INDICE
PRÓLOGO
CAPITULO 1
Como São Francisco começou a servir a Deus
CAPITULO 2
Os dois primeiros seguidores de Francisco
CAPITULO 3
O primeiro lugar onde moraram
CAPITULO 4
Como admoestou os irmãos e os mandou pelo mundo
CAPITULO 5
Dificuldades que os irmãos encontram durante a sua missão
CAPITULO 6
Vida comum e amor mútuo dos irmãos
CAPITULO 7
Como foram a Roma e o papa lhes aprovou a Regra e lhes deu a faculdade de pregar
CAPITULO 8
Como resolveu que se fizesse capítulo e dos assuntos que nele eram tratados
CAPITULO 9
Como os irmãos foram enviados pelo mundo
CAPITULO 10
Como os cardeais, favoráveis aos frades, começaram a dar-lhes conselhos e ajudá-los
CAPITULO 11
Como a Igreja o protegeu dos perseguidores
CAPITULO 12
Morte de São Francisco, seus milagres e canonização
EPILOGO
PRÓLOGO
1. Sobre o começo ou fundamento da Ordem e sobre os feitos daqueles frades menores que por primeiro entraram nesta religião e foram companheiros do bem-aventurado Francisco.
2. Os servos do Senhor não devem ignorar o comportamento e a doutrina dos santos, para melhor unir-se a Deus. Por isso, em honra de Deus e para a edificação dos leitores e ouvintes, eu - que vi suas obras, ouvi suas palavras e fui discípulo deles - recolhi e conto alguns fatos do nosso bem-aventurado Pai Francisco e de alguns frades vindos no princípio da Ordem; e o faço seguindo a inspiração divina.
CAPITULO 1
Como São Francisco começou a servir a Deus
3. Correndo o ano de 1207 da Encarnação do Senhor, no dia 16 de abril, vendo Deus que seu povo, remido com o sangue precioso de seu Filho unigênito, vivia esquecido de seus mandamentos e ingrato para com os seus benefícios, depois de ter usado de misericórdia para com ele durante longo tempo, "não querendo a morte do pecador, mas que se converta e viva" (Ez 33,11), movido por sua bondade infinita, decidiu enviar operários para a sua messe.
E iluminou um homem da cidade de Assis, chamado Francisco, negociante de profissão, grande esbanjador das riquezas mundanas.
4. Certo dia estava ele na loja, onde costumava vender panos, totalmente absorvido em pensamentos de negócios, quando apareceu um pobre pedindo esmola por amor de Deus. Francisco, imerso em seus sonhos de riqueza, mandou-o embora sem dar-lhe nada.
Enquanto o mendigo se afastava, o jovem, tocado pela graça divina, começou a reprovar sua própria grosseria, dizendo: "Se aquele pobre te houvesse pedido uma contribuição em nome de algum conde ou grande barão, decerto que o terias atendido. Quanto mais o devias ter feito, tendo ele pedido em nome do Rei dos reis e Senhor do universo!"
E por este motivo propôs, em seu íntimo, não recusar mais nada, daí em diante, de tudo que lhe fosse pedido em nome do Senhor. E fazendo voltar o pobre, deu-lhe uma generosa esmola.
Ó coração cheio de toda graça, fecundo e iluminado! Ó firme e santo propósito, que traz consigo uma admirável, inesperada, extraordinária iluminação do futuro! Nem é para se admirar, pois o Espírito Santo diz pela boca de Isaías: "Se repartires teu pão com o esfaimado e saciares aquele que tem fome, tua luz brilhará na escuridão e tuas trevas serão como o meio-dia. Se repartires teu pão com o faminto, tua luz surgirá como a aurora e tua justiça caminhará diante de ti" (Is 58,7-8).
5. A este homem santo aconteceu pouco depois um fato notável, que é necessário lembrar. Certa noite, enquanto dormia em seu leito, apareceu-lhe uma pessoa que o chamou pelo nome e o levou a um palácio de extraordinário esplendor e beleza, cheio de armas e com escudos esplêndidos, marcados com uma cruz, pendurados na parede por todos os lados.
Perguntou ao guia para saber de quem eram aquelas armaduras tão brilhantes e aquele palácio tão agradável. "Tudo isso, inclusive o palácio - respondeu-lhe o acompanhante - é teu e de teus cavaleiros".
Quando acordou, começou a interpretar o sonho em sentido mundano, como quem ainda não tinha experimentado plenamente o espírito de Deus, e imaginava que se tornaria um príncipe magnífico. E pensando nisso, resolveu fazer-se cavaleiro para conquistar tal principado. Por isso resolveu juntar-se ao conde Gentil, que partia para a Apúlia, onde seria armado cavaleiro por ele. Para esse fim preparou uma bagagem de vestes preciosas.
Tornou-se, por isso, mais alegre ainda do que de costume e encantava a todos. A quem lhe perguntava pelo motivo desta súbita felicidade, respondia: "Sei que me tornarei um grande príncipe".
6. Pegou um escudeiro e saiu a cavalo, dirigindo-se à Apúlia. Perto de Espoleto, preocupado com a viagem, quando anoiteceu parou para dormir. Ao adormecer ouviu uma voz que lhe perguntou para onde estava indo. Ele explicou, por ordem, todo o seu plano.
Então a voz lhe disse: "Quem te pode ser melhor, o senhor ou o escravo?" Ele responde: "O senhor". A voz lhe replicou: "E então, por que abandonas o Senhor pelo escravo; o Príncipe pelo empregado?" Francisco responde: "Sc-nhor, que queres que eu faça?" A voz tornou: "Volta para a tua cidade, para fazer o que o Senhor te vai revelar".
Por graça divina sentiu-se de repente mudado, assim lhe parecia, num outro homem.
7. Na manhã seguinte iniciou o caminho de volta, conforme lhe tinha sido ordenado. Chegando a Foligno vendeu o seu cavalo e os trajes que havia vestido quando se dirigiu à Apúlia; vestiu-se mais pobremente e reiniciou a viagem, levando consigo o dinheiro que conseguira com a venda. Nas vizinhanças de Assis parou numa igreja, construída em honra de São Damião, e encontrou um sacerdote pobre que ali morava, chamado Pedro; a ele confiou o dinheiro, para que o guardasse. Mas o padre se recusou a isso, por não ter lugar seguro para guardá-lo. Francisco jogou então, com desprezo a bolsa por uma janela daquela igreja.
