempo e de uma conversação secreta, deixou no coração de São Francisco um ardor enorme e a chama do amor divino. E na sua carne deixou uma maravilhosa imagem e vestígio das paixões de Cristo. Daí começaram a aparecer imediatamente nas mãos e pés de São Francisco os sinais dos cravos, do jeito que ele tinha visto então no corpo de Jesus Cristo Crucificado, que lhe tinha aparecido na forma de Serafim. E assim pareciam suas mãos e pés pregados no meio com cravos, cujas cabeças estavam nas palmas das mãos e nas plantas dos pés fora da carne, e suas pontas saíam no dorso das mãos e dos pés, de maneira que pareciam entortados e rebatidos, de modo que entre a curvatura e o rebite, que saíam inteiros para fora da carne, podia-se colocar facilmente o dedo da mão, como em um anel. E as cabeças dos cravos eram redondas e pretas.
De maneira semelhante, no lado direito apareceu uma imagem de uma ferida de lança, não cicatrizada, vermelha e sangrenta que, mais tarde, muitas vezes soltava sangue do santo peito de Francisco e lhe ensangüentava a túnica e as bragas. Por isso os seus companheiros, antes que o soubessem por ele, percebendo que ele não descobria nem as mãos nem os pés, e que não podia pousar no chão as plantas dos pés, e também encontrando ensangüentadas a túnica e as bragas, quando as lavavam, compreenderam com certeza que ele tinha expressamente marcadas nas mãos nos pés e no peito, a imagem e semelhança de nosso Senhor Jesus Cristo crucificado.
E embora ele se esforçasse muito por esconder e ocultar aqueles sagrados estigmas gloriosos, tão claramente impressos em sua carne, e por outro lado vendo que mal podia esconder dos companheiros seus familiares, temendo publicar os segredos de Deus, ficou numa grande dúvida se devia ou não revelar a visão seráfica e a impressão dos sagrados Estigmas. Finalmente, impelido pela consciência, chamou alguns frades mais familiares seus e, propondo-lhes a dúvida com palavras gerais, sem contar o fato, pediu o seu conselho.
Entre esses frades havia um de grande santidade, que se chamava Frei Iluminato. Ele, verdadeiramente iluminado por Deus, compreendendo que São Francisco devia ter visto coisas maravilhosas, assim lhe respondeu: “Frei Francisco, sabe que não só por ti, mas também pelos outros Deus te mostra algumas vezes os seus sacramentos. Por isso tens que temer razoavelmente que, se mantiveres escondido o que Deus te mostrou para utilidade dos outros, sejas merecedor de repreensão”. Então São Francisco, movido por essa palavra, com grandíssimo temor contou-lhes todo o modo e a forma da sobredita visão, acrescentando que Cristo, que lhe havia aparecido, tinha dito certas coisas que ele não contaria nunca enquanto vivesse.
E, embora as chagas santíssimas, porque lhe tinham sido impressas por Cristo, lhe dessem uma enorme alegria ao coração, para a sua carne e para os seus sentimentos corporais eram uma dor intolerável. Por isso, forçado pela necessidade, ele escolheu Frei Leão, entre os outros mais simples e mais puro, a quem revelou tudo e deixava ver, tocar e enfaixar aquelas santas chagas com alguns retalhos de linho, para mitigar a dor e receber o sangue que saía e corria das ditas chagas. Nos tempos em que estava doente, ele deixava trocar essas bandagens com freqüência, até mesmo todos os dias, menos da quinta-feira à tarde até o sábado de manhã, pois nesse tempo ele não queria que fosse mitigada por nenhum remédio ou medicina humanos a paixão de Cristo, que ele carregava em seu corpo. Nesse tempo, nosso Salvador Jesus Cristo tinha sido preso, crucificado, morto e sepultado por nós.
Aconteceu alguma vez que, quando Frei Leão lhe mudava a faixa do peito, São Francisco, pela dor que sentia ao despregar-se a faixa ensangüentada, pôs a mão no peito de Frei Leão. Ao toque daquelas mãos sagradas, Frei Leão sentia tanta doçura de devoção em seu coração, que por mais um pouco cairia desmaiado no chão.
E finalmente, quanto a esta terceira consideração, tendo São Francisco cumprido a quaresma de são Miguel Arcanjo, resolveu, por divina inspiração, voltar para Santa Maria dos Anjos. Por isso chamou Frei Masseo e Frei Ângelo e, depois de muitas palavras e santos ensinamentos, recomendou-lhes, com toda eficácia que pôde, aquele monte santo, dizendo como convinha que ele e Frei Leão voltassem a Santa Maria dos Anjos. Dito isso, despedindo-se deles e abençoando-os no nome de Jesus crucificado, condescendendo aos seus pedidos, estendeu-lhes as mãos santíssimas, adornadas com aqueles gloriosos e santos Estigmas, para ver, tocar e beijar. E assim deixando-os consolados, afastou-se deles e desceu do santo monte.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Quarta consideração dos sagrados santos Estigmas.
Quanto à quarta consideração, devemos saber que, depois que o verdadeiro amor de Cristo transformou perfeitamente São Francisco em Deus e na verdadeira imagem de Cristo crucificado, e tendo cumprido a quaresma de quarenta dias em honra de São Miguel Arcanjo no santo monte do Alverne, depois da solenidade de São Miguel desceu do monte o angélico homem São Francisco, com Frei Leão e um devoto aldeão, sobre cujo asno ele ia montado porque, por causa dos cravos dos pés, não podia andar bem a pé.
Então, tendo São Francisco descido do monte santo, como a fama de sua santidade tinha sido divulgada pela região e pelos pastores tinha sido espalhado como tinham visto o monte Alverne todo em chamas, o que era sinal de que algum grande milagre Deus tinha feito a São Francisco.
Quando o povo da região ouviu dizer que ele ia passando, todos vinham vê-lo, homens e mulheres, pequenos e grandes, os quais, todos com grande devoção e desejo, esforçavam-se por toca-lo e beijar-lhe as mãos. Como ele não podia negar-se à devoção do povo, embora tivesse as mãos enfaixadas, para ocultar melhor os sagrados santos estigmas enfaixava-os melhor e os cobria com as mangas, dando-lhes a beijar só os dedos descobertos.
