“Sacrum commercium”
Aliança de São Francisco com a Senhora Pobreza
ÍNDICE
Capítulo 1
O bem-aventurado Francisco indaga sobre a Pobreza
Capítulo 2
Ele pede que lhe indiquem onde mora a Pobreza.
Capítulo 3
O bem-aventurado Francisco exorta os frades.
Capítulo 4
A Pobreza se admira da facilidade dos que estão subindo.
Capítulo 5
O bem-aventurado Francisco louva a Pobreza.
Capítulo 6
A dignidade da Pobreza.
Capítulo 7
Resposta da Senhora Pobreza.
Capítulo 8
Lembrança da pobreza no paraíso.
Capítulo 9
Testamento de Cristo.
Capítulo 10
Sobre os apóstolos.
Capítulo 11
Sobre os seguidores dos apóstolos.
Capítulo 12
Sobre a paz contrária à Pobreza.
Capítulo 13
A Perseguição, irmã da Pobreza.
Capítulo 14
Louvor dos bons pobres.
Capítulo 15
Sobre os falsos pobres.
Capítulo 16
A Avareza.
Capítulo 17
A Pobreza admoesta os falsos religiosos.
Capítulo 18
A resposta deles.
Capítulo 19
A Pobreza fala sobre os bons religiosos.
Capítulo 20
A Avareza arroga-se o nome de Discrição.
Capítulo 21
A Avareza dá-se o nome de Providência.
Capítulo 22
A Avareza pede a ajuda da Acídia.
Capítulo 23
Sobre os religiosos vencidos pela Acídia.
Capítulo 24
Os pobres que se tornaram ricos perseguem a Pobreza.
Capítulo 25
A Pobreza exorta-os a voltarem.
Capítulo 26
O Senhor fala à Pobreza.
Capítulo 27
A senhora Pobreza previne o bem-aventurado Francisco sobre o progresso e a decadência do comportamento.
Capítulo 28
O bem-aventurado Francisco responde à Pobreza com os frades.
Capítulo 29
Consentimento da Pobreza.
Capítulo 30
Sobre o banquete da Pobreza com os frades.
Capítulo 31
A senhora Pobreza abençoa os frades e os exorta a perseverarem na graça recebida.
Começa o “Sacrum commercium”
(Prólogo)
1. Entre as outras virtudes preclaras e principais, que preparam no homem lugar e morada para Deus e indicam o caminho mais excelente e expedito para ir e chegar até Ele, a santa Pobreza sobressai entre todas por uma certa prerrogativa e supera os títulos das outras por uma graça singular, porque ela é o fundamento e guardiã de todas as virtudes e tem, entre as outras virtudes evangélicas, a primazia de ser citada merecidamente em primeiro lugar. Por isso, as outras não precisam temer que caiam as chuvas, que cheguem os rios e que soprem os ventos ameaçando ruína, se estiverem estabelecidas sobre esta base.
2. E com razão, pois o Filho de deus, Senhor das virtudes e Rei da glória, amou-a com afeto especial, buscou-a, encontrou-a e a manteve, quando realizava a salvação no meio da terra. Foi a ela que ele colocou, no começo de sua pregação, como luz para os que entram pela porta de fé e lançou como pedra fundamental da casa. E ela foi investida sem demora alguma com o reino dos céus, que as outras virtudes receberam dele como promessa. Pois disse: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (cfr. Mt 5,3).
3. O reino dos céus é mesmo, com dignidade, daqueles que não possuem nada de terreno por vontade própria, por uma intenção espiritual e pelo desejo das coisas eternas. Quem não se preocupa com as coisas terrenas precisa viver das celestes, e pode comer neste exílio, saboreando-as, as doces migalhas que caem da mesa dos santos anjos. São os que, renunciando a todas as coisas terrenas, têm tudo como lixo, para ter o mérito de saborear quão doce e suave é o Senhor. Ela é a verdadeira investidura do reino dos céus, é a segurança de sua posse eterna, é uma oportunidade de já provar a felicidade futura.
4. Por isso, o bem-aventurado Francisco, como verdadeiro imitador e discípulo do Salvador, entregou-se, no princípio de sua conversão, com todo esforço, com todo desejo, com toda decisão a buscar, encontrar e preservar a santa pobreza, sem duvidar de adversidades, sem temer nada de sinistro, sem fugir a nenhum trabalho, sem escapar de nenhuma angústia do corpo, para que lhe fosse dada finalmente a opção de chegar àquela a quem o Senhor entregou as chaves do reino dos céus.
Capítulo 1 – O bem-aventurado Francisco indaga sobre a Pobreza.
5. Aplicadamente, como um explorador curioso, ele começou a rondar pelos becos e praças da cidade, procurando diligentemente a que era a amada de sua alma. Interrogava os que estavam parados, perguntava aos que chegavam, dizendo: “Será que não vistes aquela que minha alma ama?” (cfr. Ct 3,3). Mas essa palavra era como um enigma para eles (Lc 18,34), parecia estrangeiro. Como não o entendiam, diziam: “Ó homem, não sabemos do que estás falando. Fala-nos em nossa lingua e te responderemos”. Naquele dia, os filhos de Adão não tinham voz nem sensibilidade para querer conversar sobre a pobreza, ou mesmo mencioná-la. Odiavam-na veementemente, como fazem até hoje, e sobre ela não podiam falar nada de pacífico ao que perguntava; por isso responderam como a um estranho, afirmando que não sabiam nada do que se estava perguntando.
6. O bem-aventurado Francisco disse: “Vou falar com os importantes e os sábios. Pois eles conhecem o caminho do Senhor e o juízo do seu Deus (Jr 5,5); estes talvez sejam pobres e ignorantes. Desconhecendo o caminho do Senhor e o juízo do seu Deus (Jr 5,4)”. Quando o fez, eles lhe responderam ainda mais duramente, dizendo: “Que doutrina nova é essa que apresentas aos nossos ouvidos? Pois que essa pobreza, que buscas, pertença sempre a ti, aos teus filhos e à tua descendência depois de ti! Para nós o que conta é gozar as delícias e ter muitas riquezas, porque o tempo de nossa vida é curto e tedioso, e não há refrigério para o fim do homem (cfr. Sb 2,1). Não conhecemos nada de melhor do que alegrar-se, comer e beber enquando vivemos”.
7. O bem-aventurado Francisco, ouvindo essas coisas, ficava admirado em seu íntimo e, dando graças a Deus, dizia: “Bendito sejas tu, Senhor Deus (cfr. Lc 1,68), que escondeste estas coisas dos sábios e prudentes e as revelaste aos pequeninos! Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado (Mt 11,25-26). Senhor, Pai e dominador de minha vida, não me abandones ao conselho deles, nem me deixes cair nessa reprovação, mas dá-me, por tua graça, encontrar o que busco, porque sou teu servo e filho de tua serva (cfr. Sl 115,16)”.
8. Então, saindo da cidade, o bem-aventurado Francisco foi com passo rápido para um campo, em que, olhando de longe, viu dois velhos sentados tomados se grande tristeza. Um deles dizia: “Para quem vou olhar senão para o pobrezinho e contrito de coração, e para o que teme as minhas palavras (Is 66,2)?”.
* E o outro dizia: “Nada trouxemos para este mundo; sem dúvida também não podemos levar nada; tendo comida e com que nos cobrir, ficamos contentes com isso (1Tm 6,7-8)”.
Capítulo 2
Ele pede que lhe indiquem onde mora a Pobreza.
9. Quando chegou junto deles, o bem-aventurado Francisco lhes disse: “Indicai-me, por favor, onde mora a senhora Pobreza, onde apascenta, onde se deita ao meio-dia (cfr. Ct 1,6), porque estou doente de amor por ela” (cfr. Ct 2,5). Mas eles responderam dizendo: “Bom irmão, nós estamos sentados aqui por um tempo, e dois tempos e metade de um tempo (cfr. Dn 7,25; 12,7; Ap 12,14), e a vimos passar freqüentemente, porque muitos a buscavam. Às vezes, eram muitos os que a acompanhavam, mas muitas vezes ela voltava sozinha e nua, sem nenhum enfeite de jóias (cfr. Is 61,10), sem se distinguir por nenhum acompanhante, sem vestir roupa alguma. Chorava muito amargamente, e dizia: Os filhos de minha mãe lutaram contra mim (Ct 1,5)”. E nós lhe dizíamos: “Tem paciência (cfr. Mt 18,26), que os retos te amam (cfr. Ct 1,3)”.
