A LEGENDA DA VIRGEM SANTA CLARA - Tomás de Celano
CARTA INTRODUTÓRIA
Índice
CARTA INTRODUTÓRIA DIRIGIDA AO SUMO
PONTÍFICE SOBRE A LEGENDA DE SANTA CLARA
VIRGEM
PRIMEIRA PARTE
COMEÇA A LEGENDA DA VIRGEM SANTA CLARA
Índice
ANTES DE TUDO, SEU NASCIMENTO
SUA VIDA NA CASA PATERNA
COMO CONHECEU O BEM-AVENTURADO
FRANCISCO E FICOU AMIGA DELE
COMO, CONVERTIDA PELO BEM-AVENTURADO
FRANCISCO, PASSOU DO SÉCULO PARA A
RELIGIÃO
COMO RESISTIU COM FIRME PERSEVERANÇA AO
ASSALTO DOS PARENTES
FAMA DE SUAS VIRTUDES DIFUNDIDA POR TODA
PARTE
COMO A NOTÍCIA DE SUA BONDADE CHEGOU A
LUGARES REMOTOS
A SUA SANTA HUMILDADE
A SANTA E VERDADEIRA POBREZA
MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DO PÃO
OUTRO MILAGRE: AZEITE DADO POR DEUS
A MORTIFICAÇÃO DA CARNE
A PRÁTICA DA SANTA ORAÇÃO
MARAVILHAS DE SUA ORAÇÃO: ANTES DE TUDO,
OS SARRACENOS MILAGROSAMENTE POSTOS
EM FUGA
OUTRO MILAGRE: A LIBERTAÇÃO DA CIDADE
A FORÇA DA SUA ORAÇÃO NA CONVERSÃO DE
SUA IRMÃ
OUTRO MILAGRE: EXPULSÃO DE DEMÔNIOS.
ADMIRÁVEL CONSOLAÇÃO QUE O SENHOR LHE
CONCEDEU NA DOENÇA
ARDENTE AMOR AO CRUCIFICADO
UMA COMEMORAÇÃO DA PAIXÃO DO SENHOR
DIVERSOS MILAGRES QUE FAZIA COM O SINAL E
A VIRTUDE DA SANTA CRUZ
A FORMAÇÃO DIÁRIA DAS IRMÃS
ESFORÇO PARA ACOLHER BEM A PALAVRA DA
SANTA PREGAÇÃO
SUA GRANDE CARIDADE PARA COM AS IRMÃS
SUAS DOENÇAS E O SOFRIMENTO CONTÍNUO
COMO, ESTANDO ELA DOENTE, O SENHOR
INOCÊNCIO A VISITOU, ABSOLVEU E ABENÇOOU
COMO RESPONDEU A SUA IRMÃ QUE CHORAVA
O TRÂNSITO FINAL E TUDO QUE ACONTECEU E
SE VIU
SEGUNDA PARTE
OS MILAGRES DE SANTA CLARA DEPOIS DE SUA MORTE
Índice
OS MILAGRES DE SANTA CLARA DEPOIS DE SUA
MORTE
ENDEMONINHADOS LIBERTADOS
OUTRO MILAGRE
CURA DE UM LOUCO FURIOSO
CURA DE UM EPILÉTICO
CURA DE UM CEGO
CURA DE UMA MÃO INUTILIZADA
OS ALEIJADOS
CURA DE TUMORES DA GARGANTA
OS SALVADOS DE LOBOS
A CANONIZAÇÃO DA VIRGEM SANTA CLARA
Tomás de Celano
A LEGENDA DA VIRGEM SANTA CLARA CARTA INTRODUTÓRIA
CARTA INTRODUTÓRIA DIRIGIDA AO SUMO PONTÍFICE SOBRE A
LEGENDA DE SANTA CLARA VIRGEM
Como se pesasse a decrepitude de um mundo envelhecido,
escurecia a visão da fé, vacilava o passo dos costumes, murchava o
vigor das empresas varonis. Pior: à escória dos tempos juntava-se a
escória dos vícios. Então Deus, que ama os homens, suscitando do
segredo de sua piedade novas Ordens santas, providenciou por elas
uma base para a fé e uma norma para a reforma dos costumes.
Eu diria que esses fundadores modernos e seus autênticos
seguidores são luminares do mundo, guias do caminho, mestres da
vida; com eles despontou um fulgor de meio-dia num mundo em
ocaso para que os que caminhavam nas trevas vissem a luz (cfr. Is
9,2). E não convinha que faltasse ajuda ao sexo mais débil, pois,
colhido no abismo da concupiscência, não era atraído ao pecado por
menor desejo. Antes, a maior fragilidade bastante o impelia. Deus
suscitou por isso a venerável virgem Clara e acendeu nela uma luz
claríssima para as mulheres. A ela incluíste no catálogo dos santos,
Papa beatíssimo, levado pela evidência dos prodígios, colocando-a
sobre o candelabro para ser luz de todos os que estão em casa (Mt
5,15).
Nós te honramos como pai dessas Ordens, reconhecemos que as
fizeste crescer. Abraçamos-te como protetor, veneramos-te como
senhor. Pois és solícito no governo universal da nave imensa, sem
deixar de lado o cuidado especial e atento também pela barquinha.
Aprouve a vossa senhoria mandar à minha pequenez que,
examinando os atos de Santa Clara, compusesse sua legenda. Na
minha imperícia literária, temeria tal encargo, se a autoridade
pontifícia não tivesse insistido mais de uma vez, pessoalmente.
Dispondo-me ao mandato mas inseguro com o documentário
incompleto que lia, recorri aos companheiros do bem-aventurado
Francisco e à própria comunidade das virgens de Cristo,
repensando freqüentemente no coração que antigamente só podiam
fazer história os que tivessem visto ou ouvido os que viram.
Informando-me essas pessoas mais plenamente no respeito à
verdade, com temor do Senhor (cfr. Tb 6,22; 9,12), recolhi alguns
dados e omiti muitos, redigindo em estilo simples para que as
virgens tenham prazer em ler as glórias da virgem e a inteligência do
inculto não se confunda com palavras empoladas. Sigam os homens
esses varões, novos discípulos do Verbo encarnado; as mulheres
imitem Clara, vestígio da Mãe de Deus e nova guia das mulheres.
Santíssimo Padre, como nisto tens plena autoridade para corrigir,
eliminar e acrescentar, assim em tudo a ti minha vontade se
submete, concordando e implorando. Conceda-te o Senhor Jesus
Cristo saúde e prosperidade, agora e para sempre. Amém.
PRIMEIRA PARTE
COMEÇA A LEGENDA DA VIRGEM SANTA CLARA
ANTES DE TUDO, SEU NASCIMENTO
Mulher admirável por seu nome, Clara de palavra e virtude, natural
de Assis, de família muito preclara, foi concidadã do bemaventurado
Francisco na terra e, depois, foi reinar com ele na glória.
O pai era militar, e a família, de cavaleiros, dos dois lados. A casa
era abastada e as riquezas, para o padrão local, copiosas. Sua mãe
Hortolana, que devia dar à luz a planta frutífera no jardim da Igreja,
também era rica em não poucos bons frutos. Embora presa aos
laços do matrimônio e aos cuidados familiares, entregava-se como
podia ao serviço de Deus e a intensas práticas de piedade. Tanto
que, por devoção, foi com os peregrinos ao ultramar e voltou toda
feliz, depois de visitar os lugares que o Deus-Homem consagrou
com suas pegadas. Também foi ao santuário de São Miguel Arcanjo
para rezar e visitou piedosamente as basílicas dos apóstolos.
Para que vou dizer mais? A árvore se conhece pelo fruto (cfr. Mt
12,33; Lc 6,44) e o fruto é recomendado pela árvore. Já houve
abundância de dons divinos na raiz para que houvesse abundância
de santidade no ramo pequeno. A mãe, grávida, próxima de dar à
luz, estava orando ao Crucificado diante da cruz, na igreja, para
passar saudavelmente pelos perigos do parto, quando ouviu uma
voz que dizia (cfr. At 9,4): Não temas, mulher, porque, salva, vais dar
ao mundo uma luz que vai deixar a própria luz mais clara. Instruída
pelo oráculo, quis que a filhinha, ao renascer pelo sagrado batismo,
se chamasse Clara, esperando que se cumprisse de algum modo,
pelo beneplácito da vontade divina, a claridade da luz prometida.
SUA VIDA NA CASA PATERNA
Apenas dada à luz, a pequena Clara começou a brilhar com
luminosidade muito precoce nas sombras do século e a
resplandecer na tenra infância pelos bons costumes. De coração
dócil, recebeu primeiro dos lábios da mãe os rudimentos da fé e,
inspirando-a e formando-a interiormente o espírito, esse vaso, em
verdade puríssimo, revelou-se vaso de graças.
Estendia a mão com prazer para os pobres (cfr. Pr 31,20) e, da
abundância de sua casa, supria a indigência (cfr. 2Cor 8,14) de
muitos. Para que o sacrifício fosse mais grato a Deus, privava seu
próprio corpozinho dos alimentos mais delicados e, enviando-os às
ocultas por intermediários, reanimava o estômago de seus
protegidos. Assim cresceu a misericórdia com ela desde a infância
(cfr. Jó 31,18) e tinha um coração compassivo, movido pela miséria
dos infelizes.
Gostava de cultivar a santa oração, em que, orvalhada muitas vezes
pelo bom odor, foi praticando aos poucos a vida virginal. Como não
dispunha de contas para repassar os Pai-nossos, usava um monte
de pedrinhas para numerar suas pequenas orações ao Senhor. Ao
sentir os primeiros estímulos do santo amor, instruída pela unção do
Espírito, achou que devia desprezar a instável e falsa flor da
mundanidade, relativizando as coisas que valem menos. Debaixo
dos vestidos preciosos e finos, usava um ciliciozinho escondido,
florescendo por fora e vestindo Cristo no interior (cfr. Rm 13,14).
Afinal, querendo os seus que se casasse na nobreza, não concordou
absolutamente. Fazia que adiava o matrimônio mortal e confiava sua
virgindade ao Senhor. Foram esses os ensaios de virtude em sua
casa paterna. Assim foram suas primícias espirituais e os prelúdios
de santidade. Transbordando de perfumes, mesmo fechada, sua
fragrância atraía, como um cofre de aromas. Sem o saber, começou
a ser louvada pelos vizinhos. A justa fama divulgou seus atos
secretos e se espalhou no povo a notícia de sua bondade.