Mas, ainda que ele procurasse esconder e ocultar o sacramento dos gloriosos Estigmas para fugir a toda ocasião de glória mundana, aprouve a Deus para a sua glória mostrar muitos milagres por virtude dos sagrados santos e gloriosos Estigmas, e especialmente naquela viagem do Alverne a Santa Maria dos Anjos, e depois muitíssimos em diversas partes do mundo, durante a sua vida e depois da sua morte, para que a sua oculta e maravilhosa virtude e a enorme caridade e misericórdia de Cristo para com ele, a quem as tinha dado maravilhosamente, se manifestasse ao mundo por claros e evidentes milagres, alguns dos quais vamos expor aqui.
Daí, aproximando-se São Francisco de uma vila que estava nos confins do condado de Arezzo, parou diante dele uma mulher chorando muito e tendo nos braços um filho que tinha oito anos, durante quatro dos quais tinha sido hidrópico. Ele estava deforme com o ventre tão inchado que, em pé, não podia ver os pés. Como a mulher pusesse o filho na sua frente, pedindo que orasse a Deus por ele, São Francisco colocou-se primeiro em oração e depois, feita a oração, pôs suas santas mãos sobre o ventre do menino. Todo inchaço se dissolveu de repente e ele ficou perfeitamente curado. Devolveu-o à sua mãe que, recebendo-o com enorme alegria e o levou para casa. Agradeceu a Deus e ao seu santo, e mostrava de boa vontade o filho curado a toda a região, que vinha à sua casa para vê-lo.
No mesmo dia São Francisco passou pelo burgo de San Sepolcro e, antes que se aproximasse do castelo, as turbas do castelo e das vilas foram ao seu encontro. Muitos deles andavam à sua frente com ramos de oliveira na mão, gritando forte: “Eis o santo, eis o santo!”. Pela devoção e a vontade que as pessoas tinham de toca-lo faziam grande tropel e aperto em cima dele. Mas ele, andando com a mente elevada e arrebatada em Deus pela contemplação, embora fosse tocado, segurado ou puxado, como uma pessoa insensível não sentiu nada do que se fazia ou dizia ao seu redor, nem percebeu que tinha passado por aquele castelo ou por aquela região.
Quando tinham passado o burgo e as pessoas tinham voltado para suas casas, tendo ele chegado a uma casa de leprosos para lá do burgo bem uma milha, voltando a si como se viesse de outro mundo, o contemplador perguntou ao companheiro: “Quando estaremos perto do burgo?”. Na verdade, a sua alma, fixa e arrebatada na contemplação das coisas celestiais, não tinha percebido nenhuma coisa terrena, nem a diversidade dos lugares e dos tempos, nem das pessoas que acorreram. E isso aconteceu outras vezes, como provaram por clara experiência os seus companheiros.
Naquela tarde São Francisco chegou ao lugar dos frades de Monte Casale, onde havia um frade tão cruelmente doente e tão horrivelmente atormentado pela doença, que o seu mal mais parecia tribulação e tormento do demônio que doença natural. Pois algumas vezes ele se jogava todo no chão com um enorme tremor e com espuma na boca, ora se lhe encolhiam todos os nervos dos membros do corpo, ora se estendiam, ora se dobravam; ora se retorcia. Ora a nuca se encostava nos calcanhares, jogava-se no alto e caía de repente de costas. Estando São Francisco à mesa e ouvindo os frades falarem sobre esse irmão tão miseravelmente doente e sem remédio, ficou com compaixão dele, pegou uma fatia do pão que estava comendo, fez em cima do sinal da santíssima cruz com suas santas mãos estigmatizadas e mandou-a ao frade doente. Quando ele a comeu ficou perfeitamente curado e nunca mais sofreu daquela doença.
Chegou a manhã seguinte, e São Francisco mandou dois dos frades que estavam no lugar para ficarem no Alverne. E mandou de volta com eles o aldeão que tinha vindo com ele atrás do asno, que lhe havia emprestado, querendo que voltasse com eles para sua casa.
Os frades foram com o dito aldeão e, entrando no condado de Arezzo, algumas pessoas da região viram-nos de longe e tiveram uma grande alegria pensando que fosse São Francisco, que tinha passado dois dias antes, pois uma de suas mulheres, que estava havia três dias dando à luz, e não podia parir, estava morrendo, e eles achavam que a teriam sã e salva se São Francisco pusesse sobre ela suas santas mãos.
Mas, quando os frades se aproximaram e eles viram que não era São Francisco, ficaram numa grande melancolia. Mas onde não estava o santo corporalmente, não faltou a sua fé. Coisa admirável! A mulher estava morrendo e já tinha os traços da morte. Eles perguntaram aos frades se tinham alguma coisa tocada pelas mãos santíssimas de São Francisco. Os frades pensaram, procuraram diligentemente e logo não encontraram nada que São Francisco tivesse tocado com suas aos mãos a não ser o cabresto do asno sobre o qual ele tinha vindo. Eles pegaram o cabresto com grande reverência e devoção e o puseram sobre o corpo da mulher. A mulher gritou chamando devotamente o nome de São Francisco e recomendando-se fielmente a ele. Para que mais? Assim que a mulher teve sobre ela o cabresto, foi subitamente libertada de todo perigo e deu à luz facilmente com grande gáudio e com alegria.
São Francisco, depois de ter ficado alguns dias no referido lugar, partiu e foi para Città di Castello: e eis que muitos cidadãos levaram para diante dele uma mulher endemoninhada havia muito tempo, e lhe rogaram humildemente pela sua libertação, pois ela, ora com urros dolorosos, ora com gritos cruéis, ora com um ladrar de cão, perturbava toda a região. Então São Francisco, tendo feito antes uma oração e fazendo sobre ela o sinal da santíssima cruz, mandou ao demônio que fosse embora dela. Ele saiu subitamente e deixou-a sã do corpo e do intelecto.
Como esse milagre foi divulgado no meio do povo, uma outra mulher, com grande fé, levou-lhe seu menino, doente grave de um cruel chaga e pediu-lhe devotamente que lhe aprouvesse fazer-lhe o sinal com suas mãos. Então São Francisco, aceitando a sua devoção, tomou o menino, tirou a faixa da chaga e o abençoou, fazendo três vezes o sinal da santíssima cruz sobre a chaga. Depois refez a faixa com suas mãos e o entregou à mãe. Como já era de noite, ela o colocou logo na cama para dormir. De manhã ela foi tirar o filho da cama e o encontrou sem a faixa, olhou e o achou tão perfeitamente curado como se nunca tivesse tido mal nenhum, a não ser que no lugar da chaga havia crescido a carne como se fosse uma rosa vermelha. E isso mais para o testemunho do milagre do que para sinal da chaga, pois a referida rosa, durando todo o tempo de sua vida, levava-o muitas vezes à devoção por São Francisco.