Movido por inspiração divina, vendo que aquela pobre igrejinha ameaçava ruína, propôs restaurá-la com aquele dinheiro e fixar ali a sua residência. Por convite de Deus, pôs tal propósito imediatamente em execução.
8. Sabendo disso, o pai, que o amava a seu modo e queria de todo jeito reaver o dinheiro, tomou-o consigo e, cobrindo Francisco de impropérios, exigia o dinheiro de volta.
Na presença do bispo de Assis, alegremente, deu ao pai o dinheiro e a própria roupa que usava, ficando nu; o bispo o abraçou e cobriu com seu manto.
Daí em diante, privado de tudo, enfiou um traje miserável, andou pelos arredores de São Damião, com a intenção de lá ficar. O Senhor enriqueceu este jovem. pobre e desprezado, enchendo-o do Espírito Santo e colocando-lhe na boca a palavra de vida, para que pregasse e anunciasse ao povo o juízo e a misericórdia, o castigo e a glória, recordando-lhes os mandamentos de Deus, que tinham esquecido. "Deus o constituiu príncipe de uma multidão" (Gn 17,4), para que a reunisse em unidade por todo o mundo.
O Senhor o conduziu pelo caminho estreito e certo pois não quis possuir ouro nem prata, nem dinheiro nem coisa nenhuma, mas em humildade, pobreza e simplicidade de coração seguia o Senhor.
9. Andava de pé descalço, com um hábito muito pobre, cingindo os flancos com um cinto.
Em qualquer lugar em que o pai o encontrasse, esmagado pela dor, o amaldiçoava. Mas Francisco se aproximava de um velho mendigo, chamado Alberto, pedindo-lhe que o abençoasse. Muitos outros zombavam dele coin palavras ofensivas; quase todos achavam que ele tinha enlouquecido. Mas ele mesmo não se preocupava com isso; e, principalmente, não dava resposta a ninguém; só se preocupava em seguir o que Deus lhe indicava. "Não se apoiava em eloqüência persuasiva, de sabedoria humana, mas na manifestação e no poder do Espírito" (1Cor 2,4).
CAPITULO 2
Os dois primeiros seguidores de Francisco
10. Vendo e ouvindo isto, dois homens de Assis, inspirados pela graça divina, aproximaram-se humildemente dele. Um deles era Frei Bernardo, o outro Frei Pedro. E disseram-lhe com simplicidade: "De agora em diante queremos ficar contigo e fazer o que fazes. Explica-nos o que devemos fazer com nossos haveres". Francisco, exultando pela chegada deles e pelo desejo que tinham, respondeu carinhosamente: "Vamos pedir conselho ao Senhor".
Dirigiram-se a uma igreja da cidade, entraram e se ajoelharam para rezar: "Senhor Deus, Pai da glória, nós vos suplicamos que em vossa misericórdia, nos mostreis o que devemos fazer". Terminada a oração, disseram ao sacerdote da dita igreja, que estava presente: "Padre, mostra-nos o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo".
11. Tendo o sacerdote aberto o livro, visto não serem eles ainda muito práticos na leitura, encontraram logo esta passagem: "Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu" (Mt 19,21). Virando outras páginas, leram: "Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me" (Mt 16,24). E voltando mais outras páginas: "Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bastão, nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas" (Lc 9,3).
Ouvindo estas palavras, ficaram cheios de viva alegria e disseram: "Eis aí o que mais queríamos, eis aí o que procurávamos". E o bem-aventurado Francisco disse: "Esta será nossa Regra". E acrescentou, voltando-se para os dois: "Ide pôr em prática o conselho que ouvistes do Senhor".
Frei Bernardo afastou-se e, sendo rico, apressou-se em vender tudo que possuía recebendo muito dinheiro. Frei Pedro era pobre de bens terrenos, mas já era rico em bens espirituais. Também ele fez como lhe fora aconselhado. Em seguida ajuntaram os pobres da cidade para distribuir entre eles o dinheiro arrecadado com a venda de suas propriedades.
12. Estavam fazendo isso, e Francisco estava com eles, quando veio um sacerdote chamado Silvestre, de quem o bem-aventurado Francisco tinha adquirido pedras para restaurar a igreja de São Damião, perto da qual morava antes de ter companheiros.
Vendo distribuir tanto dinheiro, aquele padre, ardendo em grande avareza, desejava receber também ele um punhado de moedas, e reclamava: "Francisco, não me pagaste inteiramente as pedras que te forneci".
Ouvindo o santo esta repreensão injusta, ele que estava livre de qualquer avareza, aproximou-se de Frei Bernardo e. passando a mão no manto dele, onde estava o dinheiro, encheu-a e deu-a ao sacerdote. Pegou ainda uma segunda mão cheia e a deu a Silvestre, dizendo-lhe: "A dívida está totalmente paga?" "Totalmente", respondeu ele, voltando todo satisfeito para a sua casa.
13. Poucos dias depois Silvestre, inspirado pelo Senhor, refletindo sobre o gesto do bem-aventurado Francisco, dizia: "Sou mesmo um desgraçado! Velho como sou, eis-me preso ao dinheiro e furiosamente à busca dele, enquanto aquele jovem o despreza e aborrece por amor de Deus".
Na noite seguinte viu, em sonho, uma cruz enorme, que com a ponta tocava o céu e sua base saía da boca do bem-aventurado Francisco; e os braços da cruz se estendiam de uma extremidade do mundo até a outra.
Ao acordar compreendeu que Francisco era de fato amigo de Deus e que o seu movimento religioso se estenderia ao mundo inteiro. Começou assim a temer a Deus e a fazer penitência em sua casa. E pouco tempo mais tarde entrou na Ordem, onde levou uma vida de santidade e morreu gloriosamente.
CAPITULO 3
O primeiro lugar onde moraram
14. Frei Bernardo e Frei Pedro, tendo vendido seus bens e distribuído o fruto aos pobres, como já contamos, vestiram-se ao modo de Francisco e se uniram a ele.
Não tendo casa que os abrigasse, puseram-se a caminho e encontraram uma igreja pobrezinha e quase abandonada: Santa Maria da Porciúncula. Construíram ali uma cabana e moraram juntos.
Oito dias depois, um homem de Assis, Egídio, cheio de fé e devoção e a quem o Senhor deu graças especiais, chegou ali. De joelhos, com grande devoção e reverência, pediu a Francisco que o recebesse em seu grupo. E o santo, feliz em ver aquela cena e ouvir aquelas palavras, o acolheu com alegria. Os quatro sentiram-se invadidos por uma extraordinária alegria espiritual.