10. E agora, irmão, ela subiu a uma montanha grande e alta onde Deus a estabeleceu; porque Deus a ama mais do que a todas as tendas de Jacó (cfr. Sl 86,1-2). Gigantes não puderam acompanhar os vestígios de seus pés (cfr. Est 13,13), e águias não voaram até o seu pescoço. A pobreza é algo singular, que todo homem despreza, porque não se encontra na terra dos que vivem acomodados (cfr. Jó 28,13); por isso ela se escondeu aos seus olhos, esconde-se até das aves do céu (Jó 28,21); Deus conhece o seu caminho, só Ele sabe onde é o seu lugar (Jó 28,23).
11. Por isso, irmão, se queres chegar até ela, despe as tuas roupas de festa (cfr. Jdt 10,3) e deixa todo peso e pecado que te cerca (cfr. Hb 12,1) porque, se não fores nu, não poderás subir até ela, que se recolheu em tão grande altura. Mas, como é benigna (cfr. 1Cor 13,4), é enxergada facilmente pelos que a amam, e é encontrada pelos que a buscam (Sb 6,13). Irmão, pensar nela é sabedoria consumada, e quem velar por causa dela, logo vai estar seguro (Sb 6,16). Toma companheiros fiéis, para usar seu conselho e apoiar-se em sua ajuda na subida da montanha, porque ai do só! Se cair, não tem quem o levante; se um cair, será apoiado pelo outro (Ecl 4,10)”.
Capítulo 3
O bem-aventurado Francisco exorta os frades.
12. Por isso, depois de ter o conselho de homens tão importantes, o bem-aventurado Francisco foi escolher alguns companheiros que lhe eram fiéis, com os quais chegou correndo à montanha. E disse a seus irmãos: “Vinde, subamos ao monte do Senhor e à casa da Senhora Pobreza, para que nos ensine seus caminhos e nós andemos por suas sendas (Is 2,3)”.
Quando eles olharam a subida do monte de todos os lados, por causa de sua demasiada altura e aspereza, alguns deles disseram uns aos outros: “Quem subirá nesta montanha (cfr. Sl 23,3) e quem vai chegar ao seu cume?”
13. Ouvindo isso, o bem-aventurado Francisco lhes disse: “Apertado é o caminho, irmãos, e estreita a porta que leva para a vida, e poucos são os que a encontram” (Mt 7,14). Fortalecei-vos no Senhor e no poder de sua força (Ef 6,10), pois tudo que é difícil vai ser fácil para vós. Deponde a carga da vontade própria, jogai for a o peso dos pecados, e cingi-vos como homens poderosos (cfr. 1Mac 3,58). Esquecidos do que ficou para trás, estendei-vos quanto puderdes para o que está à frente (cfr. Fl 3,13). Eu vos digo que todo lugar que vosso pé pisar, vosso será (cfr. Dt 11,24). Pois há um espírito diante de vossa face, Cristo Senhor, que vos arrastará até os cumes do monte com os vínculos da caridade (cfr. Os 11,4). Irmãos, o esponsal da Pobreza é admirável, mas nós poderemos gozar facilmente de seus abraços, porque a Senhora dos povos tornou-se como uma viúva (cfr. Lm 1,1), a rainha das virtudes fez-se vil e desprezada para todos. Não há ninguém da região que ouse protestar, ninguém que a nós se oponha, ninguém que possa ter o direito de proibir esta aliança salutar. Todos os seus amigos a desprezaram e se tornaram seus inimigos (Lm 1,2)”. Quando foram ditas essas coisas, todos começaram a andar atrás de São Francisco.
Capítulo 4
A Pobreza se admira da facilidade dos que estão subindo.
14. Como eles estavam correndo para o cume com um passo muito fácil, eis que a Senhora Pobreza, em pé no pico da montanha, olhou pelas escarpas do monte. Quando viu aqueles homens subindo com tanta potência, e até voando, ficou fortemente admirada e disse: Quem são esses que voam como nuvens e parecem pombas voltando a suas janelas (Is 60,8)? Já faz tempo que não vejo pessoas assim, nem vi tão expeditas por terem jogado fora toda a carga. Vou falar-lhes do que se passa no meu coração, para que não se arrependam como os outros de toda essa subida, e não vejam o abismo que as cerca. Sei que eles não podem me alcançar sem o meu consentimento, mas terei mérito diante de meu Pai celeste se lhes der um conselho de salvação”.
13. E eis que se fez ouvir uma voz para ela (cfr. Lc 1,44), dizendo: Não temas, filha de Sião (cfr. Jo 12,15), pois estes são a descendência que o Senhor abençoou (cfr. Is 61,9) e escolheu em caridade não fingida (cfr. 2Cor 6,6)”. E assim, reclinando-se no trono de sua nudez, a Senhora Pobreza adiantou-se a eles com bênçãos de doçura (cfr. Sl 20,4) e lhes disse: “Qual é a causa de vossa vinda, dizei-me, irmãos, e por que vindes com tanta pressa do vale dos míseros ao monte da claridade? Ou será que me procurais, a mim que, como vêdes, sou pobrezinha, sacudida pela tempestade e sem consolação alguma (Is 54,11)?”.
Capítulo 5
O bem-aventurado Francisco louva a Pobreza.
16. Eles responderam, dizendo: “Viemos a ti, senhora nossa, e pedimos: recebei-nos em paz. Queremos tornar-nos servos do Senhor das virtudes, porque Ele é o rei da glória. Ouvimos dizer que és a rainha das virtudes e, de qualquer maneira, foi isso que aprendemos com a experiência. Por isso, prostrados aos teus pés, suplicamos humildemente que te dignes estar conosco e sejas para nós o caminho que leva ao rei da glória, como foste caminho para Ele, quando se dignou visitar, vindo do alto, os que jaziam nas trevas e na sombra da morte (cfr. Lc 1,79.78).
17. Pois sabemos que teu é o poder, teu é o reino, tu estás acima de todas (1Cr 29,11) as virtudes, constituída pelo Rei dos reis como rainha e senhora. É só fazeres a paz conosco e seremos salvos, para que por ti nos receba aquele que por ti nos remiu. Se determinares salvar-nos, ficaremos imediatamente livres. Pois o próprio Rei dos reis e Senhor dos senhores (Ap 19,16), Criador do céu e da terra, desejou tua beleza e formosura (cfr. Sl 44,12). Quando o rei estava em sua cama (cfr. Ct 1,11), rico e glorioso em seu reino, deixou sua casa, largou sua herança (cfr. Jr 12,7): pois a glória e a riqueza estão em sua casa (cfr. Sl 111,3). E assim, vindo de seu trono real (cfr. Sb 18,15) te procurou dignissimamente.
18. Por isso é grande a tua dignidade e incomparável a tua altura, porque, deixando todas as ordens de anjos e as imensas virtudes, dos quais havia um grande número nas alturas, veio porcurar-te nas partes inferiores da terra, a ti que jazias no lodo das fezes (cfr. Sl 39,3), nos lugares tenebrosos e na sombra da morte veio o Senhor dominador (cfr. Ml 3,1), acolhendo-te nele mesmo, exaltou tua cabeça (cfr. Sl 109,7) diante das tribos dos povos e te ornou com uma coroa, como uma noiva (cfr. Is 61,10), elevando-te acima das nuvens (cfr. Is 14,14). Embora seja certo que ainda há muitos que te detestam, ignorando tua virtude e tua glória (cfr. Sl 62,3), isso não te diminui em nada, porque habitas livremente nos montes santos (cfr. Sl 86,1), na casa firmíssima (cfr. 2Par 6,33) da glória de Cristo”.
Capítulo 6
A dignidade da Pobreza.