São Francisco demorou um mês naquela cidade, a pedido devoto dos cidadãos. Nesse tempo, fez muitos outros milagres. Depois partiu daí para ir a Santa Maria dos Anjos com Frei Leão e com um bom homem, que lhe emprestava o seu burrinho, sobre o qual São Francisco andava.
Aconteceu que, pelas más estradas e pelo grande frio, caminhando todo o dia eles não puderam chegar a lugar nenhum em que pudessem se albergar. Por isso, obrigados pela noite e pelo mau tempo, eles se abrigaram sob uma rocha escavada, para escapar da neve e da noite que estava chegando. Estando assim mal abrigado e mal coberto, o bom homem a quem pertencia o asno, e não podendo dormir por causa do frio (e não havia nenhum jeito de acender fogo), começou a queixar-se baixinho consigo mesmo e a chorar, e quase se queixava de São Francisco, que o havia levado a tal lugar.
Então São Francisco, ouvindo isso, ficou com pena dele. Em fervor de espírito, estendeu sua mão sobre ele e o tocou. Que admirável! Logo que o tocou com a mão acesa e furada pelo fogo do Serafim, desapareceu todo o frio e entrou nele tanto calor por dentro e por fora que lhe parecia estar perto da boca de uma fornalha ardente: por isso, confortado imediatamente na alma e no corpo, adormeceu e, como disse, dormiu mais suavemente naquela noite até a manhã, no meio das pedras e da neve, como nunca tinha dormido em sua própria cama.
No outro dia, continuaram a caminhar e chegaram a Santa Maria dos Anjos. Quando estavam perto, Frei Leão levantou os olhos para o alto, olhou para o santo lugar de Santa Maria dos Anjos e viu uma cruz belíssima, em que havia a figura do Crucificado, andando na frente de São Francisco, que a seguia. E assim, conforme a dita cruz andava diante do rosto de São Francisco que, quando ele parava, ela parava, e quando ele andava, ela também andava. E aquela cruz era de tamanho esplendor que não só resplandecia no rosto de São Francisco, mas até todo o caminho ao redor ficava iluminado, e durou até que São Francisco entrou no lugar de Santa Maria dos Anjos.
Quando São Francisco chegou com Frei Leão, foram recebidos pelos frades com a maior alegria e caridade. E daí em diante São Francisco morou a maior parte do tempo naquele lugar de Santa Maria dos Anjos até a morte. A fama de sua santidade e dos seus milagres se expandia continuamente, cada vez mais, pela Ordem e pelo mundo, embora ele, por sua grandíssima humildade, escondesse como podia os dons e as graças de Deus, chamando-se de grandíssimo pecador.
Uma vez Frei Leão ficou admirado com isso e pensou bobamente consigo mesmo: “Olha, esse daí se chama de grandíssimo pecador em público mas torna-se grande na Ordem, é honrado por Deus e em oculto nunca se confessa de pecado carnal. Será que ele é virgem?”. E começou a ficar com uma vontade muito grande de saber a verdade sobre isso, mas não ousava perguntar a São Francisco. Por isso, recorreu a Deus e, rogando-lhe insistentemente que o certificasse daquilo que queria saber, por muita oração mereceu ser ouvido, e foi certificado por uma visão de que São Francisco era virgem verdadeiramente no corpo. Pois viu na visão que São Francisco estava em um lugar alto e excelente, ao qual ninguém podia ir nem juntar-se a ele, e foi-lhe dito em espírito que aquele lugar tão alto e excelente significava em São Francisco a excelência da castidade virginal, que com razão convinha à carne que devia ser adornada pelos sagrados santos Estigmas de Cristo.
Como São Francisco percebeu que, por causa dos Estigmas, a força de seu corpo estava diminuindo cada vez mais, e não podia mais cuidar do governo da Ordem, apressou o Capítulo geral. Quando o Capítulo estava todo reunido, ele se desculpou humildemente diante dos frades pela impotência que não o deixava mais atender ao cuidado da Ordem, quanto à execução do generalato, embora não renunciasse ao cargo do generalato, pois não podia, uma vez que tinha sido feito geral pelo Papa, e por isso não podia deixar o cargo nem substituir sucessor sem expressa licença do Papa. Mas instituiu vigário seu Frei Pedro Cattani, recomendando-lhe, e aos ministros provinciais da Ordem afetuosamente, o mais que ele podia.
Feito isso, São Francisco, confortado em espírito, levantou os olhos e as mãos para o céu e disse assim: “A ti, Senhor meu Deus, eu te recomendo a tua família, que até agora confiaste a mim, e agora, pelas minhas enfermidades, não posso mais cuidar. Também a recomendo aos ministros provinciais: que eles tenham que te prestar contas no dia do juízo se algum frade perecer por sua negligência, por seu mau exemplo, ou por uma correção muito áspera”. Nessas palavras, como aprouve a Deus, todos os frades do Capítulo entenderam que estava falando dos estigmas quando se escusava pelas enfermidades. Por devoção, nenhum deles pôde deixar de chorar.
Daí em diante, deixou todo o cuidado e o governo da Ordem nas mãos do seu Vigário e dos ministros provinciais. E dizia: “Agora, desde que eu deixei o cuidado da Ordem por minhas doenças, não sou mais obrigado senão a orar a Deus pela nossa religião, e dar bom exemplo aos frades. E bem sei na verdade que, se ela me deixasse, o maior auxílio que eu podia dar à religião seria orar continuamente a Deus por ela, para que a defenda, governe e conserve”.
Ora, acontecia que São Francisco, como dissemos acima, se esforçava o mais que podia por esconder os sagrados santos estigmas e, depois que os recebeu, andava sempre e ficava com as mãos enfaixadas e com os pés calçados, mas não conseguiu fazer com que muitos irmãos não os vissem e tocassem, especialmente a do peito, que ele procurava esconder com mais diligência. Por isso um frade que o servia induziu-o com devota cautela a tirar a túnica para sacudir o pó.