15. Em seguida Francisco levou Frei Egídio consigo e o conduziu até a Marca de Ancona. Os outros dois ficaram na Porciúncula. Durante a viagem exultaram ardentemente no Senhor, enquanto Francisco cantava em francês, Louvando e bendizendo o Senhor com voz claríssima.
Estavam tão alegres como se tivessem descoberto um grande tesouro. Nada mais natural do que esse seu contentamento; de fato tinham abandonado todos os seus haveres e consideravam como lixo aquelas coisas que justamente atormentavam os homens; e pensavam nas amarguras que os mundanos sofrem nos seus prazeres, que escondem tantas misérias e tristezas.
Francisco disse ao seu companheiro Egídio: "Nosso movimento religioso é comparável ao pescador, que lança sua rede na água, pegando uma grande quantidade de peixes; reserva para si os maiores, os menores joga de novo na água". Egídio estava admirado com aquela profecia, sabendo bem que o número dos irmãos era reduzido.
Francisco ainda não pregava ao povo de Deus. Mas quando passava pelas cidades e castelos exortava os homens e as mulheres a temer e amar o Criador do céu e da terra, e a fazer penitência de seus pecados. Egídio limitava-se a comentar: "Ele fala muito certo; crede nele".
16. Os ouvintes se perguntavam: "Quem são esses dois e o que estão dizendo?"
Alguns respondiam que eram tipos exaltados ou embriagados. Outros, ao contrario, sustentavam: "Mas o que eles estão dizendo não é linguajar de loucos". E alguém observou: "Com sede de perfeição profunda seguem o Senhor ou perderam a cabeça. Não estão vendo a vida desesperada que levam? Andam de pé descalço, vestidos com hábitos grosseiros, não comem quase nada".
E naquele tempo ninguém os seguia. As mulheres e as moças, vendo-os ao longe, fugiam imediatamente, como de loucos. Mas, mesmo que não os seguissem, todos ficavam edificados ao vê-los em seu modo santo de viver.
Depois de ter percorrido aquela região, voltaram ao citado lugar de Santa Maria dos Anjos.
17. Depois de poucos dias, vieram outros três assisienses: Sabatino, João e Mórico, o Pequeno; suplicaram humildemente a Francisco que os recebesse entre os seus amigos. E ele os acolheu, benévola e alegremente.
Quando iam pela cidade para pedir esmola, ninguém lhes queria dar, mas os maltratavam, dizendo: "Como? Jogastes fora o dinheiro, e agora quereis viver às custas dos outros?" E assim passavam um aperto extremo. Pais e parentes os perseguiam; os outros, pequenos e grandes, homens e mulheres, desprezavam-nos e riam-se deles como se fossem doidos. Só o bispo da cidade fazia exceção, e Francisco o procurava muitas vezes para pedir conselho.
Este era o motivo da perseguição dos pais e parentes e das zombarias: naquele tempo não se via ninguém que abandonasse seus bens e fosse pedir esmola de porta em porta.
Certa vez, quando Francisco foi procurar o bispo, este disse-lhe: "Vossa vida me parece dura e áspera demais, por não possuirdes nada neste mundo". O santo respondeu-lhe: "Senhor, se tivéssemos posses, para protegê-las precisaríamos de armas, pois é por causa das propriedades que surgem questões e litígios, e de tal modo que o amor de Deus e do próximo fica impedido. Por esta razão decidimos não possuir nada".
Esta resposta agradou ao bispo.
CAPITULO 4
Como admoestou os irmãos e os mandou pelo mundo
18. Francisco, cheio de graça do Espírito Santo, predisse o que aconteceria aos seus amigos. Chamou para perto de si estes seis frades que tinha e, na floresta que rodeava a Porciúncula (ia freqüentemente rezar naquela igreja), disse-lhes: "Caríssimos irmãos, consideremos a nossa vocação: Deus misericordioso não nos chamou apenas para o nosso proveito, mas também para o proveito e a salvação de muitos. Portanto, andemos pelo mundo exortando e instruindo homens e mulheres com a palavra e com o exemplo, para que façam penitência de seus pecados e se lembrem dos mandamentos do Senhor, que já por longo tempo esqueceram".
E disse mais: "Pequeno rebanho, não tenhais medo (Lc 12,32), mas tende confiança em Deus. Não digais: ‘Somos homens rudes e sem instrução: como faremos para pregar?’ Em vez disso, lembrai-vos das palavras que Jesus dirigiu a seus discípulos: ‘Não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai falará em vós’ (Mt 10,20). O próprio Senhor vos comunicará espírito e sabedoria para exortar e mostrar aos homens e mulheres o caminho e as ações dos seus preceitos. Encontrareis fiéis mansos, humildes e benévolos, que vos receberão com alegria e amor. Outros encontrareis que não crêem, soberbos e blasfemadores, que se oporão a vós, injuriando-vos a vós e a vossas palavras. Por isso, preparai-vos para suportar tudo com paciência e humildade".
Quando ouviram estas palavras, os irmãos ficaram com medo. Vendo a apreensão deles, Francisco acrescentou: "Não tenhais medo! Sabei que dentro de não muito tempo virão ter conosco muitos sábios, prudentes e nobres, e ficarão junto conosco. Pregarão às multidões e aos povos, aos reis e aos príncipes, e muitos se converterão ao Senhor. E o Senhor multiplicará sua família pelo mundo inteiro".
Dito isso, deu-lhes a bênção e eles partiram.
CAPITULO 5
Dificuldades que os irmãos encontram durante a sua missão
19. Durante a viagem, onde os devotos servos do Senhor encontrassem uma igreja, usada ou abandonada, ou mesmo uma cruz à beira da estrada, paravam para recitar com fervor esta oração: "Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos, aqui e em todas as igrejas do mundo, porque por vossa santa cruz remisses o mundo". E ali tinham fé no Senhor e sentiam sua presença.
Quem os visse maravilhava-se: "Nunca vimos religiosos vestidos desta maneira". Sendo diferentes, pelo traje e pela vida, de todos os outros, pareciam homens vindos do mato. Entrando numa cidade, num castelo numa casa, anunciavam a paz. Em qualquer parte em que se encontravam com homens e mulheres, fosse pelo caminho ou fosse nas praças, admoestavam-nos a temer e amar o Criador do céu e da terra, a lembrar-se dos seus mandamentos caídos no esquecimento e a esforçar-se para pô-los em prática.