COMO CONHECEU O BEM-AVENTURADO FRANCISCO E
FICOU AMIGA DELE
Quando ouviu falar do então famoso Francisco que, como homem
novo, renovava com novas virtudes o caminho da perfeição, tão
apagado no mundo, quis logo vê-lo e ouvi-lo, movida pelo Pai dos
espíritos, de quem um e outra, embora de modo diferente, tinham
recebido os primeiros impulsos.
Ele, conhecendo a fama de tão agraciada donzela, não tinha menor
desejo de ver e falar com ela para ver se podia arrebatar essa presa
do século malvado (cfr. Gl 1,4) e reivindicá-la para seu Senhor, pois
estava ávido de conquistas e viera despovoar o reino do mundo. Ele
a visitou, e ela o fez mais vezes ainda, moderando a freqüência dos
encontros para evitar que aquela busca divina fosse notada pelas
pessoas e mal interpretada por boatos.
A moça saía de casa levando uma só companheira e freqüentava os
encontros secretos com o homem de Deus. Suas palavras pareciam
flamejantes e considerava suas ações sobre-humanas.
O pai Francisco exortava-a a desprezar o mundo, mostrando com
vivas expressões que a esperança do século é seca e sua aparência
enganadora. Instilou em seu ouvido o doce esponsal com Cristo,
persuadindo-a a reservar a jóia da pureza virginal para o bemaventurado
Esposo a quem o amor fez homem.
Para que ficar em tantos pormenores? Ouvindo o pai santíssimo,
que agia habilmente como o mais fiel padrinho, a jovem não
retardou seu consentimento. Abriu-se-lhe então a visão dos gozos
celestes, diante dos quais o próprio mundo é desprezível. Seu
desejo derreteu-a por dentro, seu amor fez com que ansiasse pelos
esponsais eternos.
Acesa no fogo celeste, desprezou tão soberanamente a glória da
vaidade terrena que nada mais se apegou em seu coração dos
afagos do mundo. Aborrecendo igualmente as seduções da carne,
decidiu desde então desconhecer o tálamo de culpa (cfr. Sb 3,13),
desejando fazer de seu corpo um templo só para Deus, esforçandose
por merecer as núpcias do grande Rei.
Então, submeteu-se toda ao conselho de Francisco, tomando-o
como condutor de seu caminho, depois de Deus. Por isso, sua alma
ficou pendente de suas santas exortações, e acolhia num coração
caloroso tudo que ele lhe ensinava sobre o bom Jesus. Já tinha
dificuldade para suportar a elegância dos enfeites mundanos e
desprezava como lixo tudo que aplaudem lá fora, para poder ganhar
a Cristo (cfr. Fl 3,8).
COMO, CONVERTIDA PELO BEM-AVENTURADO FRANCISCO,
PASSOU DO SÉCULO PARA A RELIGIÃO
Bem depressa, para que o pó do mundo não pudesse mais empanar
o espelho daquela alma límpida e o contágio da vida secular não
fermentasse o ázimo de sua idade, o piedoso pai tratou de retirar
Clara do século tenebroso.
Aproximava-se a solenidade de Ramos, quando a jovem, de
fervoroso coração, foi ter com o homem de Deus, para saber o que e
como devia fazer para mudar de vida. Ordenou-lhe o pai Francisco
que, no dia da festa, bem vestida e elegante, fosse receber a palma
no meio da multidão e que, de noite, deixando o acampamento (cfr.
Hb 13,13), trocasse o gozo mundano pelo luto da paixão do Senhor.
Quando chegou o Domingo, a jovem entrou na igreja com os outros,
brilhando em festa no grupo das senhoras. Aconteceu um oportuno
presságio: os outros se apressaram a ir pegar os ramos, mas Clara
ficou parada em seu lugar por recato, e o pontífice desceu os
degraus, aproximou-se dela e lhe colocou a palma nas mãos.
De noite, dispondo-se a cumprir a ordem do santo, empreendeu a
ansiada fuga em discreta companhia. Não querendo sair pela porta
habitual, com as próprias mãos abriu outra, obstruída por pesados
troncos e pedras, com uma força que lhe pareceu extraordinária.
E assim, abandonando o lar, a cidade e os familiares, correu a Santa
Maria da Porciúncula, onde os frades, que diante do altar de Deus
faziam uma santa vigília, receberam com tochas a virgem Clara.
Nesse lugar, livrou-se logo da sujeira da Babilônia e deu ao mundo o
libelo de repúdio (cfr. Mt 5,31; Dt 24,1): com os cabelos cortados
pela mão dos frades, abandonou seus ornatos variados.
Nem convinha que, naquele ocaso dos tempos, fosse fundada em
outro lugar a Ordem da florescente virgindade a não ser na casa da
que foi a única mãe e virgem, antes e acima de todos. Era o lugar em
que a nova milícia dos pobres dava seus felizes primeiros passos
sob o comando de Francisco, para ficar claro que em sua casa a Mãe
da misericórdia dava à luz as duas Ordens.
Depois que a humilde serva recebeu as insígnias da santa penitência
junto ao altar da bem-aventurada Maria, como se desposasse Cristo
junto ao leito da Virgem, São Francisco levou-a logo para a igreja de
São Paulo, para que ficasse lá até que o Altíssimo dispusesse outra
coisa.
COMO RESISTIU COM FIRME PERSEVERANÇA AO ASSALTO
DOS PARENTES
Mal voou a seus familiares a notícia, e eles, com o coração
dilacerado, reprovaram a ação e os projetos da moça. Juntaram-se e
correram ao lugar para tentar conseguir o impossível. Recorreram à
violência impetuosa, ao veneno dos conselhos, ao agrado das
promessas, querendo convencê-la a sair dessa baixeza, indigna de
sua linhagem e sem precedentes na região.
Mas ela segurou as toalhas do altar e mostrou a cabeça tonsurada,
garantindo que jamais poderiam afastá-la do serviço de Cristo. A
coragem cresceu com o combate dos parentes e o amor ferido pelas
injúrias lhe deu forças. Seu ânimo não esmoreceu nem seu fervor
esfriou, mesmo sofrendo obstáculos por muitos dias no caminho do
Senhor e com a oposição dos familiares a seu propósito de
santidade. Entre insultos e ódios, temperou sua decisão na
esperança, até que os parentes, derrotados, se acalmaram.
Poucos dias depois, foi para a igreja de Santo Ângelo de Panço,
mas, não encontrando nesse lugar plena paz, mudou-se finalmente
para a igreja de São Damião, a conselho do bem-aventurado
Francisco. Aí, cravando já no seguro a âncora do espírito, não
flutuou mais por mudanças de lugar, não vacilou diante do aperto,
nem teve medo da solidão.
Era a igreja em cuja restauração Francisco suara com tão admirável
esforço, oferecendo dinheiro ao sacerdote para reparar a obra. Foi
nela que, estando em oração, Francisco ouviu uma voz que brotava
(cfr. 2Pd 1,17)do madeiro da cruz: "Francisco, vai, repara minha casa
que, como vês, se desmorona toda".
A virgem Clara fechou-se no cárcere desse lugar apertado por amor
ao Esposo celeste. Abrigando-se da tempestade do mundo,
encarcerou seu corpo por toda a vida. Aninhando-se nas fendas
dessa rocha, a pomba de prata (cfr. Ct 2,14; Jr 48,28) gerou uma
fileira de virgens de Cristo, instituiu um santo mosteiro e deu início à
Ordem das senhoras pobres. Aqui, moeu os terrões dos membros
no caminho da penitência, lançou as sementes da perfeita justiça,
fez com seu passo as marcas para as seguidoras. Nesse apertado
recinto, por quarenta e dois anos, quebrou o alabastro do corpo com
os açoites da disciplina, enchendo a casa da Igreja com o aroma dos
perfumes.
Vamos narrar amplamente como viveu com glória nesse lugar, mas
primeiro temos que contar quantas e quão grandes almas vieram a
Cristo graças a ela.
FAMA DE SUAS VIRTUDES DIFUNDIDA POR TODA PARTE
Pouco depois, já se espalhava a fama de santidade da virgem Clara
pelas regiões vizinhas, e ao odor de seus perfumes correram (cfr. Ct
1,3) mulheres de toda parte. A seu exemplo, aprestaram-se as
virgens a guardar para Cristo o que eram. Casadas, trataram de viver
mais castamente. Nobres e ilustres, abandonando vastos palácios,
construíram mosteiros apertados e tiveram por grande honra viver,
pelo amor de Cristo, em cinza e cilício (cfr. Mt 11,21).
Até o entusiasmo dos rapazes foi animado para esses certames de
pureza e instigado a desprezar os enganos da carne pelo valoroso
exemplo do sexo mais fraco. Muitos, afinal, unidos pelo matrimônio,
ligaram-se de comum acordo pela lei da continência, e foram os
homens para as Ordens e as mulheres para os mosteiros. A mãe
convidava a filha para Cristo, a filha a mãe; a irmã atraía as irmãs e a
tia as sobrinhas. Todas com fervorosa emulação desejavam servir a
Cristo. Todas queriam uma parte nessa vida angélica que Clara fez
brilhar.
Numerosas virgens, movidas pela fama de Clara, já procuravam
viver regularmente na casa paterna, mesmo sem regra, enquanto
não podiam abraçar a vida do claustro. Eram tais esses frutos de
salvação dados à luz pela virgem Clara com seus exemplos, que
nela parecia cumprir-se o dito profético: A abandonada tem mais
filhos que a casada (cfr. Is 54,1).
COMO A NOTÍCIA DE SUA BONDADE CHEGOU A LUGARES
REMOTOS
Entretanto, para não reduzir a estreitos limites o veio dessa bênção
do céu que brotara no vale de Espoleto, a divina providência
transformou-o em torrente, de modo que a força do rio alegrou a
cidade (cfr. Sl 45,5) inteira da Igreja. A novidade de tais sucessos
correu pelo mundo inteiro e começou a ganhar almas para Cristo em
toda parte. Mesmo encerrada, Clara começou a clarear todo o
mundo e refulgiu preclara pelos motivos de louvor. A fama de suas
virtudes invadiu as salas das senhoras ilustres, chegou aos palácios
das duquesas e penetrou até nos aposentos das rainhas. A nata da
nobreza dobrou-se a seguir suas pegadas e a da soberba
ascendência de sangue desceu para a santa humildade. Algumas,
dignas de casamentos com duques e reis, estimuladas pela
mensagem de Clara, faziam rigorosa penitência, e as casadas com
homens poderosos imitavam Clara como podiam.