Quando a tirou na frente dele, o frade viu claramente a chaga do lado e, pondo-lhe a mão no peito rapidamente, tocou-a com três dedos e percebeu sua quantidade e grandeza. De modo semelhante, seu Vigário viu-a naquele tempo. Mas quem se certificou mais claramente foi Frei Rufino, que era homem de grandíssima contemplação. Do qual São Francisco disse algumas vezes que não havia homem mais santo do que ele no mundo, e por sua santidade ele o amava intimamente e o satisfazia no que quisesse.
Esse Frei Rufino certificou de três modos a si mesmo e aos outros sobre os estigmas, e especialmente sobre o do peito. O primeiro foi que, devendo lavar suas bragas, que o santo usava tão grandes que, puxando-as bem para cima, cobria com elas a chaga do lado direito, o dito Frei Rufino as olhava e considerava diligentemente, e todas as vezes encontrava-as ensangüentadas do lado direito. Por isso ele percebia com certeza que era sangue que lhe saía da referida chaga. São Francisco repreendia-o por isso quando percebia que ele desenrolava a roupa para ver o referido sinal.
O segundo modo foi que o dito Frei Rufino, uma vez, esfregando os rins de São Francisco, escorregou a mão de propósito e colocou os dedos na chaga do peito. Pela grande dor que sentiu, São Francisco gritou forte: “Deus te perdoe, ó Frei Rufino. Por que fizeste isso?”.
O terceiro modo que, uma vez, ele pediu com muita insistência a São Francisco, por uma graça grandíssima, que lhe desse o seu hábito e pegasse o dele, por amor da caridade. Embora condescendendo de má vontade, o pai caridoso consentiu, deu-lhe o seu e pegou o dele. Então, ao tirar e pôr de novo, Frei Rufino viu com clareza a dita chaga.
De maneira semelhante, Frei Leão e muitos outros frades viram os ditos sagrados santos estigmas de São Francisco enquanto ele viveu. Embora esses frades, por sua santidade, fossem homens dignos de fé e de serem acreditados com uma só palavra, para afastar toda dúvida dos corações, juraram sobre o livro santo que as tinham visto claramente. Viram-nas também alguns Cardeais, que tinham com ele grande familiaridade, e por reverência dos ditos estigmas de São Francisco compuseram e fizeram belos e devotos hinos, antífonas e prosas. O sumo pontífice Alexandre papa, pregando ao povo, quando estavam presentes todos os cardeais (entre os quais o santo Frei Boaventura, que era cardeal), disse e afirmou que ele tinha visto com os seus olhos os sagrados santos estigmas de São Francisco, quando ele ainda estava vivo.
E dona Jacoba de Settesoli, de Roma, que era a maior senhora de Roma no seu tempo e era devotíssima de São Francisco, viu-os antes que ele morresse e, morto que foi, viu-os e os beijou muitas vezes com suma reverência, pois veio de Roma a Assis para a morte de São Francisco por divina revelação.
E foi deste modo. São Francisco, alguns dias antes de sua morte, esteve doente em Assis no palácio do Bispo, com alguns de seus companheiros. Apesar de toda a sua doença, ele cantava muitas vezes certos louvores de Cristo. Um dia, disse-lhe um de seus companheiros: “Pai, tu sabes que estes cidadãos têm grande fé em ti e te julgam um santo homem. Por isso podem pensar que, se tu és quem eles crêem, deverias, nesta enfermidade, pensar na morte e antes chorar que cantar, pois estás tão doente. E acha que o teu cantar e o nosso, que nos fazes fazer, é ouvido por muita gente do palácio e de fora, porque por ti este palácio está cercado por muitos homens armados que, com isso, poderiam ter um mau exemplo. Por isso eu acho, disse o frade, “que tu farias bem sair daqui e que nós voltássemos todos para Santa Maria dos Anjos, pois não estamos bem aqui, entre seculares”.
São Francisco respondeu: “Caríssimo frade, tu sabes que dois anos trás, quando estávamos em Foligno, Deus te revelou o termo de minha vida, e também o revelou a mim que, daqui a poucos dias, nesta doença, vai chegar esse termo. Na revelação Deus me fez certo da remissão de todos os meus pecados e da bem-aventurança do paraíso.Até ter a revelação, eu chorei a morte e meus pecados. Mas, depois que eu tive a revelação, estou tão cheio de alegria que já não posso chorar. Por isso, eu canto e vou cantar a Deus que me deu o bem da sua graça e me fez certo dos bens da glória do paraíso. Sobre a nossa partida daqui, eu estou de acordo e me agrada, mas deveis encontrar um jeito de me levar, porque, pela doença, eu não posso andar”. Então os frades tomaram-no nos braços e o levaram, acompanhados por muitos cidadãos.
Quando chegaram a um hospital que havia no caminho, São Francisco disse aos que o carregavam: “Ponde-me no chão e virai-me para a cidade”. Quando foi posto com o rosto virado para Assis, ele abençoou a cidade com muitas bênçãos, dizendo: “Que sejas abençoada por Deus, cidade santa, pois por ti muitas almas se salvarão e em ti vão morar muitos servos de Deus e muitos de ti serão escolhidos para o reino da vida eterna”. Ditas essas palavras, fez que o levassem adiante, a Santa Maria dos Anjos.
Quando chegaram a Santa Maria, levaram-no para a enfermaria e ali o puseram a repousar. Então São Francisco chamou um dos companheiros e lhe disse: “Caríssimo frade, Deus me revelou que desta enfermidade até tal dia eu vou passar desta vida. E tu sabes que dona Jacoba de Settesoli, devota caríssima da nossa Ordem ia ficar muito triste se soubesse da minha morte e não estivesse presente. Por isso, faze-a saber que, se quiser me ver vivo, venha aqui imediatamente”. O frade respondeu: “Muito bem, pai, porque, pela grande devoção que ela tem para contigo, seria muito inconveniente que ela não estivesse na tua morte”. São Francisco disse: “Então vai e traz tinteiro, pena e papel, e escreve como eu te disser”. Quando os trouxeram, São Francisco ditou a carta desta forma:
À senhora Jacoba, serva de Deus, Frei Francisco pobrezinho de Cristo saúda e deseja a companhia do Espírito Santo em nosso Senhor Jesus Cristo. Sabe, caríssima, que Cristo bendito, por sua santa graça, me revelou o fim de minha vida, que será em breve. Por isso, se me queres encontrar vivo, quando vires esta carta, move-te e vem para Santa Maria dos Anjos. Porque, se não vieres até tal dia, não poderás encontrar-me vivo. E traz contigo pano de cilício em que meu corpo seja envolvido, e a cera que é necessária para o sepultamento. Peço-te ainda que me tragas daquelas coisas para comer que costumavas dar-me quando eu estava doente em Roma.