Alguns ouviam com simpatia e contentamento; havia outros, ao contrário, que zombavam deles. Alguns enchiam-nos com perguntas, e era cansativo submeter-se a todos aqueles interrogatórios. Quando há novidades, naturalmente surgem as curiosidades. Diziam: "De onde sois?" Ou então: "A que Ordem pertenceis?" E eles respondiam com simplicidade: "Somos penitentes e viemos da cidade de Assis". A religião dos irmãos, na verdade, ainda não era chamada de Ordem.
20. Muitos, ao vê-los e ouvi-los, achavam que eles eram uns impostores ou loucos. Alguns acrescentavam: "Não quero recebê-los em casa, porque são capazes de roubar minhas coisas". Com essas suspeitas, em alguns lugares, atacavam-nos com injúrias. Por isso paravam mais vezes nos pórticos das igrejas ou nas casas anexas.
Dois frades, chegados a Florença, iam pela cidade procurando alguém que lhes desse hospedagem, e não conseguiam encontrar ninguém. Chegados a uma casa, que tinha na frente um alpendre com o forno, disseram um ao outro: "Podemos ficar aqui". Pediram à dona da casa para recebê-los; mas tendo ela recusado imediatamente, pediram-lhe permissão para ao menos ficar perto do forno.
E a dona consentiu. Mas quando o marido dela chegou e descobriu os dois ao lado do forno, se queixou: "Por que deste hospedagem a esses malandros?" Ela respondeu: "Não quis alojá-los dentro de casa, mas permiti que ficassem no alpendre: quando muito poderão roubar um pouco de lenha". Por causa da desconfiança, não lhes deram nada para cobrir-se, embora fizesse muito frio.
Durante a noite os dois se levantaram para ir rezar Matinas, dirigindo-se à igreja mais próxima.
21. Ao raiar do dia aquela senhora foi à igreja para ouvir missa, e viu-os mergulhados na oração, devotos e humildes. Disse então consigo mesma: "Se esses homens fossem malandros, como pensou meu marido, não rezariam com tanta devoção".
E eis que um certo Guido andava pela igreja, oferecendo esmolas aos pobres ali presentes. Chegando junto dos frades, queria dar um dinheiro a cada um deles, mas não o aceitaram. Então ele disse: "Mas por que não aceitais as moedas, como os outros pobres, vós que tendes tanta necessidade?" Um deles, Bernardo, respondeu: "De fato somos pobres, mas é uma pobreza que não pesa, pois foi espontaneamente que nos fizemos pobres, pela graça de Deus e para seguir o seu conselho".
22. Todo admirado, Guido perguntou se tinham tido alguma propriedade. Responderam que sim, que tinham possuído bens, mas os haviam distribuído aos pobres, por amor a Deus.
Também aquela senhora vendo-os recusar o dinheiro, chegou perto e disse: "Cristãos, se quiserdes voltar à minha casa, dar-vos-ei hospedagem com muita alegria". Responderam gentilmente: "O Senhor vos pague!" Mas Guido levou-os à casa dele e disse: "Eis a morada que Deus vos preparou! Ficai aqui à vontade". Os dois agradeceram a Deus, que fora misericordioso para com eles e ouvira a oração de seus pobrezinhos. Ficaram ali por alguns dias. E Guido, tocado por suas palavras e pelo bom exemplo, fez depois generosos donativos aos pobres.
23. Apesar de este homem tratá-los com tanta benevolência, pelo povo eram geralmente considerados, ao contrário, como mendigos; e todos, pequenos e grandes, ridicularizavam-nos, com palavras e ações, como fazem os donos com seus escravos. Até a roupa deles arrancavam, por mais esfarrapada e gasta que fosse. Ficando nus, sem um trapo sequer, observavam o conselho do Evangelho de não exigir de volta o que fosse tirado. Mas se por compaixão lhes restituíam a túnica, retomavam-na com gratidão.
Alguns jogavam lama na cabeça deles, outros colocavam dados nas mãos deles, convidando-os para jogar. Um outro pôs um frade nas costas, segurando-o pelo capuz, e pulou com ele até enjoar. Estes e outros maus tratos faziam com eles; mas não podemos contá-los todos para não nos alongarmos demais. Eram considerados como pobres diabos, e até pior, tratavam-nos como se fossem malfeitores; isso tudo sem falar no que sofriam pela fome e sede, pelo frio e pela falta de roupas suficientes.
Mas sofriam tudo com coragem e paciência, conforme Francisco lhes tinha ensinado. Não se deixavam dominar pela tristeza, não ficavam contrariados, mas como homens empenhados em grandes lucros, exultavam nas tribulações e se alegravam, orando sinceramente a Deus por seus perseguidores.
24. O povo, vendo-os serenos em meio aos sofrimentos aceitos pacientemente pelo Senhor, e sempre esforçados para rezar com devoção, recusando receber e ter consigo dinheiro, como o faziam os outros pobres, e eles querendo bem um ao outro, sinal de que eram discípulos de Cristo: muitos ficaram comovidos e arrependidos, e foram pedir-lhes desculpas pelos maus tratos. Os frades perdoavam de coração, respondendo com alegria: "O Senhor vos perdoe!" E assim ficavam ali de bom grado para ouvir.
Alguns até acabavam pedindo para sempre recebidos em seu grupo; e de fato aceitaram alguns deles. Naquele tempo, sendo os irmãos muito poucos, Francisco lhes permitia receber aqueles que lhes parecessem recomendáveis. Na data marcada retomaram a Santa Maria da Porciúncula.
CAPITULO 6
Vida comum e amor mútuo dos irmãos
25. Quando se reviam, ficavam tão inundados de contentamento e alegria espiritual, que não se lembravam mais das adversidades sofridas nem se preocupavam com a sua dura pobreza.
Cada dia eram solícitos na oração e no trabalho com as próprias mãos, para evitar toda forma de ociosidade, inimiga da alma. De noite se levantavam, conforme a expressão do salmista: "Em meio à noite, levanto-me para louvar o Senhor" (Sl 118,62), e se entregavam devotamente à oração comovendo-se até às lágrimas.