Numerosas cidades ganharam mosteiros, e mesmo campos e
montanhas ficaram bonitos com a construção desses celestes
edifícios. Clara, santa, abriu caminho para propagar a observância
da castidade no mundo, devolvendo uma vida nova ao estado
virginal. Hoje, a Igreja rebrota feliz com essas santas flores geradas
por Clara, que pede seu apoio dizendo: Confortai-me com flores,
reanimai-me com maçãs, porque estou doente de amor (Ct 2,5). Mas
a pena tem que voltar a seu propósito para dar a conhecer como foi
que ela viveu.
A SUA SANTA HUMILDADE
Ela, pedra primeira e nobre fundamento de sua Ordem, tratou de
levantar desde o começo o edifício de todas as virtudes sobre a
base da santa humildade. De fato, prometeu santa obediência ao
bem-aventurado Francisco e não se desviou em nada do prometido.
Três anos depois da conversão, recusando o nome e o cargo de
abadessa, preferiu humildemente submeter-se a presidir, servindo
entre as servas de Cristo e não sendo servida. Por fim, obrigada por
São Francisco, assumiu o governo das senhoras. Daí brotou em seu
coração temor e não enchimento, crescendo no serviço e não na
independência. Quanto mais elevada se viu por esse exterior de
superioridade, mais se fez vil aos próprios olhos, disposta a servir,
desprezível na aparência. Não recusava nenhum trabalho servil.
Costumava derramar água nas mãos das Irmãs, assistindo-as
enquanto sentadas e servindo-lhes a comida.
Custava-lhe dar uma ordem, mas estava pronta a fazer por si.
Preferia fazer ela mesma a mandar as Irmãs. Lavava pessoalmente
as cadeiras das doentes e as enxugava com seu espírito nobre, sem
fugir à sujeira nem ter medo do mau cheiro. Com freqüência lavava e
beijava os pés das serviçais quando voltavam de fora. Uma vez,
estava lavando os pés de uma delas e, quando foi beijá-los, a Irmã
não suportou tanta humildade, puxou o pé de repente e bateu com
ele no rosto de sua senhora. Esta voltou a tomar o pé da serviçal
com ternura e lhe deu um beijo apertado sob a planta.
A SANTA E VERDADEIRA POBREZA
Com a pobreza de espírito, que é a verdadeira humildade,
harmonizava a pobreza de todas as coisas. Logo no começo de sua
conversão, desfez-se da herança paterna que recebera e, sem
guardar nada para si, deu tudo aos pobres. Depois, deixando o
mundo lá fora, com a alma enriquecida interiormente, correu livre,
sem bolsa, atrás de Cristo. Fez um pacto tão forte com a santa
pobreza, tanto amor lhe consagrou, que nada queria possuir nem
permitiu que suas filhas possuíssem, senão o Cristo Senhor. Achava
que a preciosíssima pérola do desejo do céu, que comprara depois
de vender tudo (cfr. Mt 13,46) , não podia ser partilhada com o
cuidado devorador dos bens temporais.
Em alocuções freqüentes, inculcava nas Irmãs que a comunidade
seria agradável a Deus na medida em que fosse opulenta de pobreza
e que, munida com a torre da mais alta pobreza (cfr. 2Cor 8,2), seria
estável para sempre. No pequeno ninho da pobreza, animava-as a
conformar-se com o Cristo pobre, deitado pela mãe pobrezinha em
mísero presépio (cfr. Lc 2,7). Pois afivelava o peito com essa
singular lembrança, jóia de ouro, para que o pó terreno não
passasse para o interior.
Querendo destacar sua Ordem com o título da pobreza, solicitou de
Inocêncio III, de feliz memória, o privilégio da pobreza. Esse varão
magnífico, congratulando-se por tão grande fervor da virgem, disse
que o pedido era raro, pois jamais tal privilégio tinha sido pedido à
Sé Apostólica. E para corresponder ao insólito pedido com insólito
favor, o Pontífice redigiu de próprio punho, com muito gosto, o
primeiro rascunho do pretendido privilégio.
O senhor papa Gregório, de feliz memória, digno de veneração pelos
méritos pessoais e mais ainda pelo cargo, amava com especial afeto
paterno a nossa santa. Quando tentou convencê-la a aceitar
algumas propriedades que oferecia com liberalidade pelas
circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com ânimo
fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: "Se
temes pelo voto, nós te desligamos do voto", mas ela disse: "Pai
santo, por preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para
sempre". Recebia muito alegremente as esmolas em fragmentos e
os pedacinhos de pão levados pelos esmoleres. Parecia ficar triste
ao ver pães inteiros e pulava de alegria diante dos restos.
Para que falar tanto? Ela se esforçava por conformar-se na mais
perfeita pobreza com o pobre Crucificado, para que nada de
perecível afastasse a amante do amado ou a impedisse de correr
com o Senhor. Conto dois casos admiráveis que a namorada da
pobreza mereceu realizar.
MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DO PÃO
Havia no mosteiro um só pão e já apertavam a fome e a hora de
comer. A santa chamou a despenseira e mandou cortar o pão,
enviando uma parte para os frades e deixando a outra em casa para
as Irmãs. Dessa metade, mandou tirar cinqüenta fatias, de acordo
com o número das senhoras, para servi-las na mesa da pobreza.
A devota filha respondeu que iam ser necessários os antigos
milagres de Cristo para que tão pouco pão desse cinqüenta fatias,
mas a mãe a contestou dizendo: "Filha, faça com confiança o que
falei". Apressou-se a filha a cumprir o mandato da mãe, que foi
dirigir a seu Cristo piedosos suspiros em favor das filhas. O pedaço
pequeno cresceu por graça de Deus nas mãos de quem o cortava e
cada uma da comunidade pôde receber uma bela porção.
OUTRO MILAGRE: AZEITE DADO POR DEUS
Certo dia, acabou tão completamente o azeite das servas de Cristo
que não havia nem para o tempero das doentes. Dona Clara pegou
uma vasilha e, mestra de humildade, lavou-a com as próprias mãos.
Colocou-a lá fora, vazia, para que o irmão esmoler a recolhesse, e
chamou o frade para ir conseguir o azeite.
O devoto irmão quis socorrer depressa tanta indigência e correu a
buscar a vasilha. Mas essas coisas não dependem de querer e
correr, e sim da piedade de Deus (Rm 9,16). De fato, só por Deus, a
vasilha ficou cheia de óleo, pois a oração de Santa Clara foi à frente
da ajuda do frade, para alívio das pobres filhas. O frade, crendo que
o haviam chamado à-toa, comentou num murmúrio: "Essas
mulheres me chamaram por brincadeira, pois, olhe, a vasilha está
cheia!" .
A MORTIFICAÇÃO DA CARNE
Da admirável mortificação da carne, talvez seja melhor calar que
falar, já que fez tais coisas que o estupor dos ouvintes porá em
dúvida a veracidade dos fatos. Não era o mais notável que, com uma
simples túnica e um rude manto de pano áspero, mais cobria que
abrigava seu corpo delicado. Nem era o mais admirável que
desconhecesse por completo o uso de calçado. Não era grande
coisa que jejuasse todo o tempo e não usasse colchão de penas.
Nisso tinha outras semelhantes no mosteiro e talvez não mereça
louvor singular. Mas, como combinam uma carne virginal e uma
roupa de porco? Pois tão santa virgem tinha arranjado uma peça de
pele de porco e a usava secretamente debaixo da túnica, com o
áspero corte das cerdas aplicado à carne. Usava algumas vezes um
duro cilício, trançado em nós com crina de cavalo, que com ásperas
cordinhas apertava fortemente ao corpo de lado a lado. A pedido,
emprestou-o a uma de suas filhas, mas, quando ela o vestiu não
agüentou tanta aspereza e o devolveu depressa depois de três dias,
não tão alegre como quando o pediu.
Sua cama era a terra nua; às vezes, uns sarmentos. Como
travesseiro usava um toco duro embaixo da cabeça. Com o tempo,
de corpo já enfraquecido, estendeu uma esteira no chão e teve a
clemência de dar à cabeça um pouco de palha. Depois que a doença
começou a tomar conta do corpo tão severamente maltratado, usou
um saco cheio de palha por ordem do bem-aventurado Francisco.
Pois tamanho era o rigor de sua abstinência nos jejuns que mal teria
podido sobreviver corporalmente com o leve sustento que tomava,
se outra força não a sustentasse. Enquanto teve saúde, jejuando a
pão e água na quaresma maior e na do bispo São Martinho, só
provava vinho aos domingos, quando tinha.
E para que admires, leitor, o que não podes imitar, não tomava nada
de alimento durante essas quaresmas em três dias por semana, nas
segundas, quartas e sextas-feiras. Sucediam-se assim os dias de
acerba mortificação, de modo que uma véspera de privação total
precedia um festim de pão e água.
Não é de admirar que tamanho rigor, mantido durante muito tempo,
tivesse predisposto Clara à doença, consumindo as forças e
enfraquecendo o corpo. Por isso, as filhas muito devotas tinham
compaixão da santa madre e lamentavam com lágrimas aquelas
mortes que suportava voluntariamente, todos os dias. Por fim, São
Francisco e o bispo de Assis proibiram-lhe o esgotador jejum dos
três dias, ordenando que não deixasse passar um só dia sem tomar
para sustento pelo menos uma onça e meia de pão.
Mas, embora em geral uma grave aflição do corpo afete o espírito, o
que brilhava em Clara era muito diferente: ficava sempre de cara
festiva e alegre em suas mortificações, parecendo que não sentia ou
que se ria dos apertos corporais. Por isso, podemos ver claramente
que a santa alegria que lhe sobrava dentro extravasava fora, porque
o amor do coração tornava leves os castigos corporais.
A PRÁTICA DA SANTA ORAÇÃO
Já morta na carne, estava tão alheia ao mundo que ocupava sua
alma continuamente em santas orações e divinos louvores. Tinha
cravado na Luz o dardo ardentíssimo do desejo interior e,
transcendendo a esfera das realidades terrestres, abria mais
amplamente o seio de sua alma para as chuvas da graça.
Depois de Completas, rezava muito tempo com as Irmãs, e os rios de
lágrimas que dela brotavam excitavam também as outras. Mas
depois que elas iam repousar os membros cansados nas camas
duras, ela ficava rezando, vigilante e incansável, para recolher então
o veio do sussurro furtivo (cfr. Jó 4,12) de Deus, quando o sono se
apoderara das outras. Muitas vezes, prostrada em oração com o
rosto em terra, regava o chão com lágrimas e o acariciava com
beijos: parecia ter sempre o seu Jesus entre as mãos, derramando
aquelas lágrimas em seus pés, a que beijava.