Enquanto essa carta estava sendo escrita, foi revelado por Deus a São Francisco que dona Jacoba vinha a ele, já estava perto do lugar e trazia consigo todas aquelas coisas que ele mandara pedir pela carta. Quando teve essa revelação, São Francisco disse ao frade que escrevia a carta que não continuasse a escrever, porque não precisava, mas abandonasse a carta.
Os frades ficaram muito admirados com isso, porque nem acabou a carta nem queria que fosse mandada. Passado um pouco de tempo, bateram com força à porta do lugar e São Francisco mandou o porteiro ir abrir. Abrindo a porta, lá estava dona Jacoba, nobilíssima senhora de Roma, com dois de seus filhos senadores e com uma grande companhia de homens a cavalo. E foram para dentro.
E dona Jacoba foi direto à enfermaria e encontrou São Francisco. São Francisco teve muita alegria e consolação por sua vinda, e ela também quando o viu vivo e falando com ela. Então ela lhe contou como Deus lhe havia revelado em Roma, quando ela estava em oração, o termo breve de sua vida, e como ele devia mandar vê-la e pedir as coisas que ela disse que tinha trazido todas consigo. Mandou traze-las para São Francisco e as deu para que ele comesse. Quando ele comeu e ficou muito confortado, a senhora Jacoba ajoelhou-se aos pés de São Francisco, pegou aqueles santíssimos pés, marcados e ornados pelas chagas de Cristo e com um enorme excesso de devoção beijava-os e os banhava de lágrimas, de modo que aos frades que estavam ao redor parecia que estavam mesmo vendo a Madalena aos pés de Jesus Cristo, e de modo algum podiam separa-la.
Finalmente, depois de um bom tempo, levaram-na dali e lhe perguntaram como tinha vindo tão a tempo e trazendo todas as coisas que eram necessárias para a vida e o sepultamento de São Francisco. Dona Jacoba respondeu que, estando uma noite a orar em Roma, ouviu uma voz do céu que lhe disse: “Se queres encontrar São Francisco vivo, vai sem demora a Assis e leva contigo as coisas que costumas dar-lhe quando está doente e as coisas que lhe serão necessárias para o sepultamento”. “E eu fiz isso”, disse ela.
Então a dita senhora Jacoba ficou lá até que São Francisco passou desta vida e foi sepultado. No sepultamento prestou-lhe uma grandíssima honra, ela com toda a companhia, e fez todas as despesas do que foi preciso. Depois, voltando a Roma, daí a pouco tempo essa gentil senhora morreu santamente. Por devoção a São Francisco julgou-se e quis ser levada para ser sepultada em Santa Maria dos Anjos. E assim foi.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Como monsior Jerônimo tocou e viu os sagrados santos estigmas de São Francisco,
em que antes não acreditava.
Na morte de São Francisco não só dona Jacoba e os filhos, com a sua companhia, vieram e beijaram os gloriosos sagrados estigmas, mas também muitos cidadãos de Assis. Entre eles, um cavaleiro bem famoso e grande homem, que se chamava monsior Jerônimo, que duvidava muito e não acreditava neles, como São Tomé apóstolo a respeito das chagas de Cristo. Para certificar a si e aos outros, diante dos frades e dos seculares, movia ousadamente os cravos das mãos e dos pés e puxava com evidência a chaga do peito. Por isso, depois ele passou uma testemunha constante daquela verdade, jurando sobre o livro que assim era e assim ele tinha visto e tocado.
Também viram e beijaram os gloriosos estigmas de São Francisco santa Clara com as suas monjas, que estiveram presentes no sepultamento.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
O dia e o ano da morte de São Francisco.
Passou desta vida o glorioso confessor de Cristo monsior São Francisco no ano mil duzentos e vinte e seis de nosso Senhor, no dia quatro de outubro, um sábado, e foi sepultado no domingo. Aquele era o vigésimo ano de sua conversão, isto é, de quando tinha começado a fazer penitência, e era o segundo ano depois da impressão dos sagrados santos estigmas. E estava no quadragésimo quinto ano de seu nascimento.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
A canonização de São Francisco.
Depois, São Francisco foi canonizado em mil duzentos e vinte e oito, pelo Papa Gregório IX, que veio pessoalmente a Assis para canoniza-lo.
E baste isto quanto à quarta consideração.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Quinta e última consideração sos sagrados santos estigmas do
bem-aventurado São Francisco. Amém.
A quinta e última consideração é sobre algumas aparições, revelações e milagres que Deus fez e demonstrou depois da morte de São Francisco, para confirmar os sagrados santos estigmas e a notificação do dia e da hora em que Cristo os deu a ele.
Quanto a isto, devemos pensar que no ano do Senhor 1282, no dia... do mês de outubro, Frei Filipe, ministro da Toscana, por ordem de Frei Bonagrazia, ministro geral, pediu pela santa obediência a Frei Mateus de Castiglione Aretino, homem de grande devoção e santidade, que lhe dissesse o que sabia sobre o dia e a hora em que os sagrados santos estigmas foram impressos no corpo de São Francisco, pois soubera que ele tinha tido uma revelação sobre isso. Frei Mateus, obrigado pela santa obediência, respondeu assim:
“Estando eu de família no Alverne, no ano passado e no mês de maio, pus-me um dia em oração na cela que há no lugar em que se crê que aconteceu aquela aparição do Serafim. Na minha oração, pedi a Deus devotissimamente que lhe aprouvesse revelar a alguma pessoa o dia, a hora e o lugar em que os sagrados santos estigmas foram impressos no corpo de São Francisco.