19. “Assim o Filho do sumo Pai enamorou-se de tua formosura (cfr. Sb 8,2): prendendo-se só a ti no mundo, comprovando que tu és fidelíssima em tudo. Pois ainda antes que viesse da pátria luminosa para a terra, preparaste-lhe um lugar adequado, um trono para sentar e um tálamo para descansar, isto é, a Virgem paupérrima, de quem nasceu e brilhou para o mundo. É certo que acorreste quando ele nasceu, para que encontrasse em ti e não nas delícias um lugar de que gostasse. Diz o evangelista que ele foi posto num presépio, porque não havia lugar para ele na estalagem (Luc 2,7). E assim o acompanhaste sempre, para que em toda a sua vida, quando foi visto na terra e conviveu com os homens (cfr. Br 3,38), pois as raposas tinham tocas e as aves os seus ninhos, mas ele não tinha onde reclinar a cabeça (cfr. Mt 8,20). Depois, quando abriu a boca para ensinar, Ele, que outrora abrira a boca dos profetas, entre muitas coisas que disse, louvou-te em primeiro lugar, exaltou-te primeiramente dizendo: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3)”.
20. Mas, quando escolheu algumas testemunhas necessárias para a santa pregação e para sua gloriosa convivência para a salvação do gênero humano, certamente não escolheu ricos comerciantes mas pobres pescadores, para mostrar com quanta estima tu devias ser amada por todos. Finalmente, para que se manifeste a todos a tua bondade, a tua magnificência e a tua fortaleza, e como precedes a todas as virtudes, como sem ti não pode haver virtude nenhuma, como o teu reino não é deste mundo (cfr. Jo 18,36), mas do céu, e como, quando todos os escolhidos e amados o abandonaram medrosamente foste a única que, então, aderiste ao rei da glória. Mas tu, esposa fidelíssima, amiga dulcíssima, nem por um momento dele te afastaste; antes, até aderias mais a Ele quanto mais o vias ser desprezado por todos.
21. Pois, se não estivesses com Ele, nunca poderia ter sido desprezado dessa maneira por todos. Estavas com Ele nas zombarias dos judeus, nos insultos dos fariseus, nas exprobrações dos príncipes dos sacerdotes; com Ele estavas nos tapas, nas cusparadas, nos açoites. O que devia ser mais reverenciado por todos foi vilipendiado por todos, e foste a única que o consolou. Não o abandonaste até a morte, morte de cruz (cfr. Fl 2,8). E na própria cruz, com o corpo já despido, os braços estendidos, as mãos e os pés pregados, padecias com Ele, de modo que nada nele parecia mais glorioso do que tu. Finalmente, quando foi embora para o céu, deixou contigo o sinal do reino dos céus para marcar os eleitos, para que todo aquele que suspira pelo reino eterno venha a ti, peça a ti, entre por ti, porque, se não for marcado com o teu sinal (cfr. Ct 8,6; Ap 7,3) ninguém poderá entrar no reino.
22. Por isso, Senhora, tem compaixão de nós e marca-nos com o sinal da tua graça. Quem seria tão tapado, tão sem gosto para não te amar com todo o coração a ti que foste escolhida pelo Altísismo e preparada desde a eternidade? Quem não te reverenciará e honrará, quando te distinguiu com tanta honra Aquele a quem adoram todas as virtudes do céu? Quem não adorará os vestígios de teus pés de boa vontade, se a ti o Senhor da majestade se inclinou tão humildemente, se uniu tão amigavelmente, aderiu com tanto amor? Por Ele e por causa dele, nós te rogamos, Senhora, não desprezes nossos pedidos nas necessidades, mas livra-nos sempre dos perigos, ó gloriosa e bendita pela eternidade”.
Capítulo 7
Resposta da Senhora Pobreza.
23. A Senhora Pobreza, com o coração alegre, rosto sorridente e voz suave, respondeu dizendo:
“Confesso-vos, irmãos e amigos queridos, que, desde que começastes a falar, fiquei cheia de alegria, transbordo de gozo (cfr. 2Cor 7,4), vendo o vosso fervor, já conhecendo o vosso santo propósito. Vossas palavras tornaram-se para mim muito mais desejáveis que o ouro e a pedra preciosa, e mais doces que o mel e o favo (Sl 18,11). Pois não sois vós que falais mas é o Espírito Santo que fala em vós (cfr. Mt 10,20), e a sua unção vos ensina sobre todas as coisas (cfr. 1Jo 2,27) que falastes sobre o Rei altissimo, que, só por sua graça, tomou-me como a amada, assumiu o meu opróbrio (cfr. Lc 1,25) da terra, e me glorificou no céu entre os mais destacados.
24. Por isso eu quero, se não for pesado ouvir, contar-vos a longa mas não menos útil história da minha situação, para que aprendais como deveis andar e agradar a Deus (cfr. 1Ts 4,1), cuidando de não olhar para trás, vós que quereis pôr a mão no arado (cfr. Lc 9,62).
Não sou rude, como muitos acham, mas bastante antiga e rica em número de dias, conhecendo a disposição das coisas, a variedade das criaturas, a mutabilidade dos tempos. Conheço as flutuações do coração humano, em parte pela experiência do tempo, em parte pela sutileza natural, em parte pela dignidade da graça”.
Capítulo 8
Lembrança da pobreza no paraíso.
25. “Estive, uma vez, no paraíso de Deus (cfr. Ap 2,7), onde estava o homem nu e até passeando no homem e com o homem nu naquele belíssimo jardim (cfr. Gn 2,25; 3,8), sem temer nada, sem duvidar de nada, e sem suspeitar de nenhuma coisa adversa. Eu achava que ia ficar com ele para sempre, porque foi criado pelo Altíssimo justo, sábio, e colocado num lugar ameníssimo e muito bonito. Estava muito alegre e brincando diante dele todo o tempo (cfr. Pr 8,30), porque, não tendo nenhuma propriedade, era todo de Deus.
26. Mas ai! Sofreu um mal inesperado, jamais ouvido desde o começo da criação, quando aquele infeliz, que outrora tinha perdido a sabedoria, e não pôde ficar no céu, entrou numa serpente, (cfr. Ez 28,17; Gn 3,1) e o agrediu, para que o homem, como ele mesmo, se tornasse um prevaricador do mandamento divino. O infeliz deu ouvidos e consentiu com quem lhe dava mau conselho e, esquecido de seu Criador, Deus, imitou o primeiro transgressor. Antes, ele estava nu, mas não se envergonhava como disse a Escritura sobre ele (cfr. Gn 2,25), porque, nele, a inocência era completa. Mas, quando pecou, percebeu que estava nu e, por causa da vergonha, correndo às folhas de figueira, fez uma tanga para si (cfr. Gn 3,7).
27. Vendo que meu companheiro se tornara transgressor e estava coberto de folhas, pois não tinha outra coisa, afastei-me dele e, ficando de longe, comecei a olhá-lo com lágrimas no rosto. esperava quem me salvasse da pusilanimidade do espírito e de tamanha tempestade (cfr. Sl 54,9). De repente, veio do céu um rumor (cfr. At 2,2) sacudindo todo o paraíso e, com ele, foi enviada do céu uma luz esplendisíssima.
Quando olhei, vi o Senhor da majestade passeando no paraíso na brisa depois do meio dia (cfr. Gn 3,8), refulgindo de glória inenarrável e indizível. Acompanhavam-no multidões de anjos, clamando com voz forte e dizendo: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos, cheia está a terra inteira de tua glória (Is 6,3). Mil milhares serviam-no, e dez centenas de milhares assistiam-no (Dn 7,10).
28. Comecei, eu confesso, a me apavorar e a tremer muito, a desmaiar toda de estupor e de horror, com o corpo fraquejando mas o coração palpitando, clamei das profundezas (Sl 129,1), dizendo: “Senhor, misericórdia! Senhor, misericórdia! Não leves teu servo a julgamento, porque nenhum vivente poderá justificar-se diante de ti (Sl 142,2)”. E Ele me disse: “Vai esconderte um pouco, por um momento, até que passe a minha indignação”.
E chamou logo em seguida o meu companheiro, dizendo: “Adão, onde estás?”E ele: “Ouvi tua voz, Senhor, e fiquei com medo, porque estava nu, e me escondi (Gn 3,9-10)”. Na verdade estava nu, porque, descendo de Jerusalém a Jericó, caiu na mão dos ladrões, que antes de tudo despojaram-no (cfr. Lc 10,30) da bondade da natureza, pois perdera a semelhança com o Criador. Mas o próprio Rei altíssimo, e não menos bondosíssimo, esperou sua conversão, dando-lhe oportunidade de voltar a Ele.