Chorava, uma vez, na noite profunda, quando apareceu o anjo das
trevas na figura de um menino negro, dizendo-lhe: "Não chore tanto,
que vai ficar cega". Respondeu na hora: "Quem vai ver Deus não
será cego". Confuso, ele foi embora.
Na mesma noite, depois de Matinas, Clara rezava banhada em pranto
como de costume, e chegou o conselheiro enganoso: "Não chore
tanto. O cérebro vai acabar derretendo e saindo pelo nariz, deixandoo
torto". Ela respondeu rápido: "Quem serve ao Senhor não sofre
nenhum entortamento". Ele escapou na hora e desapareceu.
Os indícios costumeiros comprovam toda a força que tirava da
fornalha da oração fervorosa, e como nela gozava com doçura a
bondade divina. Pois, quando voltava toda alegre da santa oração,
trazia do fogo do altar do Senhor palavras ardentes que acendiam
também os corações das Irmãs. Admiravam a doçura que vinha de
sua boca e o rosto parecendo mais claro que de costume.
Certamente, Deus tinha banqueteado a pobre em sua doçura (cfr. Sl
67,11), e a alma cumulada de luz verdadeira na oração estava
transparecendo no corpo.
Assim, unida imutavelmente a seu nobre Esposo no mundo mutável,
deliciava-se continuamente nas coisas do alto. Firme em virtude
estável no rodar versátil, guardando o tesouro da glória em vaso de
barro, tinha o corpo na terra e a alma nas alturas. Costumava ir
antes que as jovens para as Matinas, acordando-as com sinais
silenciosos e incitando-as ao louvor.
Em geral, acendia as luzes quando as outras dormiam. Muitas vezes
era ela que tocava o sino. Em seu convento, não havia lugar para
tibieza, nem desídia, pois a preguiça era atacada por forte estímulo
para orar e servir ao Senhor.
MARAVILHAS DE SUA ORAÇÃO: ANTES DE TUDO, OS
SARRACENOS MILAGROSAMENTE POSTOS EM FUGA
Quero contar aqui, com toda a fidelidade à verdade, os prodígios de
sua oração, mais que dignos de veneração.
Durante a tormenta que a Igreja sofreu em diversas partes do mundo
sob o imperador Frederico, o vale de Espoleto teve que beber muitas
vezes o cálice da ira. Por ordem do imperador, aí se estabeleceram,
como enxames de abelhas, esquadrões de cavalaria e arqueiros
sarracenos, despovoando castelos e aniquilando cidades. Quando o
furor inimigo se dirigiu uma vez contra Assis, cidade predileta do
Senhor, o exército já estava chegando perto das portas, e os
sarracenos, gente péssima, sedenta de sangue cristão e
desavergonhadamente capaz de qualquer crime, entraram no terreno
de São Damião e chegaram até dentro do próprio claustro das Irmãs.
O coração das senhoras derretia-se de terror. Tremendo para falar,
levaram seus prantos à madre. Corajosa, ela mandou que a
levassem, doente, para a porta, diante dos inimigos, colocando à
sua frente uma caixinha de prata revestida de marfim, onde
guardavam com suma devoção o Corpo do Santo dos Santos.
Toda prostrada em oração ao Senhor, disse a Cristo entre lágrimas:
"Meu Senhor, será que quereis entregar inermes nas mãos dos
pagãos as vossas servas, que criei no vosso amor? Guardai Senhor,
vos rogo, estas vossas servas a quem não posso defender neste
transe".
Logo soou em seus ouvidos, do propiciatório da nova graça, uma
voz de menininho: "Eu sempre vos defenderei". Ela disse: "Meu
Senhor, protegei também, se vos apraz, a cidade que nos sustenta
por vosso amor". E Cristo: "Suportará padecimentos, mas será
defendida por minha força".
Então a virgem ergueu o rosto em lágrimas, confortando as que
choravam: "Garanto, filhinhas, que não vão sofrer mal nenhum. É só
confiar em Cristo". Não demorou. De repente, a audácia daqueles
cães se retraiu e assustou. Saíram rápidos pelos muros que tinham
pulado, derrotados pela força da sua oração.
Logo em seguida, Clara determinou com seriedade às que tinham
ouvido a voz: "Tenham todo o cuidado, filhas, queridas, de não
revelar essa voz a quem quer que seja, enquanto eu viver".
OUTRO MILAGRE: A LIBERTAÇÃO DA CIDADE
Em outra ocasião, Vital de Aversa, homem cobiçoso de glória e
intrépido nas batalhas, moveu contra Assis o exército imperial, que
comandava. Despiu a terra de suas árvores, assolou todos os
arredores e acabou pondo cerco à cidade. Declarou
ameaçadoramente que de nenhum modo se retiraria, enquanto não a
tivesse tomado. De fato, já havia chegado o ponto em que se temia a
queda iminente da cidade.
Quando Clara, a serva de Cristo, soube disso, suspirou
veementemente, chamou as Irmãs e disse: "Filhas queridas,
recebemos todos os dias muitos bens desta cidade. Seria muita
ingratidão se, na hora em que precisa, não a socorrêssemos como
podemos".
Mandou trazer cinza, disse às Irmãs que descobrissem a cabeça. E,
primeiro, espalhou muita cinza sobre a cabeça nua. Colocou-a
depois também sobre as cabeças delas. Então disse: "Vão suplicar a
nosso Senhor com todo o coração a libertação da cidade".
Para quê contar detalhes? Que direi das lágrimas das virgens, de
suas preces "violentas"? Na manhã seguinte, Deus misericordioso
deu a saída para o perigo: o exército debandou e o soberbo, contra
os planos, foi embora e nunca mais oprimiu aquelas terras. Pouco
depois o comandante guerreiro foi morto a espada.
A FORÇA DA SUA ORAÇÃO NA CONVERSÃO DE SUA IRMÃ
De fato, não devemos sepultar no silêncio a eficácia admirável de
sua oração que, ainda no começo de sua consagração, converteu
uma alma para Deus, e a protegeu. Tinha uma irmã jovem, irmã na
carne e na pureza. Desejando sua conversão, nas primeiras preces
que oferecia a Deus com todo afeto, insistia nisso: que, assim como
no mundo tinha tido com a irmã conformidade de sentimentos,
assim agora se unissem, ambas, para o serviço de Deus em uma só
vontade.
Pedia insistentemente ao Pai da misericórdia que o mundo perdesse
o gosto e que Deus fosse doce para Inês, a irmã deixada em casa,
mudando-a da perspectiva de um casamento humano para a união
de seu amor, desposando com ela, em virgindade perpétua, o
Esposo da glória. Um afeto admirável tomara conta das duas e,
embora por diferentes razões, tinha tornado dolorosa para ambas a
recente separação.
A divina Majestade atendeu depressa a excepcional orante e lhe
concedeu imediatamente aquele primeiro dom, pedido mais que
tudo e que mais agradava a Deus regalar. Assim, dezesseis dias
depois da conversão de Clara, Inês, levada pelo Espírito divino,
correu para a irmã e, contando seu segredo, disse que queria servir
só ao Senhor. Ela a abraçou toda feliz e exclamou: "Dou graças a
Deus, dulcíssima irmã, porque abriu os ouvidos à minha solicitude
por você".
À conversão maravilhosa seguiu-se não menos maravilhosa defesa.
Quando as felizes irmãs estavam na igreja de Santo Ângelo de
Panço, aplicadas em seguir as pegadas de Cristo, e a que mais sabia
do Senhor instruía sua irmã e noviça, de repente levantaram-se
contra as jovens novos ataques dos familiares. Sabendo que Inês
tinha ido para junto de Clara, correram no dia seguinte ao lugar doze
homens acesos de fúria e, dissimulando a malvadeza por fora,
apresentaram-se para uma visita de paz.
Logo, voltando-se para Inês, pois de Clara já antes tinham perdido a
esperança, disseram: "Por que veio a este lugar? Volte quanto antes
para casa conosco". Quando ela respondeu que não queria separarse
de sua irmã Clara, lançou-se sobre ela um cavaleiro enfurecido e,
a socos e pontapés, queria arrastá-la pelos cabelos, enquanto os
outros a empurravam e levantavam nos braços. Diante disso, a
jovem, vendo-se arrancada das mãos do Senhor, como presa de
leões, gritou: "Ajude-me, irmã querida, não deixe que me separem de
Cristo Senhor".
Os violentos atacantes arrastaram a jovem renitente pela ladeira,
rasgando a roupa e enchendo o caminho de cabelos arrancados.
Clara prostrou-se numa oração em lágrimas, pedindo que a irmã
mantivesse a constância e suplicando que a força daqueles homens
fosse superada pelo poder de Deus.
De repente, o corpo dela, caído por terra, pareceu fincar-se com
tanto peso que, mesmo diversos homens, juntando as forças, não
conseguiram de modo algum levá-lo para além de um riacho.
Acorreram também alguns dos campos e vinhas para ajudá-los, mas
não puderam levantar do chão aquele corpo. Tiveram que desistir do
esforço e exaltaram o milagre comentando em brincadeira: "Passou
a noite comendo chumbo, não é de admirar que esteja pesada".
O próprio senhor Monaldo, seu tio paterno, que, tomado por tanta
raiva, tentou dar-lhe um soco mortal, sentiu de repente que uma dor
atroz invadia a mão levantada e o atormentou angustiosamente por
muito tempo.
Então, depois da longa batalha, Clara foi até lá, pediu aos parentes
que desistissem da luta e deixassem a seus cuidados Inês, que jazia
meio morta. Quando eles se retiraram, amargados pelo fracasso da
empresa, Inês levantou-se jubilosa e, já gozando da cruz de Cristo,
por quem travara essa primeira batalha, consagrou-se para sempre
ao serviço divino. Então o bem-aventurado Francisco a tonsurou
com suas próprias mãos e, junto com sua irmã, instruiu-a nos
caminhos do Senhor.
Mas como não dá para explicar em poucas palavras a magnífica
perfeição de sua vida, voltamos a falar de Clara.
OUTRO MILAGRE: EXPULSÃO DE DEMÔNIOS.
Não é de admirar que a oração de Clara tivesse poder contra a
maldade dos homens, se fazia arder até os demônios. Aconteceu
que uma devota, da diocese de Pisa, veio uma vez ao lugar para
agradecer a Deus e a Santa Clara porque, por seus méritos, fora
libertada de cinco demônios. Na hora da expulsão, os demônios
confessaram que a oração de Santa Clara os queimava e os
desalojava daquele vaso de sua posse.