Queriam-se bem um ao outro, com afeto profundo, prestavam-se serviços e procuravam alimentar-se com o mesmo amor com que uma mãe ama e nutre seus próprios filhos. O fogo da caridade era tão intenso neles, que teriam de bom grado dado a vida um pelo outro, da mesma forma como a teriam dado pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
26. Certo dia, quando dois irmãos caminhavam por uma estrada, encontraram um louco que jogou pedras contra eles. Um deles, vendo chover pedras sobre seu companheiro, colocou-se à frente, preferindo ser atingido em vez de seu querido irmão. Cenas desta espécie aconteciam mais vezes.
Transformados pela caridade e pela humildade, cada um reverenciava o outro como faz um empregado com seu patrão. E aquele que, ou por seu cargo ou pelos dons da graça, fosse superior aos outros, mantinha-se mais baixo e vil do que os outros.
Estavam sempre prontos a obedecer: mal se abria a boca para dar uma ordem, os pés já se movimentavam para andar e as mãos já estavam preparadas para trabalhar. Qualquer coisa que se lhes mandasse, acolhiam-na como se fosse vontade do Senhor; e por isso era-lhes agradável e fácil executar as ordens.
Abstinham-se dos desejos egoísticos e, para não serem julgados, julgavam-se bem severamente a si mesmos.
27. Se por acaso um deles pronunciasse uma palavra que desagradava ao outro, sentia tal remorso que não ficava em paz enquanto não fosse pedir desculpas. Prostrava-se por terra e pedia que o irmão colocasse o pé em sua boca, mesmo que aquele relutasse em fazê-lo. Se não quisesse fazer uma coisa dessas de jeito nenhum, se o ofensor era o prelado, dava-lhe ordem para fazê-lo, caso contrário, pedia a ordem ao superior. Esforçavam-se para afastar de si toda sombra de mau humor, para que a perfeita caridade recíproca não fosse afetada. Assim se esforçavam para opor aos diferentes vícios as virtudes correspondentes.
Qualquer coisa que tivessem, fosse um livro, fosse uma túnica, estava à disposição de todos, e "ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía" (At 4,32), exatamente como se fazia na Igreja primitiva dos Apóstolos. O que tinham muito realmente era a pobreza; mas assim mesmo mostravam-se sempre generosos, e por amor de Deus tomavam parte nas esmolas recebidas por qualquer um deles que as pedisse.
28. Andando pela estrada, quando encontravam pobres pedindo esmola, não tendo nada para dar, davam parte de sua própria roupa. Um deles soltou o capuz da túnica e o deu e um mendigo; outros davam um pedaço da túnica, para observar a palavra do Evangelho: "Dá a todo que te pedir" (Lc 6,30).
Certa vez, na igreja da Porciúncula, onde eles moravam, apareceu um pobre pedindo esmola. Estava ali um manto, que tinha sido de um deles enquanto ainda estava no mundo. Francisco disse-lhe que o desse ao mendigo, e o irmão deu-o de bom grado e prontamente. E. de repente, pela bondade gentil demonstrada, pareceu ao frade que a esmola subisse ao céu, e sentiu-se invadido por um espírito novo.
29. Se pessoas ricas desse mundo os procuravam, recebiam-nas com alegria e benevolência, e as convidavam a afastar-se do mal e fazer penitência.
Os frades pediam com insistência para que não fossem mandados aos lugares onde tinham nascido, para fugir da companhia e familiaridade dos parentes, conforme está escrito: "Tornei-me um estranho para meus irmãos, um desconhecido para os filhos de minha mãe" (Sl 68,9).
Sentiam-se felizes por serem pobres, pois só buscavam as riquezas eternas. Não possuíam ouro nem prata, e mesmo que recusassem qualquer espécie de riqueza deste mundo, rejeitavam de modo particular e calcavam aos pés o dinheiro.
30. Uma outra vez, sempre enquanto moravam perto da Porciúncula, chegaram para lá umas pessoas e, às escondidas dos frades, colocaram dinheiro sobre o altar. Um frade entrou na igreja, viu as moedas e foi colocá-las no parapeito de uma janela. Mas um outro pegou-as ali e foi levá-las a Francisco.
Então Francisco quis saber quem colocara aquele dinheiro no parapeito da janela. Encontrou-o, pediu que viesse ter com ele e lhe disse: "Por que fizeste isso? Não sabias que eu não só não quero que os frades usem dinheiro, mas que nem mesmo toquem nele?" Ouvindo isso o frade abaixou a cabeça, pôs-se de joelhos, confessou a sua culpa e pediu que lhe impusesse a penitência. O santo deu-lhe por penitência que levasse aquelas moedas para fora da igreja com a boca e fosse jogá-las em cima de um esterco de burro. E o frade cumpriu com diligência a ordem recebida. Francisco ensinou então aos irmãos que, em qualquer lugar que encontrassem dinheiro, o deixassem como coisa desprezível.
Estavam sempre cheios de alegria, porque não tinham nada que os pudesse inquietar. Na verdade, quanto mais estavam separados do mundo, tanto mais ficavam unidos a Deus.
Ao entrarem no caminho estreito e áspero, quebraram as pedras, esmagaram os espinhos: e assim, graças ao seu exemplo, tornaram o caminho mais fácil para nós seguidores.
CAPITULO 7
Como foram a Roma e o papa lhes aprovou a Regra
e lhes deu a faculdade de pregar
31. Vendo Francisco como a graça do Salvador os fazia crescer em número e em méritos, disse-lhes: "Irmãos, vejo que o Senhor quer transformar a nossa família numa grande comunidade. Por isso vamos procurar a nossa mãe, a Igreja Romana, e vamos contar ao Sumo Pontífice as coisas que o Senhor está fazendo por nosso intermédio e conforme a vontade e a ordem do papa cumpramos a nossa missão". Essas palavras agradaram a eles, e Francisco, tomando consigo os doze irmãos, se pôs a caminho de Roma.
Durante a viagem disse: "Vamos fazer um de nós o nosso guia e considerá-lo como vigário de Jesus Cristo. Para onde ele for, vamos segui-lo; e quando ele quiser fazer uma parada, vamos parar". Elegeram então Frei Bernardo, o primeiro discípulo de Francisco, e obedeciam a tudo que ele dizia.
Andavam com muita alegria, conversando sobre as palavras do Senhor. Da boca deles só saíam palavras em louvor e glória do Senhor e para a utilidade de suas almas; ou então rezavam. E o Senhor lhes dava, em tempo oportuno, o alimento e hospedagem.
32. Quando chegaram a Roma, encontraram o bispo de Assis, que naqueles dias estava por lá. Ao vê-los acolheu-os com grande alegria.