29. Mas o miserável deixou seu coração fraquejar, rompendo em palavras de malícia para se desculpar dos pecados cometidos (cfr. Sl 140,4). E assim aumentou a culpa e acumulou mais penas, entesourando para si a ira para o dia da ira e da indignação do justo juízo de Deus (cfr. Rm 2,5). Não poupou a si mesmo nem à sua descendência, que veio depois dele, juntando para todos a terrível maldição da morte. E quando todos os presentes o julgaram, o Senhor expulsou-o do paraíso do prazer, (cfr. Gn 3,23) por um julgamento justo mas não menos misericordioso. E, para que voltasse à terra, da qual tinha sido tomado (cfr. Gn 3,19), ditou-lhe a sentença da maldição, bem temperada; fez para ele túnicas de pele (cfr. Gn 3,21), designando nelas a sua mortalidade, despojado que foi a das vestes da inocência.
30. Quando vi meu companheiro vestido com as peles dos mortos, afastei-me de uma vez dele, porque tinha sido expulso para trabalhar bastante para ficar rico. Por isso andei errante e fugitiva pela terra (cfr. Gn 4,12), chorando e gemendo demais. Desde esse tempo não encontrei onde descansar meu pé (cfr. Gn 8,9), enquanto Abraão, Isaac, Jacó e os outros justos recebiam como promessa as riquezas e a terra onde corria leite e mel (cfr. Ex 3,17). Em todos eles procurei repouso e não encontrei (cfr. Eclo 24,11; Jr 45,3), pois diante da porta do paraíso estava um querubim com uma espada de fogo vibrante (cfr. Gn 3,24), até que o Altíssimo viesse do seio do Pai (cfr. Jo 1,18) para o mundo, e Ele me procurou com a maior dignidade.
Capítulo 9
Testamento de Cristo.
31. “O qual, depois que cumpriu tudo que dissestes, quis voltar ao seu pai, que o enviara e fez um testamento sobre mim para os seus eleitos, e o confirmou com uma sentença irrevogável, dizendo-lhes: “Não queirais possuir ouro, nem prata, nem dinheiro. Não queirais levar bolsa, nem mochila, nem pão, nem bastão, nem calçado, e nem tenhais duas túnicas (Mt 10,9-10; Lc 9,3). Se alguém quiser mover um processo contra ti na justiça para te tomar a túnica, dá-lhe também o manto. Se alguém te provocar para andar mil passos, vai com ele mais dois mil (Mt 5,40-41). Não ajunteis tesouros para vós na terra, onde a ferrugem e as traças os corroem e onde os ladrões cavam e roubam (Mt 6,19-20). Não vos aflijais dizendo: Que vamos comer? Ou que vamos beber? Ou com que vamos nos cobrir? (Mt 6,31)? Não vos preocupeis com o dia de amanhã: o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta para cada dia o seu cuidado (Mt 6,34). Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33), e o resto que está escrito no mesmo livro”.
Capítulo 10
Sobre os apóstolos.
32. “Os apóstolos e todos os seus discípulos observaramn tudo isso com a maior diligência, e não descuidaram, nem por uma hora, (cfr. Gl 2,5) de coisa alguma de tudo que ouviram de seu Senhor e Mestre. Eles, soldados fortíssimos, juízes de toda a terra, cumpriram o salutar mandamento, pregando-o por toda parte, e o Senhor cooperava com eles e confirmava suas palavras com os milagres que a acompanhavam (cfr. Mr 16,20). Ardiam em caridade, levando em todo lugar o carinho de sua dedicação e cuidando das necessidades de todos, cuidando com toda vigilância que não se pudesse dizer deles: Dizem e não fazem (Mt 23,3)”. Por isso um deles disse, com a maior ousadia: Pois eu não ouso falar coisa alguma que Cristo não tenha feito em mim com fatos e palavras pela força do Espírito Santo (Rm 15,18.19)”. E outro disse: Não tenho prata ou ouro (At 3,6). E assim todos, na vida e na morte, me exaltaram com os maiores louvores.
Seus ouvintes tratavam de cumprir tudo que seus mestres lhes haviam ensinado, vendendo suas propriedades e bens, dividindo-os entre todos conforme a necessidade de cada um (At 2, 45). Viviam todos juntos e tinham tudo em comum (cfr. At 2,44), louvando juntos a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. Por isso o Senhor aumentava todos os dias os que haveriam de ser salvos nele (At 2,47)”.
Capítulo 11
Sobre os seguidores dos apóstolos.
33. Durante muito tempo, a verdade destas palavras permaneceu em muitos, principalmente porque o sangue do pobre Crucificado ainda estava quente em sua memória e o cálice preclaro de sua paixão inebriava os seus corações. Pois, se alguns, tentassem abandonar-me por uma hora sequer, por causa da demasiada aspereza, lembrando-se das chagas do Senhor, pelas quais se revelavam as entranhas de sua piedade, puniam-se gravemente por sua tentação e aderiam a mim com mais força, abraçando-me com mais ardor. Por isso eu estava com eles, inculcando-lhes sempre na memória as dores da paixão do Rei eterno, de modo que, não pouco confortados por minhas palavras, pegavam de boa vontade o ferro que dilacerava seu corpo, e era com alegria que viam manar de sua carne o sangue sagrado. Essa vitória perdurou por um tempo muito longo, de maneira que cada dia mil milhares eram marcados com o sinal do rei supremo (cfr. Ap 7,2-3)”.
Capítulo 12
Sobre a paz contrária à Pobreza.
34. “Mas, ai! Depois de pouco tempo fez-se a paz, e essa paz foi pior que qualquer guerra: no princípio, foram poucos os assinalados; no meio, menos ainda; e no fim, pouquíssimos. E agora, certamente, eis que na paz está a minha maior amargura (cfr. Is 38,17), nela todos fogem de mim, todos me afugentam, não sou procurada por ninguém, por todos sou abandonada. Estou em paz com os inimigos mas não com os de casa, tenho a paz dos estranhos mas não a dos filhos. E no entanto, criei os filhos e os exaltei, mas eles me desprezaram (Is 1,2).
35. Naquele tempo, quando resplandecia a lâmpada do Senhor sobre a minha cabeça e eu caminhava à sua luz nas trevas (cfr. Jo 29,3), o diabo estava em muitos que estavam comigo, maltratando-os, e o mundo aliciava-os, a carne tentava-os, de modo que muitos começaram a amar o mundo e as coisa que estão no mundo (cfr. 1Jo 2,15)”.
Capítulo 13
A Perseguição, irmã da Pobreza.
36. “Mas a consumação de todas as virtudes, a senhora Perseguição, a quem Deus entregou o reino dos céus (cfr. Mt 5,10) como a mim, estava comigo: era em tudo uma fiel ajudante, uma auxiliar forte e uma conselheira prudente, que, se via alguma vez que alguns se esfriavam na caridade, esqueciam mesmo que um pouquinho as coisas celestes, colocavam o coração em toda parte nas coisas terrenas, trovejava imediatamente, arregimentava imediatamente o exército, enchia imediatamente os rostos de meus filhos de igniomínia, para que buscassem o nome do Senhor. Mas agora minha irmã me abandonou (Lc 10,40) e a luz de meus olhos não está (cfr. Sl 37,11), porque, enquanto a paz era dada pelos perseguidores aos meus filhos, eles se estraçalhavam em luta doméstica e interna, invejando-se mutuamente, provocando-se mutuamente (Gl 5,26) na aquisição de riquezas e na torrente de delícias”.
Capítulo 14
Louvor dos bons pobres.
37. “Passado algum tempo, alguns começaram a respirar e a ir, por própria decisão, pelo caminho reto, que, naquele tempo, só era percorrido por poucos, forçados pela necessidade. Todos eles vieram a mim, rogando insistentemente com muitas preces e lágrimas, para fazer com eles uma aliança de paz perpétua, e para que estivesse com eles como estive outrora nos dias da minha adolescência (cfr. Ez 16,60), quando o Onipotente estava comigo e os meus filhos ao meu redor (Jó 29,5). Eram homens de virtude, homens pacíficos, sem querela diante de Deus (cfr. 1Ts 3,13), persistentes no amor da fraternidade (2Pd 1,7), enquanto viveram na carne, pobres em espírito, despojados de bens, ricos em santidade de vida, cumulados com os dons dos carismas celestes, fervorosos em espírito, alegres na esperança, pacientes na tribulação (cfr. Rm 12,11.12), mansos e humildes de coração (cfr. Mt 11,29), conservando a paz de espírito, a concórdia dos costumes, a unidade do relacionamento e alegria da unidade.