Não foi à-toa que o senhor papa Gregório teve admirável fé nas
orações desta santa, cuja virtude provara ser eficaz. Muitas vezes,
como bispo de Óstia ou já elevado ao trono apostólico, ao surgir
alguma dificuldade, como acontece, dirigia-se por carta à
mencionada virgem: pedia orações e já sentia a ajuda. É algo
certamente notável pela humildade e que deve ser fervorosamente
imitado: o Vigário de Cristo reclamando a ajuda da serva de Cristo e
recomendando-se a suas virtudes.
Certamente sabia de que é capaz o amor e como é livre o acesso das
virgens puras ao consistório da divina Majestade. Se o Rei dos céus
entrega-se Ele mesmo aos que o amam com fervor, o que não há de
conceder, se convém, aos que o rogam com devoção?
Quão grande foi o devoto amor de Clara pelo Sacramento do Altar
demonstram-no os fatos. Durante a grave doença que a prendeu à
cama, fazia-se erguer e sustentar colocando apoios. Assim, sentada,
fiava panos finíssimos, com os quais fez mais de cinqüenta jogos de
corporais que, colocados dentro de bolsas de seda ou de púrpura,
destinava a diversas igrejas do vale e das montanhas de Assis.
Ao receber o Corpo do Senhor, lavava-se antes em lágrimas
ardentes e, acercando-se a tremer, não o temia menos escondido no
sacramento que regendo céu e terra.
ADMIRÁVEL CONSOLAÇÃO QUE O SENHOR LHE
CONCEDEU NA DOENÇA
Como ela se lembrava de seu Cristo na doença, Cristo também a
visitou em seus sofrimentos. Na hora do Natal, em que o mundo se
alegra com os anjos diante do Menino recém-nascido, todas as
senhoras foram à capela para as Matinas, deixando a madre sozinha,
oprimida pela doença. Ela começou a meditar sobre o pequenino
Jesus e, sofrendo muito por não poder assistir seus louvores,
suspirou: "Senhor Deus, deixaram-me aqui sozinha para Vós". E eis
que de repente começou a ressoar em seus ouvidos o maravilhoso
concerto que se desenrolava na igreja de São Francisco. Escutava o
júbilo dos irmãos salmodiando, ouvia a harmonia dos cantores,
percebia até o som dos instrumentos.
O lugar não era tão próximo que pudesse chegar a isso
humanamente: ou a solenidade tinha sido amplificada até ela pelo
poder divino, ou seu ouvido tinha sido reforçado de modo sobrehumano.
Mas o que superou todo esse prodígio foi que mereceu ver
o próprio presépio do Senhor.
Quando as filhas vieram, de manhã, disse a bem-aventurada Clara:
"Bendito seja o Senhor Jesus Cristo, que não me deixou quando
vocês me abandonaram. Escutei, por graça de Cristo, toda a
solenidade celebrada esta noite na igreja de São Francisco".
ARDENTE AMOR AO CRUCIFICADO
Era-lhe familiar o pranto pela paixão do Senhor: ou hauria das
sagradas chagas a amargura da mirra, ou sorvia os mais doces
gozos. Embriagavam-na veementemente as lágrimas de Cristo
sofredor, e a memória reproduzia freqüentemente aquele que o amor
lhe gravara fundo no coração.
Ensinava as noviças a chorar o crucificado dando junto o exemplo
do que dizia. Muitas vezes, ao exortá-las a isso em particular,
vinham-lhe as lágrimas antes de acabarem as palavras.
Entre as horas do dia, em geral era mais tocada de compunção em
Sexta e Noa, para imolar-se com o Senhor imolado. Uma vez, rezava
na cela na hora Nona, e o diabo lhe bateu no rosto, enchendo um
olho de sangue e a face de marcas.
Para nutrir a alma sem cessar nas delícias do Crucificado, ruminava
freqüentemente a oração das cinco chagas do Senhor. Aprendeu o
Ofício da Cruz composto por Francisco, o amante da cruz, e o
repetia com o mesmo afeto. Cingia embaixo da roupa, sobre a carne,
uma cordinha com treze nós, lembrança secreta das feridas do
Senhor.
UMA COMEMORAÇÃO DA PAIXÃO DO SENHOR
Chegou, uma vez, o dia da Sagrada Ceia, em que o Senhor amou os
seus até o fim (cfr. Jo 13,1). Pela tarde, aproximando-se a agonia do
Senhor, Clara, entristecida e aflita, fechou-se no segredo de sua
cela. Acompanhando em oração o Senhor que rezava, sua alma
triste até a morte (cfr. Mt 26,38) embebeu-se da tristeza dele, a
memória foi se compenetrando da captura e de toda derisão: caiu na
cama.
Ficou tão absorta durante toda aquela noite e no dia seguinte, tão
fora de si que, com o olhar ausente, cravada sempre em sua visão
única, parecia crucificada com Cristo, totalmente insensível. Uma
filha familiar voltou diversas vezes para ver se precisava de alguma
coisa e a encontrou sempre do mesmo jeito.
Quando chegou a noite do sábado, a devota filha acendeu uma vela
e, sem falar, com um sinal, lembrou sua mãe da ordem que recebera
de São Francisco. Pois o santo mandara que não deixasse passar
um só dia sem comer. Na sua presença, Clara, como se voltasse de
algum outro lugar, disse o seguinte: "Para que a vela? Não é dia?"
"Madre, respondeu a outra, foi-se a noite, já passou um dia, e voltou
outra noite".
Clara disse: "Bendito seja este sonho, filha querida, porque ansiei
tanto por ele e me foi concedido. Mas guarde-se de contar este
sonho a quem quer que seja, enquanto eu viver na carne".
DIVERSOS MILAGRES QUE FAZIA COM O SINAL E A
VIRTUDE DA SANTA CRUZ
O Crucifixo amado correspondeu à amante que, acesa em tão
grande amor pelo mistério da cruz, foi distinguida com sinais e
milagres pelo seu poder. Quando fazia o sinal da cruz vivificante
sobre os enfermos, afastava milagrosamente as doenças. Vou
contar alguns casos, entre tantos.
São Francisco mandou a dona Clara um frade enlouquecido,
chamado Estêvão, para que traçasse sobre ele o sinal da cruz
santíssima, pois conhecia sua grande perfeição e venerava sua
grande virtude. A filha da obediência fez sobre ele o sinal, por ordem
do pai, e deixou-o dormir um pouquinho, no lugar onde ela mesma
costumava rezar. E ele, livre do sono daí a pouco, levantou-se
curado e voltou ao pai, liberto da loucura.
Mateusinho, um menino de três anos da cidade de Espoleto, tinha
enfiado uma pedrinha na narina. Ninguém conseguia tirá-la do nariz
do menino, nem ele podia expeli-la. Em perigo e com enorme
angústia, foi levado a dona Clara e, quando foi marcado por ela com
o sinal da cruz, soltou de repente a pedra e ficou livre.
Outro menino, de Perusa, tinha o olho velado por uma mancha e foi
levado à santa serva de Deus. Ela tocou o olho da criança, marcou-a
com o sinal da cruz e disse: Levem-no a minha mãe, para fazer nele
outro sinal da cruz". Sua mãe dona Hortolana seguira a plantinha,
entrara na Ordem depois da filha e, viúva, servia ao Senhor no
jardim fechado com as virgens. Ao receber dela o sinal da cruz, o
olho do menino se livrou da mancha, e ele viu clara e distintamente.
Clara disse que o menino tinha sido curado por mérito de sua mãe; a
mãe deixou em favor da filha o crédito do louvor, dizendo-se indigna
de coisa tão grande.
Uma das Irmãs, chamada Benvinda, tinha suportado quase doze
anos embaixo do braço a chaga de uma fístula que soltava pus por
cinco orifícios. Compadecida, a virgem de Deus Clara aplicou seu
emplastro especial do sinal de salvação. Foi só fazer a cruz e, de
repente, ela ficou perfeitamente curada da velha úlcera.
Outra Irmã, chamada Amata, jazia doente de hidropisia havia treze
meses, consumida também pela febre, a tosse e uma dor de lado.
Compadecida dela, dona Clara recorreu àquele nobre sistema de sua
arte medicinal: marcou-a com a cruz no nome de Cristo e no mesmo
instante devolveu-lhe a saúde completa.
Outra serva de Cristo, oriunda de Perusa, de tal modo perdera a voz
ao longo de dois anos que mal podia articular palavra audível. Na
noite da Assunção de Nossa Senhora, teve uma visão de que dona
Clara a curaria e esperou ansiosa pelo dia. Quando amanheceu,
correu à madre, pediu-lhe que a marcasse com a cruz e recuperou a
voz logo que foi assinalada.
Uma Irmã chamada Cristiana tinha sofrido por muito tempo de
surdez em um ouvido e experimentara em vão muitos remédios para
o mal. Dona Clara fez-lhe o sinal na cabeça com clemência, tocoulhe
a orelha e na mesma hora ela recuperou a faculdade de ouvir.
Era grande o número de Irmãs doentes no mosteiro, aflitas por
vários achaques. Clara foi vê-las como de costume, com seu
remédio habitual, e, em cinco vezes que fez o sinal da cruz, curou
cinco na hora. Por esses fatos, fica patente que no coração da
virgem estava plantada a árvore da cruz, cujo fruto restaura a alma,
cujas folhas oferecem remédio para o corpo.
A FORMAÇÃO DIÁRIA DAS IRMÃS
Verdadeira mestra dos rudes e formadora de jovens no palácio do
grande Rei, ensinava-as com tal pedagogia e as formava com tão
dedicado amor que não há palavras para dize-lo. Primeiro, ensinava
a afastar de dentro da alma toda convulsão, para poderem firmar-se
só na intimidade de Deus. Depois, ensinava-as a não se deixar levar
pelo amor dos parentes segundo a carne e a esquecer a casa
paterna para agradar a Cristo.
Exortava a não ligar para as exigências do corpo frágil, dominando
com a razão os impulsos da carne. Mostrava que o inimigo insidioso
arma laços ocultos para as almas puras e não tenta os santos como
tenta os mundanos. Queria que tivessem tempos certos de trabalhos
manuais para que, como queria o fundador, se afervorassem depois
pelo exercício da oração, fugindo ao torpor da negligência e
expulsando o frio da falta de devoção pelo fogo do santo amor.
Nunca houve maior observância do silêncio nem maior
demonstração e prática de toda honestidade. Lá, não havia o espírito
de conversas à-toa nem palavras levianas mostrando afetos frívolos.
A própria mestra, de poucas palavras, resumia em alocuções breves
a abundância de sua mente.