E, perseverando eu em oração nessa súplica para lá do primeiro sono, São Francisco me apareceu com uma luz enorme e me disse: “Filho, o que estás pedindo a Deus?”. E eu lhe disse: “Pai, peço tal coisa”. E ele me disse: “Eu sou o teu pai Francisco. Tu me conheces bem?”. E disse: “Sim, pai”. Então ele me mostrou os sagrados santos estigmas das mãos, dos pés e do peito e disse: “Chegou a hora em que Deus quer que se manifeste para sua glória aquilo que os frades do passado não cuidaram de saber. Sabe que aquele que me apareceu não foi um Anjo, mas foi Jesus Cristo na forma de um Serafim. Com suas mãos ele imprimiu no meu corpo estas cinco chagas como as recebeu no seu corpo na cruz. E foi deste modo: que no dia antes da exaltação da santa cruz veio a mim um Anjo e me disse da parte de Deus que eu me preparasse para ter paciência e para receber aquilo que Deus me quisesse mandar. E eu respondi que estava preparado para tudo que aprouvesse Deus.
Depois, na manhã seguinte, isto é, na manhã da santa Cruz, que naquele ano era numa sexta-feira, eu saí da cela na aurora em grandíssimo fervor de espírito e vim ficar em oração nesse lugar em que estás agora. Nesse lugar eu rezei muitas vezes. E, enquanto eu orava, eis que pelo ar descia do céu um jovem crucificado em forma de um Serafim com seis asas, com grande ímpeto. Diante dessa visão maravilhosa, eu me ajoelhei humildemente e comecei a contemplar devotamente o amor sem medidas de Jesus Cristo crucificado e a dor sem tamanho da sua paixão.
Seu aspecto gerou em mim tanta compaixão que me parecia sentir justamente em meu corpo essa paixão. E na sua presença todo este monte resplandecia como o sol. E, assim descendo, veio perto de mim e, estando na minha frente, disse-me algumas palavras secretas, que ainda não revelei a ninguém. Mas aproxima-se o tempo em que elas serão reveladas.
Depois de algum tempo, Cristo foi embora e voltou para o céu. E eu me percebi assim marcado com estas chagas. Então vai,” disse São Francisco,” e dize cm segurança estas coisas ao teu ministro, pois esta é uma ação de Deus e não do homem”. Ditas essas palavras, São Francisco me abençoou e voltou para o céu com uma grande multidão de jovens esplendorosíssimos”.
O referido Frei Mateus disse que tinha visto e ouvido tosas essas coisas, não dormindo, mas velando. E assim jurou corporalmente para o dito ministro em Florença, na sua cela, quando ele lhe perguntou sobre isso por obediência.
Como um santo frade, lendo a legenda de São Francisco,
no capítulo dos sagrados santos estigmas a respeito das palavras secretas
que o Serafim disse a São Francisco quando lhe apareceu,
rogou tanto a Deus que São Francisco as revelou para ele.
Ma outra vez, um frade devoto e santo, lendo a legenda de São Francisco no capítulo dos sagrados santos estigmas, começou a pensar com grande ansiedade de espírito que palavras podiam ser aquelas tão secretas, que São Francisco disse que não revelaria a ninguém enquanto vivesse, que o Serafim lhe tinha dito quando lhe apareceu. E esse frade dizia consigo mesmo: “São Francisco não quis dizer as palavras a ninguém enquanto estava vivo, mas agora, depois de sua morte, talvez as diga, se lhe for pedido com devoção”. E daí em diante começou o devoto frade a rogar a Deus e a São Francisco que lhes aprouvesse revelar aquelas palavras. Perseverando esse frade por oito anos nesse pedido, no oitavo ano mereceu ser ouvido deste modo.
Porque, um dia, depois de comer, tendo dado graças na igreja, ele estava em oração em uma parte da igreja e rezando para isso a Deus e a São Francisco mais devotamente do que costumava e com muitas lágrimas, ele foi chamado por um outro frade e lhe foi ordenado da parte do guardião que ele o acompanhasse à cidade para a utilidade do lugar. Por isso, ele, sem duvidar de que a obediência é mais meritória do que a oração, assim que ouviu a ordem do prelado, deixou a oração e foi humildemente com o frade que o chamara. E como aprouve a Deus, ele, naquele ato de pronta obediência, mereceu o que por longo tempo de oração não tinha merecido.
Assim, logo que eles saíram da porta do lugar, encontraram-se com dois frades forasteiros que pareciam vir de países longínquos, e um deles parecia jovem e outro antigo e magro, molhados e enlameados pelo mau tempo. Por isso o frade obediente, tendo grande compaixão deles, disse ao companheiro com quem ia: “Ó meu irmão caríssimo, se pudermos demorar um pouco para fazer o que nos foi mandado, pois estes frades forasteiros têm necessidade de serem recebidos com caridade, eu te peço que me deixes ir primeiro lavar os pés deles e especialmente deste frade antigo, que tem agora maior necessidade, e tu poderá lavar os deste jovem. Depois iremos cuidar das coisas do lugar”.
Então, condescendendo o frade com a caridade do companheiro, voltaram para dentro e, recebendo os frades forasteiros com muita caridade, levaram-nos para a cozinha para se esquentarem e enxugarem diante do fogo. Junto desse fogo estavam se esquentando outros oito frades do lugar.
Depois de ficarem um pouco junto do fogo, levaram-nos à parte para lavar os seus pés, como tinham combinado. E enquanto o frade obediente e devoto lavava os pés do frade mais antigo e lhe tirava o barro, pois estavam muito enlameados, olhou e viu que seus pés estavam marcados pelos estigmas. Subitamente, pela alegria e o estupor, abraçou-lhe apertado os pés e começou a gritar: “Ou és Cristo ou és São Francisco”.