Afinal, eram homens devotados a Deus, agradáveis aos anjos, amáveis para as pessoas, rígidos consigo mesmos, misericordiosos com os outros, religiosos pela ação, modestos no caminhar, alegres de rosto, graves de coração, humildes na prosperidade, magnânimos nas adversidades, sóbrios na convivência, muito parcimoniosos nas roupas, muito comedidos no sono, discretos, tementes, notáveis pelo brilho de todos os bens. Minha alma estava grudada com eles e havia em nós uma só espírito e uma só fé (cfr. Ef 4,4.5)”.
Capítulo 15
Sobre os falsos pobres.
38. “Levantaram-se, por fim, contra nós os que não eram dos nossos (cfr. 1Jo 2,19), uns certos filhos de Belial (cfr. Dt 13,13), falando bobagens, fazendo iniquidades, dizendo que eram pobres quando não eram (cfr. Ap 2,9; 3,9), e eu, que fui amada de todo coração pelos varões gloriosos de que falei, fui desprezada e desonrada pelos que seguiam o caminho de Balaão filho de Bosor, que amou o salário da iniquidade (cfr. 2Pd 2,15), homens corruptos na mente, privados da verdade, achando que a piedade é fonte de lucro (1Tm 6,5): homens que vestiram o hábito da santa religião, não vestiram o homem novo (cfr. Ef 4,24), mas recobriram o velho. Falavam mal dos seus mais antigos e mordiam, às escondidas, a vida e os costumes dos que foram os fundadores de uma santa forma de vida, chamando-os de indiscretos, sem misericórdia, cruéis (cfr. Jr 50,42), e a mim, que tinham assumido, chamavam de ociosa, dura, torpe, inculta, exangue e morta.
Isso era movimentado com o maior esforço pela minha inimiga, que, vestindo a roupa de ovelha, ocultava a raiva de lobo com a astúcia de uma raposa”.
Capítulo 16
A Avareza.
39. “Ela era a Avareza, nome da cobiça imoderada de adquirir ou conservar riquezas. Davam-lhe um nome mais decente para que, de maneira alguma, parecessem ter abandonado a mim, que os ajudei a levantar-se do pó e a sair do esterco. Comigo falavam sobre ela pacificamente, mas tramavam dolos sobre a ira (cfr. Sl 34,20). E, embora não se possa esconder a desolação de uma cidade colocada sobre um monte (cfr. Mt 5,14), assim mesmo impuseram-lhe o nome (cfr. Dt 22,17) de Discrição ou Providência, ainda que fosse melhor chamar essa discrição de confusão e a providência de esquecimento pernicioso de todos os bens.
E me diziam: Teu é o poder, teu é o reino cfr. 1Pr 29,11), não temas. É bom perseverar nas obras de piedade e ter tempo para os bons frutos, ajudar os necessitados e dar alguma coisa aos pobres”.
Capítulo 17
A Pobreza admoesta os falsos religiosos.
40. “Eu lhes dizia: “Irmãos, não vos contesto, que não é bom o que dizeis, mas eu vos peço, considerai a vossa vocação (cfr. 1Cor 1,26). Não olheis para trás! Não queirais descer do telhado, pegar alguma coisa da casa (cfr. Mt 24,17; Mr 13,15). Não queirais voltar do campo para buscar a roupa (cfr. Mt 24,18). Não vos envolvais com os negócios seculares (cfr. 2Tm 2,4). Não vos impliqueis de novo com as sujeiras do mundo e com as corrupções, das quais fugistes quando conhecestes o Salvador. Pois é preciso que sejam vencidos os que se implicaram de novo com essas coisas, e a situação posterior deles vai ser pior que a anterior (cfr. 2Pd 2,20; Mt 112,45), uma vez que, com a desculpa da piedade, voltaram atrás do santo mandamento que lhes tinham sido confiado.
Capítulo 18
A resposta deles.
41. “Quando eu lhes propuz isso, nasceu uma dissensão entre eles (cfr. Jo 7,43; 10,19). Uns diziam: Ela é boa e fala bem; mas outros respondiam: Não, ela quer nos seduzir (cfr. Jo 7,12), para que a imitemos; é miserável e quer que todos nós sejamos miseráveis com ela.
Capítulo 19
A Pobreza fala sobre os bons religiosos.
42. “A minha rival não conseguiu me expulsar, naquele tempo, do recinto deles, porque ainda havia entre eles muitos homens de grande fervor e de grande caridade, no começo de sua conversão. Eles batiam às portas do céu comclamores e entravam pela insistência das orações, superando-se na contemplação, desprezando todas as coisas terrenas. Então, o Criador de todas as coisas, Aquele que me criou, deu-me suas ordens dizendo: “Habita em Jacó, possui tua herança em Israel e põe tuas raízes entre os eleitos (cfr. Sr 24,12-13)”. E eu fazia isso com a maior diligência. E como eu assim estava com eles, e caminhássemos juntos pela estrada real, eles tinham graças a mim, a glória entre as multidões e a admiração diante dos poderosos (cfr. Sb 8,10-11); as pessoas prestavam-lhes honra e os chamavam de santos. Eles mesmos começaram a não gostar de ser chamados de santos, lembrando o que foi dito pelo Filho de Deus: “A glória dos homens não recebo (cfr. Jo 5,41), e recusavam totalmente a glória recebida”.
Capítulo 20
A Avareza arroga-se o nome de Discrição.
43. “Quando eles andavam em tão grande fervor de amor por Cristo, a Avareza arrogou-se o nome de Discrição e começou a dizer-lhes: “Não vos mostreis tão rígidos para as pessoas, nem desprezeis desse modo a honra deles, mas mostrai-vos afáveis para com eles e não rejeiteis exteriormente a honra que vos prestam, mas fazei isso interiormente, o máximo que puderdes. É bom ter a amizade dos reis, a familiaridade dos grandes, o reconhecimento dos príncipes, porque, quando eles assim vos honram e veneram, quando vêm ao vosso encontro e vos acolhem, é um exemplo para muitos, porque, vendo isso, convertem-se mais facilmente para Deus”.
44. Eles, vendo o proveito, receberam o conselho dado mas, como não se cuidaram do laço armado à beira do caminho, abraçaram, afinal, a glória e a honra, com todo o coração. No íntimo, eles achavam que eram como se dizia fora, e punham sua glória na boca dos aduladores, como as loucas diante dos vendedores (cfr. Mt 25,8) e o servo inútil na terra (cfr. Mt 25,30).
Mas as pessoas, que achavam que eles eram por dentro o que pareciam por fora, ofereciam-lhes suas coisas de boa vontade, para a remissão de seus pecados. No começo, tinham-nas eles todas como esterco (cfr. Fp 3,8), dizendo: Nós somos e queremos ser sempre pobres, não queremos vossas coisas más (cfr. 2Cor 12,14). Tendo alimento e com que nos cobrir, estamos contentes com isso (cfr. 1Tm 6,8), porque vaidade das vaidades, tudo é vaidade (Qo 1,2; 12,8)”. Por isso, a devoção das pessoas para com eles crescia cada dia, de modo que muitos deles amavam menos as suas coisas, que viam ser desprezadas dessa forma pelos santos”.
Capítulo 21
A Avareza dá-se o nome de Providência.
45. “No entanto, aquela minha bárbara inimiga, vendo isso, começou a se irritar veementemente e a ranger seus dentes (cfr. Sl 34,16), e, tocada por profunda dor do coração (cfr. Gen 6,6), disse: “Que farei? todo o mundo foi atrás dela (cfr. Lc 16,3; Jo 12,19). Vou assumir o nome de Providência, e falarei ao coração deles; pode ser que ouçam e fiquem quietos (cfr. Ez 2,5)”.