ESFORÇO PARA ACOLHER BEM A PALAVRA DA SANTA
PREGAÇÃO
Por meio de devotos pregadores, cuidava de alimentar as filhas com
a palavra de Deus e não ficava com a parte pior. Quando ouvia a
santa pregação, ficava tão inundada de gozo e gostava tanto de
recordar o seu Jesus que, uma vez, durante a pregação de Frei Filipe
de Atri apareceu um menino muito bonito para a virgem Clara e a
consolou durante grande parte do sermão com as suas graças.
Diante dessa aparição, a Irmã que mereceu ser testemunha do que a
madre viu sentiu-se inundada por uma suavidade inefável.
Não tinha formação literária mas gostava de ouvir os sermões dos
letrados, sabendo que na casca das palavras ocultava-se o miolo
que tinha a sutileza de alcançar e o gosto de saborear. De qualquer
sermão, conseguia tirar proveito para a alma, pois sabia que não
vale menos poder recolher de vez em quando uma flor de um áspero
espinheiro que comer o fruto de uma árvore de qualidade.
Uma vez, o papa Gregório proibiu qualquer frade de ir sem sua
licença aos mosteiros das senhoras. A piedosa madre, doendo-se
porque ia ser mais raro para as Irmãs o manjar da doutrina sagrada,
gemeu: "Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos
que davam o alimento de vida". E devolveu ao ministro na mesma
hora todos os irmãos, pois não queria esmoleres para buscar o pão
do corpo, se já não tinha esmoleres para o pão do espírito. Quando
soube disso, o papa Gregório deixou imediatamente a proibição nas
mãos do ministro geral.
SUA GRANDE CARIDADE PARA COM AS IRMÃS
A venerável abadessa não amava só as almas das filhas: servia
também seus corpos com o zelo de uma caridade admirável. Muitas
vezes, no frio da noite, cobria-as com as próprias mãos, enquanto
dormiam, e queria que se contentassem com um regime mais
benigno as que via incapacitadas para a observância do rigor
comum.
Se alguma, como acontece, estivesse perturbada por uma tentação,
ou tomada de tristeza, chamava-a à parte e a consolava entre
lágrimas. Às vezes, se ajoelhava aos pés das que sofriam para aliviálas
com carinho materno.
As filhas, gratas por sua bondade, correspondiam com toda
dedicação. Acolhiam o carinho afetuoso da mãe, respeitavam na
mestra o cargo de governo, acompanhavam o procedimento correto
da formadora e admiravam na esposa de Deus a prerrogativa de uma
santidade tão completa.
SUAS DOENÇAS E O SOFRIMENTO CONTÍNUO
Tinha corrido quarenta anos no estádio (cfr. 1Cor 9,24) da altíssima
pobreza (cfr. 2Cor 8,2) e já chegavam muitas dores, precedendo o
prêmio do chamado eterno. O vigor de corpo, castigado nos
primeiros anos pela austeridade da penitência, foi vencido no final
por dura enfermidade, para enriquecê-la, doente, com o mérito das
obras. A virtude aperfeiçoa-se na enfermidade (cfr. 2Cor 12,9).
Vemos a que ponto acrisolou-se na doença sua virtude maravilhosa
principalmente porque, em vinte e oito anos de contínua dor, não se
ouviu murmuração nem queixa. De seus lábios brotavam sempre
santas palavras, uma ação de graças contínua.
Embora parecesse correr para o fim, oprimida pelo peso das
doenças, aprouve ao Senhor adiar sua morte até o momento em que
pudesse ser exaltada com dignas honras pela Igreja romana, de que
era obra e filha singular. Pois, demorando-se o sumo pontífice com
os cardeais em Lião, Clara começou a sentir-se mais oprimida que
de costume pela doença, e uma espada de dor enorme atormentava
as almas de suas filhas.
Nessa ocasião, uma serva de Cristo, virgem consagrada a Deus no
mosteiro de São Paulo da ordem de São Bento, teve uma visão:
estava em São Damião, com suas Irmãs, assistindo a doença de
dona Clara, e a via deitada numa cama preciosa. Elas choravam,
esperando em lágrimas a partida da bem-aventurada Clara, quando
apareceu uma formosa mulher à cabeceira da cama e lhes disse:
"Não chorem, ó filhas, essa mulher que vai vencer; porque não
poderá morrer, enquanto não vier o senhor com seus discípulos".
De fato, a corte romana chegou a Perusa logo depois. Sabendo que
ela tivera uma piora na doença, o senhor ostiense correu de Perusa
a visitar a esposa de Cristo, de quem fora pai por ofício,
sustentáculo pela atenção, amigo sempre devoto por puríssimo
afeto. Alimentou a enferma com o sacramento do Corpo do Senhor e
também as outras com um salutar sermão.
Ela só suplicava o Pai em lágrimas, recomendando-lhe sua alma e as
das outras senhoras, pelo nome de Cristo. Mas pedia acima de tudo
que obtivesse do senhor Papa e dos cardeais a confirmação do
Privilégio da Pobreza. E foi isso que aquele fidelíssimo amigo da
Ordem realizou de fato como prometeu de palavra.
Um ano depois, o senhor Papa passou de Perusa para Assis com os
cardeais, cumprindo-se assim a referida visão sobre o trânsito da
santa. Porque o Sumo Pontífice, colocado além dos homens e
aquém de Deus, representa a pessoa do Senhor; e os senhores
cardeais a ele se unem como os discípulos, no templo da Igreja
militante.
COMO, ESTANDO ELA DOENTE, O SENHOR INOCÊNCIO A
VISITOU, ABSOLVEU E ABENÇOOU
A divina providência já acelerava o cumprimento de seu plano para
Clara: Cristo tinha pressa de sublimar no palácio do reino superno a
pobre peregrina. Ela já desejava e suspirava de todo coração por
livrar-se do corpo mortal (cfr. Rm 7,24) para ver reinando nas etéreas
mansões o Cristo pobre que ela, pobrezinha, seguira na terra de
todo coração. Juntou-se nova fraqueza a seus membros sagrados,
gastos pela velha doença, indicando sua próxima chamada para o
Senhor e preparando-lhe o caminho da salvação eterna. O senhor
Inocêncio IV, de santa memória, foi logo visitar a serva de Cristo
com os cardeais e não teve dúvida de honrar com a presença papal
a morte daquela, cuja vida provara estar acima das mulheres de
nosso tempo. Entrou no mosteiro, foi ao leito, chegou a mão à boca
da doente para que a beijasse. Ela a tomou agradecida e pediu com
maior reverência para beijar o pé do Apostólico. Cortês, o senhor
subiu reverentemente a um banquinho de madeira para ajeitar o pé
que ela, reverentemente inclinada, cobriu de beijos por cima e por
baixo.
Depois, pediu com rosto angelical ao Sumo Pontífice a remissão de
todos os pecados. Ele exclamou: "Oxalá precisasse eu de tão pouco
perdão!" E lhe deu plena absolvição e a graça de uma ampla bênção.
Quando todos saíram, como tinha recebido nesse dia a hóstia
sagrada das mãos do ministro provincial, de olhos levantados para o
céu e de mãos juntas para o Senhor, disse às Irmãs, entre lágrimas:
"Filhinhas minhas, louvem o Senhor, porque hoje Cristo dignou-se
fazer-me tão grande benefício que céu e terra não bastariam para
pagar. Hoje, prosseguiu, recebi o Altíssimo e mereci ver o seu
Vigário".
COMO RESPONDEU A SUA IRMÃ QUE CHORAVA
Rodeavam a cama da mãe aquelas filhas que bem depressa ficariam
órfãs, com a alma atravessada por uma espada de dor (cfr. Lc 2,35).
Não se deixavam levar pelo sono nem afastar pela fome: esquecidas
da cama e da mesa, dia e noite só queriam chorar. Entre elas, a
devota virgem Inês, saturada de lágrimas amargas, pedia sem parar
à irmã que não se fosse, deixando-a sozinha. Clara disse: "Irmã
querida, apraz a Deus que eu me vá. Mas pare de chorar, porque
você vai chegar diante do Senhor logo depois de mim, e Ele lhe dará
uma grande consolação antes de eu me separar de você".
O TRÂNSITO FINAL E TUDO QUE ACONTECEU E SE VIU
No fim, pareceu debater-se em agonia durante muitos dias, nos
quais foi crescendo a fé das pessoas e a devoção do povo. Também
foi honrada diariamente como verdadeira santa por visitas
freqüentes de cardeais e prelados. O admirável é que, não podendo
tomar alimento algum durante dezessete dias, revigorava-a o Senhor
com tanta fortaleza que ela confortava no serviço de Cristo todos
que a visitavam.
Exortada pelo bondoso Frei Reinaldo a ser paciente no longo
martírio de todas essas doenças, respondeu com voz mais solta:
"Irmão querido, desde que conheci a graça de meu Senhor Jesus
Cristo por meio do seu servo Francisco, nunca mais pena alguma
me foi molesta, nenhuma penitência foi pesada, doença alguma foi
dura".
Mas quando o Senhor agiu mais de perto e já parecia às portas, quis
ser assistida por sacerdotes e frades espirituais, para recitarem a
paixão do Senhor e suas santas palavras. Aparecendo com eles Frei
Junípero, egrégio menestrel do Senhor, que costumava soltar ditos
ardentes de Deus, cheia de renovada alegria, ela perguntou se tinha
algo novo sobre o Senhor. Ele abriu a boca, deixou sair centelhas
ardentes da fornalha do fervoroso coração, e a virgem de Deus ficou
muito consolada com suas parábolas.
Voltou-se enfim para as filhas em lágrimas, recomendando a
pobreza do Senhor e lembrando em louvores os benefícios divinos.
Abençoou seus devotos e devotas e implorou a graça de uma ampla
bênção sobre todas as senhoras dos mosteiros de pobres, tanto
presentes como futuras.
Quem pode contar o resto sem chorar? Aí estão dois benditos
companheiros de São Francisco: um, Ângelo, mesmo triste, consola
os tristes; outro, Leão, beija a cama da moribunda. Choram as filhas
desamparadas pela partida da piedosa mãe e seguem em lágrimas a
que se vai e não verão mais na terra. Doem-se muito amargamente,
porque, abandonadas no vale de lágrimas, já não serão mais
consoladas por sua mestra. Só o pudor impede as mãos de dilacerar
o corpo, e o fogo da dor torna mais ardente o que não pode evaporarse
com o pranto exterior. A observância claustral impõe silêncio,mas a violência da dor arranca gemidos e soluços. Os rostos estão
inchados pelas lágrimas, mas o ímpeto do coração dolorido lhes dá
mais água.