Ouvindo esse grito e essas palavras, levantaram-se na hora os frades que estavam junto ao fogo e foram lá para ver, com grande temor e reverência aqueles gloriosos estigmas. E então o frade antigo, a pedido deles permitiu que eles os vissem, tocassem e beijassem. E estando eles ainda mais maravilhados pela alegria, ele lhes disse: “Não duvideis e nem temais, caríssimos frades meus filhos; eu sou o vosso pai Frei Francisco, que, segundo a vontade de Deus, fundei as três Ordens. E como isso é coisa que já me foi pedido já fazem oito anos por este frade que me lava os pés, e hoje com mais fervor do que nas outras vezes, que eu lhe revele aquelas palavras secretas que o Serafim me disse quando me deu os estigmas, palavras que eu nunca quis revelar durante minha vida, mas hoje, por ordem de Deus e por sua perseverança e pronta obediência, pela qual ele deixou a doçura de sua contemplação, fui mandado por Deus para lhe revelar, diante de vós, o que ele me pediu”. E então, virando-se para o frade, São Francisco disse assim:
“Sabe, caríssimo frade, que quando eu estava no monte Alverne, todo absorto na memória da paixão de Cristo, naquela aparição seráfica eu fui assim estigmatizado no meu corpo, e então Cristo me disse: ”Sabes o que foi que eu te fiz? Eu te dei os sinais da minha paixão, para que tu sejas meu porta-bandeira. E como no dia de minha morte desci ao limbo, trouxe e levei para o paraíso, em virtude de meus estigmas, todas as almas que lá encontrei, assim eu te concedo desde já, para que me sejas tão conforme na morte como foste na vida, que tu, depois que tiveres passado deste vida, todos os anos, no dia da tua morte, vás ao purgatório, tires e leves para o paraíso todas as almas das tuas três Ordens, isto é, Menores, Irmãs e Continentes, e além delas as dos teus devotos que lá encontrares”. Essas palavras eu nunca disse enquanto estive no mundo”.
Ditas essas palavras, São Francisco e os companheiros desapareceram de repente. Muitos frades ouviram isso depois daqueles oito frades que estavam presentes nessa visão e nas palavras de São Francisco.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Como São Francisco, estando morto, apareceu a Frei João do Alverne, que estava em oração.
No monte Alverne São Francisco apareceu uma vez a Frei João do Alverne, homem de grande santidade, que estava em oração. Ficou e falou com ele por muito tempo. E finalmente, quando quis partir, disse-lhe: “Pede-me o que tu queres”. Frei João disse: “Pai, eu te peço que tu me digas o que desejo saber há muito tempo, isto é, o que fazias e onde estavas quando te apareceu o Serafim”.
São Francisco respondeu: “Eu estava rezando naquele lugar onde está agora a capela do conde Simão de Batifolle, e pedia duas graças ao meu Senhor Jesus Cristo. A primeira, que me concedesse durante a minha vida que sentisse na minha alma e no meu corpo, quanto fosse possível, toda aquela dor que ele tinha sentido em si mesmo no tempo da sua acerbíssima paixão. A segunda graça que eu lhe pedi foi, parecidamente, que eu sentisse no meu coração aquele excessivo amor de que ele estava aceso ao suportar tamanha paixão por nós, pecadores.
E então Deus me pôs no coração que me permitiria sentir uma e outra coisa, quanto fosse possível para uma pura criatura. O que me foi cumprido muito bem na impressão dos estigmas”. Então Frei João perguntou-lhe se aquelas palavras secretas que o Serafim lhe tinha dito tinham sido daquele jeito que contava aquele santo frade de que falamos acima, que afirmava que as tinha ouvido de São Francisco na presença de oito frades. São Francisco afirmou que era verdade como o frade dizia.
Então Frei João ainda criou coragem de perguntar, pela liberalidade de quem o concedia, e disse assim: “Ó pai, eu te rogo insistentemente que me deixes ver e beijar os teus gloriosos estigmas, não porque eu tenha alguma dúvida, mas só para a minha consolação, porque eu sempre desejei isso”. E como São Francisco mostrou-os livremente e os estendeu para ele, Frei João viu-os claramente, tocou-os e os beijou.
E no fim lhe perguntou: “Pai, quanta consolação teve tua alma vendo Cristo bendito vir a ti e dar-te os sinais da sua santíssima paixão! Deus me dera que eu sentisse um pouco dessa suavidade!”. Então São Francisco respondeu: “Estás vendo estes cravos?”. E Frei João: “Pai, sim”. São Francisco disse: toca mais uma vez este cravo que está na minha mão. Então Frei João, com grande reverência e temor, tocou aquele cravo e, de repente, quando o tocou, saiu tanto perfume como um fio de fumaça como de incenso e, entrando pelo nariz de Frei João, encheu sua alma e seu corpo de tanta suavidade que ele foi imediatamente arrebatado em Deus, em êxtase, e ficou insensível. E ficou assim arrebatado desde aquela hora, que era a terça, até as vésperas.
Frei João nunca contou a outros essa visão e a conversa familiar com São Francisco, a não ser ao seu confessor, quando chegou à morte. Mas quando estava perto da morte, revelou-o a outros frades.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
De um santo frade que teve uma admirável visão de um seu companheiro sendo morto.
Um frade, muito devoto e santo, teve, na província de Roma, esta admirável visão. Tendo morrido numa noite e sido enterrado na manhã seguinte na entrada do capítulo um frade que era seu caríssimo companheiro, no mesmo dia o referido frade recolheu-se em um canto do capítulo, depois da refeição, para pedir devotamente a Deus e a São Francisco pela alma do frade morto que era seu companheiro.
Tendo perseverado na oração com pedidos e lágrimas, de noite, quando todos os outros frades tinham ido dormir, eis que ouviu um grande rumor de alguma coisa que se arrastava pelo claustro. Voltou de repente os olhos, com grande medo, para o sepulcro de seu companheiro. Viu que lá na entrada do capítulo estava São Francisco e, atrás dele, uma grande multidão de frades ao redor do sepulcro. Olhou mais adiante e viu no meio do claustro um fogo com uma enorme chama e que no meio da chama estava a alma de seu companheiro morto. Olhou ao redor no claustro e viu Jesus Cristo andando em volta do claustro com grande acompanhamento de Anjos e Santos.
Olhando tudo isso com grande estupor, viu que, quando Cristo passava na frente do Capítulo, São Francisco se ajoelhou com todos os frades e disse: “Eu te peço, meu caríssimo Pai e Senhor, por aquela inestimável caridade que mostraste pela geração humana na tua encarnação, que tenhas misericórdia da alma daquele meu frade que está ardendo nesse fogo”. Cristo não respondeu nada, mas foi em frente.
Quando voltou uma segunda vez passando na frente do Capítulo, São Francisco também se ajoelhou com os seus frades como antes e rogou desta forma: “Eu te peço, piedoso Pai e Senhor, pela desmesurada caridade que mostraste ao gênero humano quando morreste sobre o lenho da cruz, que tenhas misericórdia da alma daquele meu frade”. E Cristo passava do mesmo jeito e não o ouvia.