Assim fez, falando-lhes com palavras humildes:
Por que estais aqui, ociosos, o dia inteiro? (cfr. Mt 20,6), sem tomar nenhuma providência para o futuro? Que mal há em terdes o necessário para a vida, se vos abstiverdes do supérfluo? Pois poderíes cuidar da vossa salvação e das dos outros com maior paz e tranquilidade se tivésseis à mão tudo que vos é absolutamente necessário. Enquanto tendes tempo (cfr. Gl 6,10), providenciai para vós e para os que virão, porque os homens vão fechar as mãos que deram no começo e fazem os dons costumeiros. Seria bom se fosse sempre assim, mas não conseguireis mantê-lo absolutamente, porque o Senhor vos aumenta cada dia (cfr. At 2,47). Por acaso Deus não aceitaria que tivésseis o que pudesses dar aos necessitados e que fôsseis lembrados dos pobres (Gl 2,10), se ele mesmo diz: Há mais felicidade em dar que em receber (At 20,35)? Por que não recebeis os dons que vos oferecem para não defraudar os doadores do prêmio eterno? Já não há mais motivo para temer a intimidade com as riquezas, pois as tendes como nada. O mal não está nas coisas mas no ânimo, porque viu Deus tudo que tinha feito, e era muito bom (Gn 1,31). Pois, para os bons, todas as coisas são boas, todas servem, todas foram feitas (cfr. Jo 1,3) para eles. Oh! Quantos que têm bens gastam-nos mal. Se vós os tivésseis, mudaríeis para um bom uso, porque o vosso propósito é santo, o vosso desejo é santo! Não tendes vontade de enriquecer os vossos parentes, porque eles são bastante ricos mas, se tivésseis o necessário, poderíeis viver mais honesta e ordenadamente”.
Quando aquela malvada disse essas e outras coisas, alguns deles, que tinham a consciência corrompida, concordaram bem depressa. Mas outros não deram ouvidos aos argumentos apresentados e os refutaram com respostas agudas. E tanto uns como outros apresentaram testemunhos das escrituras.
Capítulo 22
A Avareza pede a ajuda da Acídia.
46. “Mas a Avareza, vendo que sozinha não ia realizar o que queria com eles, mudou de tática para chegar a seu propósito. Convocou a Acídia, que descuidada de começar as coisas boas e de completar o que já tinha começado, fez uma aliança com ela, firmando um pacto contra eles. Não tinha muita familiaridade nem estava fortemente ligada a ela mas, para o mal, de boa vontade juntaram-se, como outrora Herodes e Pilatos contra o Salvador. Feita a aliança, a Acídia se enraiveceu, tomou impulso, e invadiu o terreno deles com suas companheiras.
Usou suas armas com toda a força, extinguiu neles a caridade e os tornou mornos e entorpecidos. E assim, um tanto absorvidos pela pusilanimidade do espírito (Sl 54,9), ficaram como que mortos no coração (Sl 30,13)”.
Capítulo 23
Sobre os religiosos vencidos pela Acídia.
47. “Depois disso, começaram a suspirar por tudo que tinham deixado no Egito, suspirando miseravelmente e buscando vergonhosamente o que tinham desprezado com um coração tão grande. Andavam tristes pelo caminho dos mandamentos (cfr. Sl 118,32) de Deus, acorrendo de coração seco para tudo que era mandado. Desfaleciam sob o pêso e, pela deficiência da espiritualidade, mal podiam respirar. Era raro ficarem compungidos, não tinha contrição nenhuma, a obediência era cheia de murmurações, o pensamento animalesco, a alegria dissoluta, pusilânime a tristeza, incauta a palavra, fácil a risada; tinham hilaridade no rosto, vaidade no andar, roupas macias e delicadas, de corte engenhoso, costura ainda mais engenhosa, dormiam demais, comiam o supérfluo e não se dominavam na bebida. Jogavam ao vento gracejos, anedotas e palavras. Contavam fábulas, alteravam as leis, dispunham das províncias e tratavam diligentemente das realizações humanas. O cuidado com os exercícios espirituais era nenhum, nenhuma era a solicitude pela salvação das almas, raramente conversavam sobre as coisas celestes e morno era o desejo da eternidade.
48. Estavam tão endurecidos que começaram a invejar um ao outro, a provocar-se a dominar um ao outro; cada irmão acusava ao outro dos piores crimes (cfr. Gn 37,2). Evitavam os assuntos sérios, buscando com que se alegrassem porque, na verdade, não o conseguiam. Entretanto, mantendo uma aparência de santidade em tudo, para não ficarem completamente desmoralizados e, falando de coisas santas, escondiam aos simples o seu miserável comportamento. Mas era tão grande a dissolução de seu homem interior que, não conseguindo dominar-se, estouravam no exterior com indícios abertos”.
49. “No fim, começaram a adular os seculaes e a juntar-se com eles para esvaziar suas bolsas, para ampliar os edifícios e para multiplicar as coisas a que tinham renunciado absolutamente. Vendiam palavras aos ricos, saudações às nobres matronas; frequentavam as cortes dos reis e dos príncipes com toda diligência, para juntarem casa com casa e unirem campo ao campo (cfr. Is 5,8). E agora tornaram-se grandes e ricos, enraizados na terra, porque vão de mal a pior e não reconheceram o Senhor (cfr. Jr 9,3). Caíram quando se elevaram (cfr. Sl 72,18), deslizaram para o chão antes de nascer, mas ainda me dizem: “Somos teus amigos”.
Capítulo 24
Os pobres que se tornaram ricos perseguem a Pobreza.
50. “Eu sofria mais por causa de alguns que, tendo sido bastante miseráveis e desprezíveis no século, tornaram-se ricos (cfr. Ap 18,19; 1Cor 1,5) depois que vieram a mim. Mais cevados e gordos que os outros, revoltam-se (cfr. Dt 32,15) caçoando de mim. É certo que eram julgados indignos até de viver, eram estéreis por causa da indigência e da fome, comiam ervas e cascas de árvores, esquálidos pela calamidade e a miséria (cfr. Jó 30,2-4). Agora não se contentam com a vida comum, mas se isolam (Jd 19), saciando a si mesmos sem temor (Jd 12), e como vivem procurando coisas supérfluas, seu comportamento é muito pesado para os outros. Querem ter honra entre os discípulos de Cristo, eles que no século eram muito desprezíveis até entre os conhecidos. Muitas vezes, não tinham nem pão de cevada e água, e achavam uma delícia estar sob os espinheiros, filhos de estultos e de ignóbeis, que não se deixavam absolutamente ver na terra (Jó 30,14), mas me abominam e fogem para longe de mim, e não se envergonham de cuspir no meu rosto (Jó 30,10). Padeci, por causa deles, afrontas e terrores , e os que tinham sido de paz comigo e protegiam os meus flancos (Jr 20,10) agora me insultavam. Tinham vergonha de mim e tanto mais me desprezavam quanto sabiam que tinham sido favorecidos por mim, a ponto de não se dignarem ouvir o meu nome”.
Capítulo 25
A Pobreza exorta-os a voltarem.
51. “Eu sentia muita dor, e lhes dizia: “Voltai, filhos que fostes embora, eu vou curar vossos extravios” (cfr. Jr 3,22). Guardai-vos de toda avareza, que é servidão dos ídolos (cfr. Lc 12,15; Ef 5,5), porque o avarento não vai encher-se de dinheiro (cfr. Ecl 5,9). Recordai-vos dos primeiros dias em que, iluminados, sustentastes o grande combate das paixões (Hb 10,32). Não sejais filhos que se afastam para se perderem, mas filhos da fé para conquistar sua alma (cfr. Hb 10,39). Executam sem compaixão quem viola a lei de Moisés, se tiverem duas ou três testemunhas. Quanto mais achais que vai merecer suplícios piores quem conculcar o Filho de Deus e tiver profanado o sangue do Testamento, em que foi santificado, e tiver ultrajado o espírito da graça (Hb 10,28-29)? Por isso, prevaricadores, voltai ao coração (Is 46,8), porque a vida de ninguém está na abundância das coisas que possui (Lc 12,15)”.
Mas eles, indignados, diziam: “Vai-te, miserável, afasta-te de nós não queremos o conhecimento de teus caminhos (cfr. Jó 21,14)”.
Eu lhes digo: Tende misericórdia de mim, tende misericórdia de mim, pelo menos vós, meus amigos. Por que me perseguis (Jó 19,21-22) sem motivo? Eu não vos disse que o meu e o vosso modo de viver não combinam? Estou arrependida de ter-vos encontrado”.
Capítulo 26
O Senhor fala à Pobreza.
52. “E o Senhor falou comigo, dizendo: (Jr 13,3): “Volta, volta, Sunamite, volta, volta para nós te vermos (Ct 6,12). Teus próprios filhos são irritantes (cfr. Ez 2,7) e não querem te ouvir, porque não querem me ouvir (Ez 3,7). Têm um coração incrédulo e exasperante: afastaram-se e foram embora (Jr 5,23), mas não desprezaram a ti e sim a mim (cfr. Jr 8,7). Mas tu os ensinaste contra ti e os instruiste contra ti mesma, porque se eles não te tivessem assumido nunca seriam tão ricos. Fingiam que te amavam para serem beneficiados e irem embora. Por isso afastaram-se com um desprezo hostil e aferrando-se à mentira, não querem voltar (Jr 8,5). Não acredites mais nele quando te disserem coisas boas, porque te desprezaram e perseguem tua vida (cfr. Jr 4,30). Não eleves louvores e orações por eles, porque não te ouvirei (Jr 7,16), eu os rejeitei (cfr. Jr 15,23), porque eles me desprezaram (cfr. Is 1,2)”.
Capítulo 27
A senhora Pobreza previne o bem-aventurado Francisco
sobre o progresso e a decadência do comportamento.
53. “Eis, irmãos, contei-vos essa comprida parábola para que vejais por onde vai o vosso caminho (cfr. Pr 4,25) e vejais o que tendes que fazer. É perigoso olhar muito para trás e iludir a Deus. Lembrai-vos da mulher de Ló (cfr. Lc 17,32; Gn 19,26) e não acrediteis em qualquer espírito (1Jo 4,1). Mas, caríssimos, eu confio em vós (cfr. Hb 6,9), porque vejo em vós, mais do que nos outros, coisas melhores e mais próximas da salvação, porque parece que desprezastes tudo, que vos libertastes de todas as coisas. E a melhor prova que tenho de tudo isso, para mim, é vossa subida ao monte, ao qual poucos tiveram jamais acesso. Mas eu vos digo, meus amigos (cfr. Lc 12,4), que a malícia de muitos me faz desconfiar da virtude dos bons, e muitas vezes descobri lobos arrebatadores sob a roupa das ovelhas (cfr. Mat 7,15).
54. É certo que eu desejo que cada um de vós seja um imitador dos santos, que me herdaram por sua fé e paciência. Mas, como temo que aconteça convosco o que aconteceu com os outros, dou-vos um salutar conselho, isto é, que não queirais alcançar logo no começo os pontos mais altos e secretos, mas, caminhando devagar, sob a orientação de Cristo, chegueis finalmente ao mais alto. Cuidai para que, depois de ter colocado o adubo da humildade nas vossas raízes, não vos reveleis estéreis, porque então a única coisa que vos sera dada é o machado. Não acrediteis de todo coração no que tendes agora, porque os sentidos do homem são mais inclinados para fazer o mal (cfr. Gn 8,21) do que para fazer o bem, e o ânimo volta com facilidade ao que estava acostumado, mesmo que alguma vez se tenha afastado bastante disso. Sei que, por causa do vosso grande fervor, tudo vos parece muito fácil; mas lembrai-vos do que está dito: porque Eis que os que servem a Deus não têm estabilidade, e Ele descobre defeitos mesmo em seus anjos (cfr. Jó 4,18).
55. “No começo, tudo vos parece agradável de suportar, mas, pouco depois, quando pensardes estar seguros, admitireis que houve falta de cuidado com os benefícios recebidos. Achareis que será possível, na hora em que quiserdes, voltar à consolação do início, mas não é fácil acabar com a negligência, depois que foi aceita uma vez. Então vosso coração vai se inclinar para outras coisas, mas a razão vai reclamar que volteis às do começo. Assim, levados para o torpor e a acídia espiritual, alegareis desculpas inconsistentes, dizendo: “Não podemos ser fortes como fomos no começo, agora os tempos são outros”; ignorando que se diz que: Quando o homem tiver acabado, aí é que vai começar (cfr. Eclo 18,6).
E em vosso ânimo haverá uma voz dizendo sempre: Amanhã, amanhã voltaremos ao primeiro marido, porque para nós era melhor antes do que agora (cfr. Os 2,7). Irmãos, eu vos predisse (cfr. Mt 24,25) muitas coisas, e ainda tenho muito que vos dizer, que agora não podereis suportar (cfr. Jo 16,12). Chegará a hora (cfr. Jo 16,25) em que vos direi claramente todas as coisas de que falei”.
Capítulo 28
O bem-aventurado Francisco responde
à Pobreza com os frades.
56. Respondendo, o bem-aventurado Francisco caiu prostrado em terra com os seus frades, deu graças a Deus, e disse:
“Senhora nossa, gostamos do que dizes, não se pode criticar nada do que falaste. É verdade o que nos disseram em nossa terra sobre as tuas palavras e sobre a tua sabedoria; e tua sabedoria é do que ouvimos falar. Felizes os teus homens e felizes os teus servos, que estão diante de ti e ouvem sempre a tua sabedoria. Bendito seja o Senhor teu Deus pelos séculos. Tu o agradaste e Ele te amou para sempre e te fez rainha para administrares a misericórdia e o juízo entre os seus servos (cfr. 3Rs 10,6-9). Oh! Como é bom e suave o teu espírito (cfr. Sb 12,1), corrigindo os que erram e admoestando os pecadores!
57. “Eis, senhora, pela caridade do Rei eterno, com que te amou, e por aquela com o amas, nós te suplicamos que não nos faltes em nosso desejo (cfr. Sl 77,30), mas uses conosco tua mansidão e misericórdia (cfr. Eclo 50,24). Pois grandes e indizíveis são tuas obras; por isso as almas indisciplinadas vagueiam longe de ti (cfr. Sb 17,1). E como andas sozinha, erissada de escolhos por toda parte como um exército em ordem de batalha (cfr. Ct 6,3), não podem morar contigo os insensatos. Mas nós somos os teus servos, as ovelhas de teu rebanho (cfr. Gn 50,18; Sl 78,13). Para sempre e por todos os séculos, juramos e prometemos guardar os preceitos da tua justiça (cfr. Sl 118,106)”.
Capítulo 29
Consentimento da Pobreza.
58. Com essas palavras, comoveram-se as entranhas da senhora Pobreza (cfr. 3Rs 3,26; Gn 43,30) e, como é próprio dela ter sempre misericórdia e perdoar, não conseguindo mais conter-se, correu e abraçou-os, dando o beijo da paz em cada um e dizendo: “Meus irmãos e meus filhos, já estou indo convosco: sei que vou conquistar muitos de vós.
O bem-aventurado Francisco, não cabendo em si de alegria, começou a louvar em voz alta o Onipotente, que não abandona os que nele esperam (cfr. Jdt 13,17), dizendo: “Bendizei ao Senhor, vós todos os seus eleitos, celebrai dias de alegria e confessai-o, (Tb 13,10), porque é bom, porque sua misericórdia é para sempre (Sl 105,1; 135,1)”.
E, descendo do de monte, levaram a senhora Pobreza ao lugar em que ficavam; pois já era pelo meio-dia (cfr. Jo 4,6).
Capítulo 30
Sobre o banquete da Pobreza com os frades.
59. Quando estava tudo preparado, forçaram-na a comer com eles.
Mas ela disse: “Mostrai-me antes a capela, a sala do capítulo, o claustro, o refeitório, a cozinha, o dormitório e o estábulo, as cadeiras bonitas, as mesas bem lisas e as casas enormes. Pois não estou vendo nada disso; só o que vejo sois vós, alegres e felizes, transbordando de gozo, cheios de consolação (cfr. 2Cor 7,4), como se esperásseis que é só desejar e vos darão tudo”.
Eles responderam: “Senhora e rainha nossa; nós, que somos teus servos há tanto tempo (cfr. Js 9,9), estamos cansados do caminho, e tu também, que vieste conosco, não trabalhaste pouco. Então, vamos comer primeiro, se permites, e assim, confortados, tudo será feito como mandares”.
60. Disse ela: “Gostei do que dissestes; então, tragam a água para lavarmos as mãos e toalhas para as enxugarmos”. Trouxeram logo meio vaso de barro cheio de água, porque não havia ali um inteiro.
Despejaram-na nas mãos dela, enquanto olhavam para cá e para lá, buscando uma toalha. Como não a encontraram, um deles ofereceu-lha a túnica que vestia para enxugar as mãos. Ela, recebendo-a agradecida, louvava a Deus em seu coração, por tê-la unido a tais homens.
61. Depois, levaram-na ao lugar em que a mesa estava preparada. Chegando lá e não vendo mais do que três ou quatro pedaços de pão de cevada ou farelo colocados na grama, ficou muito admirada, dizendo consigo: Quem jamais viu essas coisas nos séculos que passaram (cfr. Is 66,8; 51,9)? Bendito sejas, Senhor Deus (cfr. 1Cr 29.10; Lc 1,68), que cuidas de tudo (cfr. Sb 12,13); pois, quando queres, podes usar o poder (cfr. Sb 12,18); com essas obras, ensinaste o teu povo (cfr. Sb 12,19) a te agradar”.
Assim assentaram-se juntos, dando graças a Deus (cfr. Cl 3,17) por todos os seus dons.
62. A senhora Pobreza mandou trazer a comida cozida nas travessas. Trouxeram uma travessa cheia de água fria, para que nela todos molhassem o pão: ali não havia nem uma quantidade de travessas nem variedade de cozidos.
Pediu pelo menos que servissem algumas ervas odoríferas cruas. Mas, como não tinham hortelão nem sabiam de alguma horta, colheram ervas silvestres no mato e puseram-nas na sua frente.
Ela disse: “Trazei-me um pouco de sal para salgar as ervas, porque são amargas”.
Disseram: “Espera, senhora, que entremos na cidade para te trazer, se houver alguém que nos dê”.
Ela disse: “Dai-me uma faca para tirar o supérfluo e cortar o pão, porque está muito duro e seco”.
Responderam-lhe: “Senhora, nós não temos um ferreiro para nos fazer espadas; corta agora com os dentes, em vez de uma faca, e depois vamos tomar providências”.
“Tendes um pouquinho de vinho?”, perguntou. E
les responderam: “Senhora nossa, não temos vinho (cfr. Jo 2,3) porque o principal para a vida do homem é pão e água (cfr. Eclo 29,28), e, para ti, não é bom tomar vinho, porque a esposa de Cristo tem que fugir do vinho como de um veneno”.
63. Depois que ficaram satisfeitos, mais pela glória de tanta privação do que ficariam pela abundância de todas as coisas, bendisseram ao Senhor, diante do qual encontraram tanta graça, e levaram-na para um lugar em que pudesse repousar, porque estava cansada.
E assim jogou-se despida sobre a terra nua. Pediu também um travesseiro para sua cabeça. Trouxeeram logo uma pedra e colocaram embaixo.
Mas ela, depois de um sono bem repousado e sóbrio, levantou-se apressada, pedindo que lhe mostrassem o claustro. Levaram-na para uma colina e lhe mostraram todo o mundo que podiam ver, dizendo:
“Senhora, este é o nosso claustro”.
Capítulo 31
A senhora Pobreza abençoa os frades e os exorta a perseverarem na graça recebida.
64. Ela mandou que todos se sentassem juntos e lhes comunicou palavras de vida (cfr. Jo 6,69), dizendo:
“Filhos, vós sois benditos pelo Senhor Deus, que fez o céu e a terra (cfr. Jdt 13,23.24), que com tão grande plenitude de caridade me recebestes em vossa casa, que hoje me pareceu estar convosco como no paraíso de Deus (cfr. Ez 31,8.9; Ap 2,7). Por isso, fiquei cheia de alegria, transbordo de consolação (cfr. 2Cor 7,4), e peço desculpas porque demorei tanto para vir. Na verdade, o Senhor está convosco e eu não sabia (cfr. Gn 28,16). Eis que já vejo o que almejei, já tenho o que desejei, porque me uni na terra aos que representam para mim a imagem daquele com quem estou desposada nos céus. Que o Senhor abençoe a vossa fortaleza e receba as obras de vossas mãos (cfr. Dt 33,11).
65. Eu vos peço e rogo com insistência, como a meus filhos muito queridos (cfr. 1Cor 4,14), que persvereis naquilo que começastes por inspiração do Espírito Santo, sem abandonar vossa perfeição, como alguns costumam fazer, mas, escapando de todas as ciladas das trevas, esforçai-vos sempre pelo que é mais perfeito. Altíssima é a vossa perfeição; brilha comn luz mais clara, mais do que o homem, mais do que a virtude e a perfeição dos antigos. Não tenhais nenhuma dúvida de que possuireis o reino dos céus, não hesiteis, porque já tendes a garantia da herança futura e já recebestes o penhor do Espírito, fostes marcados com o sinal da glória de Cristo e, por graça dele, correspondeis em tudo àquela sua primeira escola, que reuniu quando veio ao mundo. Pois o que eles fizeram em sua presença foi o que vós começastes a fazer por completo em sua ausência, e não tendes por que envergonhar-vos de dizer: “Eis que deixamos tudo e te seguimos” (Mt 19,27)”.
66. Não vos espante a grandeza da luta e a imensidade do trabalho, porque tereis uma grande recompensa. E, olhando para o autor e consumador de todos os bens, o Senhor Jesus Cristo, quando lhe ofereceram gozo enfrentou a cruz, desprezando a confusão, (Hb 12,2), mantende a confissão indeclinável da vossa esperança (cfr. Hb 10,23). Correi ao certame que vos é proposto (Hb 12,1) na caridade. Correi com paciência, que vos é principalmente necessária, para que, cumprindo a vontade de Deus, alcanceis a promessa (Hb 10,36). Porque Deus é poderoso (cfr. Rm 11,23) para poder consumar felizmente, por sua santa graça, o que começastes e está acima de vossas forças, porque é fiel em suas promessas.
67. “Não encontre em vós nada do que lhe agrada o espírito que age nos filhos da rebeldia (cfr. Ef 2,2), que não encontre nada duvidoso, nada desconfiado, para não ter motivos para desencadear sobre vós a sua maldade. Porque é muito soberbo, e sua soberba e arrogância são maiores do que o seu poder (cfr. Is 16,6). Tem muita raiva (cfr. Ap 12,12) contra vós e vai voltar contra vós as armas de toda a sua astúcia, tentando derramar o veneno de sua malícia, pois já venceu e derrubou outros, e sofre por que vos vê acima dele.
68. Por causa de vossa conversão, queridos, os cidadãos do céu festejaram grandes gozos e cantaram cânticos novos diante do Rei eterno (cfr. Sl 95,1; 97,1; Ap 5,9). Alegram-se os anjos em vós e por vós, porque, enquanto por vós muitos vão guardar a virgindade e brilhar pela castidade, vão encher-se as ruínas da cidade superna, onde os virgens deverão ser colocados num lugar mais destacado, porque os que não se casam nem se dão em casamento serão como os anjos de Deus no céu (cfr. Mt 22.30). Exultam os Apóstolos ao verem que é renovada sua forma de vida, que sua doutrina é pregada, e que por vós são demonstrados exemplos da santidade especial. Alegram-se os mártires vendo que, pela efusão do sangue sagrado, sua constância está sendo apresentada de novo. Saltam de alegria os confessores, porque sabem que em vós rememora-se freqüentemente a sua vitória sobre o inimigo. Regozijam-se os virgens que seguem o Cordeiro onde quer que Ele vá (cfr. Ap 14,4), vendo que, por vós aumenta todos os dias o seu número. Por fim, toda a corte celestial enche-se de exultação, celebrando as solenidades dos novos concidadãos todos os dias, aspergida pelo odor das santas orações que sobem continuamente deste vale.
69. Então eu vos suplico, irmãos, pela misericórdia de Deus, (Rm 12,1), pela qual vos fizestes tão miseráveis, fazei de fato aquilo que vos trouxe, aquilo para que subistes dos rios da Babilônia. Recebei humildemente a graça que vos é oferecida, usando-a sempre dignamente em tudo para o louvor, a glória e a honra (cfr. Ap 4,9.11) daquele que morreu por vós, Jesus Cristo, Senhor nosso, que com o Pai e o Espírito Santo, vive e reina, vence e impera, Deus eternamente glorioso, por todos os séculos dos séculos. Amém”.
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