A virgem muito santa, voltando-se para si mesma, diz baixinho a sua
alma: "Vá segura, que você tem uma boa escolta para o caminho. Vá,
diz, porque aquele que a criou também a santificou; e, guardando-a
sempre como uma mãe guarda o filho, amou-a com terno amor. E
bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes!".
Uma das Irmãs perguntou com quem estava falando, e ela
respondeu: "Falo com a minha alma bendita". Já não estava longe o
seu glorioso séquito, pois, virando-se para uma das filhas, disse:
"Você está vendo, minha filha, o Rei da glória que eu estou vendo?".
A mão do Senhor pousou também sobre outra que, entre lágrimas,
teve esta feliz visão com os olhos do corpo. Transpassada pelo
dardo da profunda dor, voltou o olhar para a porta do quarto e viu
entrar uma porção de virgens vestidas de branco, todas com
grinaldas de ouro na cabeça. Entre elas, caminhava uma mais
preclara que as outras, de cuja coroa, que em seu remate tinha uma
espécie de turíbulo com janelinhas, irradiava tanto esplendor que
mudava a própria noite em dia luminoso dentro de casa. Ela foi até a
cama em que estava a esposa de seu Filho e, inclinando-se com
todo amor sobre ela, deu-lhe um terníssimo abraço. As virgens
trouxeram um pálio de maravilhosa beleza e, estendendo-o todas à
porfia, deixaram o corpo de Clara coberto e o tálamo adornado.
No dia seguinte a São Lourenço, aquela alma muito santa foi receber
o prêmio eterno: dissolveu-se o templo da carne, e o espírito foi feliz
para o céu. Bendita saída do vale de miséria, que para ela foi entrada
na vida bem-aventurada. Em vez do pouco que comia, já se alegra na
mesa dos cidadãos do céu; em vez das pobres cinzas, está feliz no
reino celeste, ornada de glória eterna.
Como a Cúria Romana assistiu às exéquias da virgem com grande
concorrência de povo
A notícia da morte da virgem sacudiu imediatamente todo o povo da
cidade com o fato estupendo. Acorrem homens, acorrem mulheres
ao lugar. As pessoas afluem em tamanha multidão que a cidade
parece deserta. Todos a proclamam santa, todos dizem que é
querida e alguns choram entre frases de louvor. Vem o podestá com
um cortejo de cavaleiros e uma tropa de homens armados, e
montam diligente guarda naquela tarde e toda a noite para não
perderem nada do precioso tesouro que tinham entre eles.
No dia seguinte, moveu-se a corte inteira. O Vigário de Cristo foi
para lá com os cardeais e toda a cidade se encaminhou para São
Damião. Quando ia começar a celebração e os frades iniciaram o
ofício dos mortos, o senhor papa disse, de repente, que se devia
rezar o ofício das virgens e não o de defuntos, como se quisesse
canonizá-la antes que o corpo fosse entregue à sepultura. O
eminentíssimo senhor ostiense observou que era preciso ir mais
devagar nisso, e foi celebrada a missa de defuntos.
Sentaram-se depois o sumo pontífice com a comitiva de cardeais e
prelados, e o bispo de Óstia, tomando o tema da vaidade das
vaidades (cfr. Ecl 1,2) louvou em notável sermão a gloriosa
desprezadora da vaidade.
Com devota deferência, cercam então os cardeais presbíteros a
santa morta e fazem os ofícios de costume junto ao corpo da virgem.
Depois, achando que não era seguro nem digno que tão precioso
tesouro ficasse longe dos cidadãos, levaram-no honrosamente para
São Jorge com hinos de louvor, ao som de trombetas e com solene
júbilo. Era o lugar em que estivera sepultado antes o corpo do pai
São Francisco, e assim ele, que, enquanto ela vivia, abriu-lhe o
caminho da vida, por um presságio, preparou-lhe o lugar quando
morta. Começou então a acorrer muita gente ao túmulo da virgem,
louvando a Deus e dizendo: "Santa de verdade, reinas
verdadeiramente gloriosa com os anjos, tu que tanta honra recebes
dos homens na terra. Intercede por nós diante de Cristo, ó primícia
das senhoras pobres, que guiaste tanta gente para a penitência e
levaste tantos para a vida".
Poucos dias depois, Inês, chamada às bodas do Cordeiro, seguiu a
irmã Clara nas eternas delícias. Lá as duas filhas de Sião, irmãs na
natureza, na graça e no reino, rejubilam-se em Deus sem fim.
E de fato, Inês teve antes de morrer a consolação que Clara
prometera. Como tinha passado do mundo para a cruz precedida
pela irmã, quando Clara brilhava com prodígios e milagres, Inês
também saiu da luz do mundo e foi depressa atrás dela acordar em
Deus. Por graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina com
o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.
SEGUNDA PARTE
OS MILAGRES DE SANTA CLARA DEPOIS DE SUA MORTE
Costumes santos e obras perfeitas são o verdadeiro prodígio dos
santos. Esse é o testemunho que devemos venerar em seus
milagres. João não fez sinal nenhum (Jo 10,41); mas os que fazem
milagres não são mais santos do que ele. Por isso, bastaria sua vida
perfeitíssima, se outra coisa não fosse pedida pela tibieza e pela
devoção do povo. Clara é ilustre em todo o mundo pela fama dos
méritos que teve enquanto viveu e mais ainda pela luz dos milagres
agora que mergulhou na claridade perpétua. Obriga-me a
sinceridade que jurei a escrever muitas coisas; seu número me faz
passar muitas por alto.
ENDEMONINHADOS LIBERTADOS
Um menino de Perusa, chamado Tiaguinho, mais que doente parecia
possuído por um dos piores demônios. Às vezes, jogava-se
desesperado no fogo, ou se debatia no chão. Também mordia as
pedras até quebrar os dentes, ferindo muito a cabeça e machucandose
até ficar com o corpo todo ensangüentado. De boca torcida,
língua de fora, virava muitas vezes os membros com tão estranha
habilidade que se transformava numa bola, passando a perna pelo
pescoço.
Essa loucura o atacava duas vezes por dia; nem duas pessoas
podiam impedi-lo de tirar a roupa. Procuraram a ajuda de médicos
competentes, mas não encontraram nenhum que conseguisse
resolver o caso.
Seu pai, Guidoloto, não tendo encontrado entre os homens remédio
algum para tamanho infortúnio, recorreu ao poder de Santa Clara e
rezou:
"Ó virgem santíssima! Ó Clara, venerada pelo mundo, eu te ofereço
meu pobre filho, e te imploro na maior súplica que o cures". Cheio
de fé, foi logo ao sepulcro e, colocando o rapaz em cima da tumba
da virgem, obteve o favor enquanto o pedia. De fato, o menino ficou
livre na mesma hora daquela doença e nunca mais foi molestado por
nenhum mal parecido.
OUTRO MILAGRE
Alexandrina de Fratta, na diocese de Perusa, era atormentada por
um demônio terrível. Dominara-a tanto que a fazia revolutear como
um passarinho em cima de uma alta rocha que se erguia à beira do
rio. Depois, ainda a fazia escorregar por um galho de árvore muito
fino que pendia sobre o Tibre, como se estivesse brincando. Além
disso, como tinha perdido completamente o lado esquerdo por
causa de seus pecados e tinha uma mão torcida, tentara muitas
curas, mas não havia melhorado nada. Foi compungida ao túmulo da
gloriosa virgem Clara e, invocando seus méritos contra a tríplice
desgraça, obteve um salutar efeito com um só remédio. Pois a mão
encolhida se abriu, o lado ficou curado, e ela se livrou da possessão
do demônio. Na ocasião, diante do túmulo da santa, outra mulher do
mesmo lugar teve a graça de se livrar do demônio e de muitas dores.
CURA DE UM LOUCO FURIOSO
Um jovem francês do séquito da Cúria fora atacado de loucura
furiosa, que o fizera perder a fala e agitava monstruosamente o seu
corpo. Ninguém conseguia segurá-lo de modo algum, pois se
revirava horrivelmente nas mãos dos que tentavam contê-lo.
Amarraram-no a um esquife, e seus compatriotas levaram-no à força
à igreja de Santa Clara. Puseram-no diante do sepulcro, e ficou
completamente curado, na hora, pela fé dos que o levavam.
CURA DE UM EPILÉTICO
Valentim de Spello estava tão minado pela epilepsia que seis vezes
por dia caía no chão onde estivesse. Além disso, sofria de uma
contração da perna e não podia andar livremente. Levaram-no
montado num jumento ao sepulcro de Santa Clara, onde ficou
estendido durante dois dias e três noites. No terceiro dia, sem que
ninguém o tocasse, sua perna fez um ruído enorme e ele ficou
imediatamente curado das duas doenças.
CURA DE UM CEGO
Jacobelo, conhecido como filho da espoletana, doente de cegueira
havia doze anos, andava com um guia e não podia ir sem ele a lugar
nenhum senão ao precipício. Uma vez, deixou o menino um
pouquinho e caiu num buraco, quebrando um braço e machucando a
cabeça.
Uma noite, dormindo junto à ponte de Narni, apareceu-lhe em
sonhos uma senhora que disse: "Tiaguinho, por que não vem a mim
em Assis para ficar curado?". Quando acordou, de manhã, contou
tremendo essa visão a outros dois cegos. Eles disseram: "Ouvimos
falar, há pouco, de uma senhora que morreu na cidade de Assis, e se
diz que o poder do Senhor honra seu sepulcro com graças de cura e
muitos milagres".
Ouvindo isso, tratou de pôr-se a caminho sem preguiça e,
hospedando-se à noite em Espoleto, teve outra vez a mesma visão.
Voou ainda mais rápido, só pensando em correr, por amor à vista.
Mas, ao chegar a Assis, encontrou tanta gente acorrendo ao
mausoléu da virgem que não conseguiu de modo algum chegar
perto do túmulo. Pôs uma pedra embaixo da cabeça e, com muita fé,
apesar da dor de não poder entrar, dormiu ali fora. Então, pela
terceira vez, ouviu a voz dizendo: "Tiago, o Senhor lhe concederá o
favor, se você puder entrar". Por isso, ao acordar, rogou chorando à
multidão, gritando e implorando que o deixasse passar, por amor de
Deus. Aberto o caminho, jogou os sapatos, despiu-se, passou uma
correia no pescoço e foi tocar humildemente o túmulo, onde caiu
num sono leve. "Levante-se, disse a bem-aventurada Clara, levantese
que está curado".
Levantou-se na hora e, dissipada toda cegueira, sem nenhuma
escuridão nos olhos, viu claramente a claridade da luz, graças a
Clara. Glorificou a Deus, louvando-o, e convidou todos a bendize-lo
por tão maravilhoso portento.
CURA DE UMA MÃO INUTILIZADA
Um homem de Perusa, chamado Bongiovanni de Martino, marchara
com seus concidadãos contra os de Foligno. Quando começou a
luta de parte a parte, uma forte pedrada esmagou gravemente sua
mão. Desejando curar-se, gastou muito dinheiro com os médicos,
mas nenhuma ajuda da medicina pôde impedi-lo de carregar aquela
mão inútil, com a qual não podia fazer quase nada. Sofrendo por
suportar o peso daquela mão que nem parecia sua, e que não usava,
teve muitas vezes vontade de mandar cortá-la.
Quando ouviu falar dos prodígios que o Senhor se dignava realizar
por meio de sua serva Clara, fez voto e foi pressuroso ao sepulcro
da virgem. Ofereceu uma mão de cera e se prostrou sobre a tumba
da santa. Imediatamente, antes de sair da igreja, sua mão foi
devolvida à saúde.
OS ALEIJADOS
Um certo Pedrinho, do castelo de Bettona, consumido por uma
doença de três anos, parecia quase todo ressecado por tão
prolongado mal. A violência da enfermidade dobrara-o tanto na
cintura que, curvo e virado para a terra, mal podia andar, com um
bastão. O pai do menino recorreu à habilidade de muitos médicos,
principalmente dos especialistas em ossos quebrados. Estava
disposto a gastar todos os bens para recuperar a saúde do filho.
Mas, como todos responderam que não havia cura possível para
aquele mal, voltou-se para a in-tercessão da nova santa, cujos
prodígios ouvia contar. O menino foi levado ao lugar onde repousam
os preciosos restos da virgem e, pouco depois de se deitar diante do
sepulcro, obteve a graça da cura completa. Pois levantou-se na hora,
ereto e sadio, andando, pulando e louvando a Deus (cfr. At 3,8), e
convidou o povo ali aglomerado a louvar Santa Clara.
Havia um menino de dez anos, da vila de São Quirino, da diocese de
Assis, aleijado desde o ventre de sua mãe (cfr. At 3,2): tinha as
pernas finas, jogava os pés de lado e, andando torto, mal podia
levantar-se quando caía. Sua mãe o havia oferecido muitas vezes em
voto ao bem-aventurado Francisco, sem conseguir melhora.
Ao ouvir dizer que a bem-aventurada Clara brilhava com novos
milagres, levou o filho ao túmulo. Uns dias depois, os ossos das
tíbias ressoaram e os membros ficaram normais. E o que São
Francisco, implorado com tantos rogos, não tinha concedido, foi
outorgado pela graça divina por sua discípula Clara.
Um cidadão de Gúbio, Tiago de Franco, tinha um filho de cinco anos
que, fraco dos pés, nunca andara nem podia andar. Lamentava-se
pelo menino como uma mancha para a casa, o opróbrio da família. O
rapaz deitava-se no chão e se arrastava no pó, querendo às vezes
ficar em pé com um bastão, sem conseguir. A natureza dera-lhe o
desejo de andar, mas negava a possibilidade.
Os pais encomendaram o menino aos méritos de Santa Clara e, para
usar suas palavras, prometeram que seria um "homem de Santa
Clara", se obtivesse a cura através dela. Foi só fazer o voto e a
virgem de Cristo curou o seu homem, devolvendo a capacidade de
andar bem ao menino oferecido. Os pais correram logo ao túmulo da
virgem com ele, que brincava e saltava todo alegre, e o consagraram
ao Senhor.
Plenária, uma mulher do castelo de Bevagna, sofria uma contração
na cintura havia muito tempo e só podia andar apoiada num bastão.
Mas isso não a ajudava a levantar o corpo curvo, e se arrastava por
toda parte com passos vacilantes. Numa sexta-feira, fez-se levar ao
sepulcro de Santa Clara, onde rezou com a maior devoção e obteve
de imediato o que confiantemente pedia. Assim ela, que tinha sido
levada pelos outros, voltou no sábado seguinte com os próprios pés
para casa, completamente curada.
CURA DE TUMORES DA GARGANTA
Uma moça de Perusa sofrera longamente muita dor com uns
tumores da garganta, que o povo chama de escrófulas. Em sua
garganta, dava para contar umas vinte bolhas, de modo que o
pescoço dela parecia bem mais grosso que a cabeça. Sua mãe levoua
muitas vezes ao túmulo da virgem Clara, onde, com toda devoção,
implorava a santa em seu favor. Uma vez, a moça ficou a noite
inteira deitada diante do sepulcro, suou muito e os tumores
começaram a amolecer e a sair um pouco do lugar. Com o tempo e
pelos méritos de Santa Clara, desapareceram de tal modo que não
sobrou absolutamente nenhum vestígio deles. Ainda durante a vida
da virgem Clara, uma Irmã chamada Andrea sofreu de um mal
semelhante na garganta. Certamente é estranho que, entre as brasas
ardentes, se ocultasse alma tão fria e que, entre virgens prudentes,
houvesse uma estulta imprudente. O certo é que uma noite Andrea
apertou a garganta até se afogar, para expulsar o inchaço pela boca,
querendo sobrepor-se ao que Deus queria para ela.
Mas Clara, por inspiração, soube disso na mesma hora e disse a
uma Irmã: "Corra, corra depressa ao andar de baixo e faça a Irmã
Andrea de Ferrara tomar um ovo quente. Depois venha aqui com
ela".
A outra foi correndo e encontrou Andrea sem falar, quase afogada
por ter se apertado com as mãos. Ergueu-a como pôde e a levou
consigo à madre. A serva de Deus lhe disse: "Pobrezinha, confesse
ao Senhor seus pensamentos, que até eu sei muito bem quais são. O
que você quis sarar vai ser curado pelo Senhor Jesus Cristo. Mas
mude de vida para melhor, porque você não vai se levantar de outra
doença que vai ter".
A estas palavras, ela recebeu o espírito de compunção e mudou sua
vida bem valorosamente para melhor. Pouco tempo depois, já
curada do tumor, morreu de outra doença.
OS SALVADOS DE LOBOS
A região costumava ser assolada pela ferocidade cruel dos lobos
que, atacando os próprios homens, muitas vezes comiam carne
humana. Uma mulher chamada Bona, de Monte Galiano, na diocese
de Assis, tinha dois filhos. Mal acabara de chorar por um, que os
lobos tinham arrebatado, quando eles se precipitaram com a mesma
ferocidade sobre o segundo. A mãe estava em casa, nos afazeres
familiares. O lobo meteu os dentes no menino que andava lá fora e,
mordendo-o pela cabeça, correu depressa para o mato com a presa.
Ouvindo os gritos do menino, os homens que estavam nas vinhas
gritaram para a mãe, dizendo: "Veja se seu filho está em casa,
porque ouvimos há pouco uns gritos estranhos". Quando a mãe viu
que o filho tinha sido levado pelo lobo, levantou seus clamores para
o alto e, enchendo o ar de gritos, invocou a virgem Clara, dizendo:
"Santa e gloriosa Clara, devolva meu pobre filho. Devolva, devolva o
filhinho à mãe infeliz. Se não fizer isso, vou me matar na água".
Os vizinhos correram atrás do lobo e encontraram o menininho
abandonado por ele na selva, com um cachorro lambendo suas
feridas. O animal selvagem começara mordendo a cabeça; depois,
para levar mais facilmente a presa, abocanhou-a pela cintura,
deixando marcas profundas da mordida nos dois lados. A mulher,
vendo atendido seu pedido, correu com as vizinhas para sua
protetora e, mostrando as diversas feridas do menino a quem
quisesse ver, deu muitas graças a Deus e a Santa Clara.
Uma menina do castelo de Canara sentara-se em pleno dia no
campo com outra mulher, reclinando a cabeça em seu regaço.
Então, um lobo à caça de gente chegou furtivamente à presa. A
menina viu-o, mas achou que era um cão e não se assustou.
Continuou a acariciar os cabelos e a fera truculenta avançou em
cima dela, prendeu-lhe o rosto com suas amplas fauces abertas e
correu com a presa para o mato.
A mulher assustada levantou-se depressa e, lembrando-se de Santa
Clara, começou a gritar: "Socorro, Santa Clara, socorro! Eu lhe
encomendo agora esta menina!". Então, coisa incrível, a que estava
sendo levada nos dentes do lobo increpou-o: "Você ainda vai me
levar, ladrão, depois que me encomendaram a tão santa virgem?".
Confundido, ele a depositou logo suavemente no chão e fugiu, como
um ladrão surpreendido.
A CANONIZAÇÃO DA VIRGEM SANTA CLARA
Quando se espalhou a notícia desses milagres e a fama das virtudes
da santa começou a se propagar cada vez mais amplamente, estava
na Sé de Pedro o clementíssimo príncipe senhor Alexandre IV,
amigo de toda santidade, protetor dos religiosos e firme coluna das
Ordens. Todo o mundo já esperava com grande desejo a
canonização de tão insigne virgem. Por fim, o referido pontífice,
como que levado pelo acúmulo de tantos milagres a uma decisão
insólita, começou a tratar com os cardeais de sua canonização.
Entregou o exame dos milagres a pessoas dignas e discretas,
encarregadas de estudar também sua vida prodigiosa. Viu-se que
Clara tinha sido, em vida, claríssima pela prática de todas as
virtudes e, morta, admirável por milagres autênticos e comprovados.
Num dia marcado, houve uma reunião do colégio dos cardeais, com
a presença de arcebispos e bispos. Apresentou-se uma multidão de
clérigos e religiosos, com a assistência de muitos sábios e
poderosos. O Sumo Pontífice propôs o salutar assunto e pediu a
opinião dos prelados. Todos se demonstraram imediatamente
favoráveis, dizendo que era preciso glorificar na terra Clara, que
Deus havia glorificado nas alturas.
Já perto do dia de sua migração, dois anos depois do seu trânsito, o
feliz Alexandre, a quem Deus reservara essa graça, convocou a
multidão dos prelados e de todo o clero e lhes fez um sermão.
Depois, com a maior afluência de povo, inscreveu reverentemente
Clara no catálogo dos santos e decretou que em toda a Igreja se
celebrasse solenemente a sua festa, que foi o primeiro a celebrar
solenissimamente com toda a Cúria.
E isso teve lugar em Anagni, na igreja maior, no ano de 1255 da
Encarnação do Senhor, primeiro ano do pontificado do senhor
Alexandre. Para louvor de Nosso Senhor Jesus Cristo, que com o
Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.
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