O bispo era conhecido do Cardeal João de São Paulo, homem bom e religioso, que amava os servos do Senhor. A ele o bispo já falara sobre o projeto e a vida de Francisco e de seus frades. Com estas informações, o cardeal tinha um grande desejo de encontrar Francisco e alguns de seus irmãos. Sabendo que estavam na cidade, mandou chamá-los e os recebeu com devoção e amor.
33. Nos poucos dias que ficaram com ele, começou a gostar mais ainda deles, vendo brilhar na vida deles aquilo de que ouvira falar. Voltou-se a Francisco e disse: "Recomendo-me às vossas orações e quero que de agora em diante me considereis um de vós. Dizei-me agora por que viestes aqui". Então Francisco expôs-lhe inteiramente o seu propósito, e que queria falar ao Senhor Apostólico, para prosseguir o seu modo de vida segundo o querer e mandamento dele. O cardeal respondeu: "Pois bem, quero ser vosso procurador na Cúria, junto do Senhor Papa".
Chegando à Cúria, disse ao Papa Inocêncio III: "Encontrei um homem perfeitíssimo, que quer viver segundo a forma do santo Evangelho, observando-o plenamente. Creio que o Senhor queira, por meio dele, renovar completamente a Igreja no mundo". Ouvindo isso, o papa ficou maravilhado e disse: "Trazei-me esse homem aqui".
34. No dia seguinte acompanhou-o até a presença do papa. Francisco explicou sinceramente o seu ideal ao papa, como já o havia feito ao cardeal.
O papa respondeu: "Vosso projeto de vida, que pretendeis viver numa congregação que pretendeis formar, é de uma vida dura e áspera, pois propondes não possuir nada neste mundo. De onde tirareis o necessário?" E Francisco respondeu: "Senhor, eu confio em meu Senhor Jesus Cristo, que prometendo dar-nos no céu vida e glória, na terra não nos privará do necessário ao corpo". Concluiu o papa: "Filho, o que dizes é verdade; mas a natureza humana é fraca e nunca permanece no mesmo estado. Por isso vai e reza a Deus com todo o coração, para que se digne mostrar o que é melhor e mais útil à vossa alma. Depois volta e me conta tudo: e eu te concederei tudo".
35. Francisco foi rezar; orou a Deus com pureza de coração, para que em sua piedade inefável lhe desse um sinal. E, perseverando na oração com a alma absorta em Deus, o Senhor lhe falou assim: "No reino de um grande soberano havia uma senhora muito pobre mas bela, que agradou aos olhos do rei e deu-lhe numerosos filhos. Um dia a senhora começou a refletir e dizia consigo mesma: "O que farei, eu pobrezinha, que tenho tantos filhos, mas não tenho nada de que possam viver?’ Enquanto estava nestes pensamentos, que davam um aspecto triste ao seu rosto, eis que o rei chega e lhe pergunta: ‘Que tens, pois te vejo preocupada, e triste?’ Ela lhe comunicou as apreensões que a agitavam. Mas o rei a confortou: ‘Não tenhas medo por causa da tua grande pobreza e nem te deixes levar pela angústia por causa dos filhos que tens e daqueles que ainda virão, pois se muitos dependentes têm abundância de alimento em meu palácio, certamente não quererei que meus próprios filhos morram de fome: com esses serei mais generoso ainda"’.
Francisco, o homem de Deus, compreendeu logo que aquela senhora pobre representava ele mesmo. E isso tomou mais forte ainda o seu propósito de observar, mesmo em comum, a santíssima pobreza.
36. E levantando-se foi imediatamente ao Senhor Apostólico, para explicar-lhe o que Deus lhe tinha revelado.
Escutando aquela parábola, o papa ficou cheio de admiração, por ter o Senhor revelado sua vontade a um homem tão simples. E soube que ele "não caminhava na sabedoria dos homens, mas na luz e na força do Espírito" (1Cor 2,4).
Em seguida o bem-aventurado Francisco inclinou-se e prometeu ao Senhor Papa obediência e reverência com humildade e devoção. Em volta dele os outros irmãos, que ainda não tinham prometido obediência, por ordem do papa prometeram, do mesmo modo, obediência e reverência a Francisco.
E o Senhor Papa aprovou a Regra para ele e seus irmãos presentes e futuros. Deu-lhe também autorização para pregar em qualquer lugar, conforme a graça dada pelo Espírito Santo; autorizou também os outros irmãos a pregarem, a quem o bem-aventurado Francisco quisesse conceder o ministério da pregação.
Daí em diante Francisco começou a pregar pelas cidades e castelos, como o Espírito do Senhor lhe revelava. O Senhor colocou em sua boca palavras santas, melífluas e dulcíssimas de modo que ninguém, ouvindo-o, teria jamais parado de saciar-se com elas.
O Cardeal João, pela devoção que nutria para com Francisco, fez tonsurar os doze frades.
Em seguida Francisco ordenou que duas vezes por ano houvesse capítulo, em Pentecostes e na festa de São Miguel, no mês de setembro.
CAPITULO 8
Como resolveu que se fizesse capítulo
e dos assuntos que nele eram tratados
37. No dia de Pentecostes todos os frades se reuniam em capítulo perto da igreja de Santa Maria da Porciúncula. Ali se tratava de como observar melhor a Regra. Eram indicados os frades que iriam pregar nas diversas províncias e quais se deviam destinar para tal região.
Francisco dirigia admoestações aos presentes, repreensões e preceitos, conforme lhe parecia oportuno, depois de ter consultado o Senhor. E tudo que dizia em palavras, antes de tudo ele mesmo o cumpria e o fazia ver com solicitude afetuosa.
Venerava os prelados e sacerdotes da santa Igreja. Reverenciava os velhos, honrava os nobres e os ricos; mas no seu íntimo amava mais os pobres e participava do sofrimento deles; e, além disso, mostrava-se submisso a todos.
Embora fosse o mais elevado de todos, assim mesmo nomeava como seu guardião e senhor a um dos irmãos que moravam com ele, e lhe obedecia com humildade e devoção, para evitar toda ocasião de orgulho. O santo, no meio dos homens, baixava a cabeça até a terra, e por isso Deus o exaltou no céu entre os seus eleitos.
Exortava os frades a observarem com todo cuidado o Evangelho e a Regra, como tinham prometido; admoestava-os, sobretudo, a serem respeitosos para com os ministérios e as leis da Igreja, a ouvirem com amor e devoção a missa, a guardarem e adorarem com fé o corpo. de Nosso Senhor Jesus Cristo, a honrarem os sacerdotes que celebram estes adoráveis e grandes sacramentos, e em qualquer lugar que se encontrassem com um deles, inclinassem a cabeça e lhe beijassem a mão; e quando o encontrassem andando a cavalo, fizessem reverência e, não contentes em lhe beijar a mão, beijassem até o rasto de seu cavalo, em sinal de veneração por seu poder sagrado.
38. Exortava-os a não julgar nem desprezar a nenhuma pessoa, nem mesmo aqueles que bebem, comem e vestem-se com luxo, como também está escrito na Regra. "Vede, dizia, Nosso Senhor é também Senhor deles; e se chamou a nós, pode muito bem chamar também a eles; e se justificou a nós, pode também justificar a eles".
E acrescentou: "Quero respeitar a todos como meus irmãos e senhores. São meus irmãos, porque têm todos um único Criador; são meus senhores porque nos ajudam a fazer penitência, dando-nos as coisas necessárias ao corpo". E dizia mais: "Tal seja vosso comportamento no meio do povo que, em qualquer lugar que vos vejam ou escutem, tenham motivo para glorificar e louvar o nosso Pai celeste".
Tinha um desejo ardente de realizar sempre, ele e seus irmãos, ações que fossem para louvar o Senhor. Dizia: "Assim como anunciais a paz com a boca, tende sempre a paz no coração, de modo que nunca provoqueis alguém à ira e escândalo; assim, por meio de vossa paz e mansidão, todos sejam chamados à paz e à bondade. Nós somos chamados para esta missão: socorrer os feridos, curar os fracos, chamar ao bom caminho os que erram. Muitos parecem ser seguidores do diabo, mas, em vez disso, tomar-se-ão discípulos de Cristo".
39. Repreendia-lhes a excessiva dureza com que tratavam o corpo. Naqueles tempos os frades se entregavam perdidamente aos jejuns, às vigílias, trabalho, para reprimir inteiramente os incentivos da sensualidade. De tal modo maltratavam a si mesmos, que parecia terem ódio contra si mesmos. Mas ouvindo e vendo esses exageros, Francisco os repreendia, como já dissemos, e mandava que se moderassem. E era tão cheio da graça e sabedoria do Salvador, que fazia a admoestação benevolamente; a repreensão, com bom senso; a imposição, com doçura.
Entre os irmãos reunidos em capítulo, ninguém discutia problemas deste mundo; entre si só falavam das vidas dos Santos Padres, ou da perfeição de qualquer frade, ou como poderiam melhor tornar-se gratos ao Senhor.
Se algum deles sofria tentações ou tribulações, ao ouvir Francisco falar com tanto fervor e doçura, e olhando a pessoa dele, as tentações desapareciam. Falava-lhes com participação calorosa, não como juiz, mas como um pai aos filhos ou como um médico ao doente, de maneira que revivia o sentimento de São Paulo: "Quem é fraco, que eu também não seja fraco? Quem tropeça, que eu não me consuma em febre?" (2Cor 11,29).
CAPITULO 9
Como os irmãos foram enviados pelo mundo
40. Terminado o capítulo, Francisco abençoava todos os irmãos presentes e. como lhe parecia melhor, enviava-os pelas várias províncias. A todos aqueles que possuíam o espírito de Deus e tinham capacidade para falar, fossem clérigos ou leigos, dava licença e obediência para pregar. E estes recebiam a sua bênção com grande alegria e contentamento no Senhor Jesus Cristo. Andavam pelos caminhos do mundo como estrangeiros e peregrinos, não carregando nada consigo, além dos livros necessários para as horas litúrgicas.
Onde quer que se encontravam com um sacerdote, sem olhar se era pobre ou rico, eles o reverenciavam humildemente, como Francisco lhes havia ensinado.
E quando paravam nalgum lugar, preferiam pedir hospedagem aos padres, não ao povo.
41. Se o sacerdote não os podia receber em sua casa, informavam-se: "Quem é que neste lugar, pessoa espiritual ou temente a Deus, pode receber-nos honestamente em sua casa?" Com o correr do tempo, o Senhor inspirava a algum bom cristão em cada cidade ou nas aldeias, para preparar-lhes uma habitação; até que eles, mais tarde, construíram as suas habitações nas cidades e nas regiões.
O Senhor dava-lhes palavra e espírito conforme as necessidades, onde estivessem em condições de proferir palavras capazes de penetrar o coração de muitos ouvintes, mais dos jovens do que dos anciãos. Aqueles deixavam pai, mãe e haveres e seguiam-nos tomando o hábito da Ordem. E então se cumpriu literalmente a palavra do Senhor no Evangelho: "Não vim trazer a paz à terra, mas a espada. Pois vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe" (Mt 10,34-35). Aqueles que os frades recebiam, eram trazidos ao bem-aventurado Francisco, que lhes impunha o hábito.
Do mesmo modo, muitas moças e viúvas, ouvindo a pregação dos frades, vinham pedir conselho: "E nós, o que podemos fazer? Não é possível ficar convosco. Dizei-nos então como devemos fazer para salvar nossa alma". Para tal fim foram construídos mosteiros de clausura em cada cidade, onde viviam em penitência. E um dos frades era encarregado do ofício de visitador e animador das reclusas.
Da mesma forma diziam os casados: "Nós temos a esposa, que não podemos mandar embora. Portanto, ensinai-nos o caminho da salvação". Assim nasceu o que se chama a Ordem da Penitência, aprovada pelo Sumo Pontífice.
CAPITULO 10
Como os cardeais, favoráveis aos frades,
começaram a dar-lhes conselhos e ajudá-los
42. O venerável Cardeal João de São Paulo, que muito freqüentemente dava conselho e apoio a Francisco, elogiava, diante dos outros cardeais, os méritos e a atividade de Francisco e de todos os seus irmãos. Sabendo disso, aqueles dignitários tiveram uma afetuosa simpatia pelos frades, e cada um deles queria ter um desses irmãos consigo, já não como servidor, mas por causa da devoção e o grande amor que sentiam para com eles.
Certa vez, quando o bem-aventurado Francisco chegou à Cúria Papal, cada um dos cardeais pediu-lhe um frade; o santo concedeu-lhos benevolamente.
Chegando o dia de sua morte, o díto Cardeal João descansou em paz, porque tinha amado os pobres de Deus.
43. Então o Senhor inspirou um cardeal de nome Hugolino, bispo de Óstia, que intimamente amou Francisco e seus frades, não só como um amigo, mas realmente como um pai. Francisco se apresentou a ele por tê-lo ouvido falar favoravelmente. E Hugolino o recebeu dizendo: "Eu me ofereço a vós para conselho, ajuda e proteção, como quereis; e quero que vos lembreis de mim em vossas orações".
O bem-aventurado Francisco rendeu graças ao Altíssimo, que havia inspirado o coração de Hugolino a fazer-se conselheiro, colaborador e protetor, e lhe disse: "Quero, espontaneamente, ter-vos como pai e senhor meu e de todos os meus irmãos, e que todos os frades rezem a Deus por vós". Em seguida convidou-o a participar do capítulo de Pentecostes. Ele aceitou e dele participou cada ano.
À sua chegada, os frades vinham ao seu encontro em procissão. Chegando perto deles, apeava do cavalo e seguia a pé, juntamente com os frades, até a igreja, em cuja devoção fazia uma volta ao seu redor. Em seguida, fazia um sermão, celebrava a missa, e o bem-aventurado Francisco cantava o Evangelho.
CAPITULO 11
Como a Igreja o protegeu dos perseguidores
44. Já haviam decorrido onze anos desde o início da Ordem e os religiosos se haviam multiplicado; foram eleitos os ministros e enviados, junto com alguns irmãos, para quase todas as regiões da cristandade.
Em certas regiões eram bem acolhidos, mas não lhes era permitido edificar casas. Em outros lugares, ao contrário, eram enxotados, porque tinham medo que se tratasse de hereges (o papa ainda não tinha confirmado, mas apenas concedido uma aprovação para experiência de sua Regra). Por isso sofreram muitas tribulações por parte do clero e dos leigos, foram atacados por ladrões, e voltaram para junto de São Francisco aflitos e abatidos. Tais adversidades tiveram de sofrer na Hungria, na Alemanha e em outras regiões além dos Alpes.
Os que voltavam deram a notícia dessas desgraças ao cardeal de Óstia. Este mandou chamar Francisco, levou-o ao Papa Honório - pois Inocêncio III já tinha passado para vida melhor - e lhe pediu para compor uma outra Regra e confirmá-la, apondo-lhe o sigilo papal.
Nesta Regra foi prolongado o prazo do capítulo geral, para evitar aos frades o cansaço demasiado: estes já estavam espalhados também em regiões longínquas.
45. Francisco pediu ao papa "um cardeal, que fosse guia, protetor e corretor da Ordem", como está estabelecido na dita Regra.
Foi-lhe concedido o supradito Cardeal Hugolino.
Por disposição do pontífice, para amparar os frades com sua proteção, o cardeal mandou cartas a muitos prelados, em cujas dioceses tinham sofrido perseguições, pedindo-lhes para não contrariar os frades, mas para aconselhá-los e ajudá-los a pregar e ficar em suas regiões, tratando-se de homens excelentes e religiosos aprovados pela Igreja. Vários outros cardeais enviaram cartas com o mesmo fim.
E assim, num outro capítulo, Francisco deu autorização aos ministros para receberem irmãos na Ordem. E os irmãos voltaram para as províncias, levando consigo a Regra confirmada e a carta do cardeal. Os bispos, vendo a Regra aprovada pelo papa e o testemunho favorável de Hugolino e de outros cardeais, deram-lhes permissão para morar e pregar no meio de seus fiéis.
Muitos, vendo a atitude humilde dos frades, a virtude deles, e ouvindo as suas palavras tão atraentes, vieram ter com eles e receberam o hábito franciscano.
Francisco, ao ver a confiança e o afeto que o cardeal de Óstia alimentava para com os frades, amava-o de coração, e quando lhe escrevia costumava saudá-lo assim: "Ao venerável pai em Cristo, bispo de todo o mundo".
Não se passaram muito anos, e o dito cardeal, conforme a profecia de São Francisco, foi eleito para a Sé apostólica, com o nome de Gregório IX.
CAPITULO 12
Morte de São Francisco, seus milagres e canonização
46. Haviam passado vinte anos desde que Francisco se consagrara a uma vida de perfeição; agora o Senhor misericordioso quis que ele repousasse de suas fadigas. De fato se cansara muito nas vigílias, nas orações e jejuns, nas súplicas, nas pregações, nas viagens, nas preocupações, na compaixão para com o próximo. Havia oferecido seu coração totalmente a Deus, seu Criador, e o amava do profundo de sua alma e com todas as suas entranhas. Levava a Deus no coração, louvava-o com, a boca, glorificava-o com as ações. E se alguém proferia o nome de Deus, dizia: "O céu e a terra deviam inclinar-se a este nome".
Querendo Deus mostrar a todos o amor com que o amava, assinalou o corpo de Francisco com as chagas de seu Filho diletíssimo. E porque o servo de Deus desejava entrar no templo da glória divina, o Senhor o chamou para junto de si. Assim Francisco passou, gloriosamente, deste mundo para o Pai.
Depois da morte dele apareceram muitos sinais e milagres no meio do povo, de maneira que os corações de tantos, que tinham ficado indiferentes e não acreditavam naquilo que Deus havia mostrado em seu servo, enterneceram-se e exclamaram: "Considerávamos sua vida como uma loucura, e sua morte como uma vergonha. Ei-lo agora acolhido no número dos filhos de Deus e sua herança está entre os santos!" (Sb 5,4-5).
47. O venerável senhor e pai, Papa Gregório, venerou, também depois da morte, o santo que amara em vida. E vindo ele, juntamente com os cardeais, ao lugar onde estava enterrado o corpo de Francisco, colocou o nome dele no catálogo dos santos.
Depois disso, muitos homens famosos e nobres, abandonando tudo, converteram-se ao Senhor com sua esposa, filhos, filhas e a família inteira. As mulheres e as filhas entraram nos mosteiros, os pais e os filhos tomaram o hábito dos frades menores.
Assim se cumpriu o que Francisco tinha predito: "Dentro de não muito tempo virão ter conosco muitos sábios, prudentes e nobres, e ficarão conosco".
EPILOGO
48. E agora vos peço, caríssimos irmãos, que mediteis amavelmente nos feitos de nossos pais e irmãos, que procureis compreendê-los e empenhar-vos em traduzi-los em obras de vida, para merecerdes tornar-vos participantes da glória celeste com eles. A esta glória nos conduza Nosso Senhor Jesus Cristo.
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