Dando a volta ao claustro, voltou pela terceira vez e passou na frente do Capítulo. Então São Francisco, ajoelhando-se como antes, mostrou-lhe as mãos, os pés e o peito e disse assim: “Eu te peço, piedoso Pai e Senhor, por aquela grande dor e consolação que suportei quando me impuseste estes estigmas na minha carne, que tenhas misericórdia da alma daquele meu frade que está naquele fogo do purgatório”.
Coisa admirável! Sendo Cristo rogado nesta terceira vez por São Francisco em nome de seus estigmas, parou imediatamente e olhou para os estigmas, ouviu a prece e disse assim: “A ti, Frei Francisco, eu te concedo a alma do teu frade”. E com isso quis certamente honrar e confirmar os gloriosos estigmas de São Francisco e significar abertamente que as almas de seus frades que vão para o purgatório não são mais facilmente libertadas das penas e levadas para a glória do paraíso que em virtude de seus estigmas, conforme as palavras que Cristo, quando os imprimiu, disse a São Francisco. Por isso, de repente, quando foram ditas essas palavras, o fogo do claustro se dissipou e o frade morto se aproximou de São Francisco e, com ele e com Cristo, toda aquela bem-aventurada companhia gloriosa foi para o céu.
Por esse motivo, este seu companheiro frade, que tinha rezado por ele, vendo-o livre das penas e levado para o paraíso, teve uma alegria enorme. E depois contou direitinho aos outros frades toda a visão, louvando e agradecendo a Deus junto com eles.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Como um nobre cavaleiro, devoto de São Francisco,
foi certificado da morte e dos estigmas de São Francisco.
Um nobre cavaleiro de Massa de São Pedro, que se chamava monsior Landolfo e que era muito devoto de São Francisco e finalmente recebeu de suas mãos o hábito da Ordem Terceira, foi deste modo certificado da morte de São Francisco e de seus estigmas gloriosos.
Porque, estando São Francisco perto da morte, entrou nesse tempo o demônio em uma mulher daquele castelo e a atormentava cruelmente, e com isso fazia-a falar à letra tão sutilmente que vencia todos os homens sábios e letrados que vinham disputar com ela. Aconteceu que, indo embora dela, o demônio deixou-a livre dois dias e, quando voltou, no terceiro dia, afligia-a mais cruelmente do que antes. Quando ouviu isso, monsior Landolfo foi procurar a mulher e perguntou ao demônio que morava nela por que tinha ido embora dois dias e, depois, quando voltou, atormentava-a mais asperamente do que antes.
O demônio respondeu: “Quando a deixei, foi porque eu com todos os meus companheiros, que estão nesta região, nos reunimos e fomos muito fortes à morte do mendigo Francisco para disputar com ele e tomar sua alma. Mas, como ela estava cercada e defendida por uma multidão de Anjos maior do que a nossa e foi levada por eles diretamente para o céu, e nós fomos embora confundidos, eu estou tirando o atraso e fazendo a esta pobre mulher o que perdi em dois dias”.
Então monsior Landolfo esconjurou-o da parte de Deus que tinha que dizer o que havia de verdade na santidade de Francisco, que ele dizia que tinha morrido, e de Santa Clara, que estava viva. O demônio respondeu: “Vou te dizer, queira ou não, o que é verdade. Deus Pai estava tão indignado contra os pecados do mundo que parecia querer pronunciar em breve a sentença definitiva, exterminando-os do mundo se não se corrigissem. Mas Cristo seu Filho, orando pelos pecadores, prometeu renovar sua vida e sua paixão em um homem, Francisco o pobrezinho mendigo, por cuja vida e doutrina reconduziria, de todo o mundo, muitos para o caminho da verdade e da penitência. E então, para mostrar ao mundo que ele tinha feito isso em São Francisco, quis que os estigmas da paixão – que ele havia imprimido em seu corpo durante a vida – fossem agora vistos por muitos e tocados na sua morte.
De maneira semelhante, a Mãe de Cristo prometeu renovar sua pureza virginal e sua humildade em uma mulher, isto é, na Irmã Clara, de tal modo que, por seu exemplo, ela arrancaria muitos milhares de mulheres de nossas mãos. E assim, por essas promessas, Deus Pai, apaziguado, adiou sua sentença definitiva”.
Então, monsior Landolfo, querendo saber ao certo se o demônio, que é abrigo e pai da mentira, estava dizendo a verdade nessas coisas, especialmente sobre a morte de São Francisco, mandou um seu fiel donzel a Assis, para saber em Santa Maria dos Anjos se São Francisco estava vivo ou morto. Chegando lá, o donzel encontrou com certeza como o demônio tinha dito e, quando voltou, assim referiu a seu senhor, que justamente no dia e na hora que o demônio tinha dito, São Francisco tinha passado desta vida.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Como o Papa Gregório IX, duvidando dos estigmas de São Francisco,
foi esclarecido sobre eles.
Deixando de falar de todos os milagres dos sagrados santos estigmas de São Francisco, que podem ser lidos em sua legenda, para concluir esta quinta consideração devemos saber que o papa Gregório IX, duvidando um pouco da chaga do lado de São Francisco, como ele contou posteriormente, apareceu-lhe uma noite São Francisco e, levantando um pouco o braço direito, descobriu a ferida do peito e lhe pediu uma vasilha.
Ele mandou busca-la. São Francisco fez com que fosse posta embaixo da ferida do peito e para o Papa pareceu que ela estava sendo enchida até a boca de sangue misturado com água, que saía da dita ferida. E daí em diante foi-se embora toda a sua dúvida. E depois, ele, a conselho de todos os Cardeais, aprovou os sagrados santos estigmas de São Francisco. E disso deu aos frades um privilégio especial com a bula pendente (o selo). E ele fez isso em Viterbo, no décimo primeiro ano de seu papado. No décimo segundo ano, deu um outro mais copioso.
Também o papa Nicolau III e o papa Alexandre (IV) deram a respeito generosos privilégios, pelos quais se poderia contra quem negasse os estigmas de São Francisco como se fosse um herege.
Baste isso quanto à quinta consideração dos gloriosos estigmas de nosso ai São Francisco. Que Deus nos dê a graça de seguir sua vida neste mundo, de maneira que, por seus estigmas gloriosos, mereçamos ser salvos com ele no paraíso.
Para louvor de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário