«Omnis qui irascitur fratri suo, reus erit iudicio – “Todo aquele que se irar contra o seu irmão, será réu no seu juízo” (Mateus 5, 22).
Sumário: É com razão que Jesus Cristo disse que, quem se encoleriza, se torna réu do juízo; porquanto a ira faz o homem cair em mil excessos, sem que lhe deixe ver o mal que faz. Roguemos ao Senhor que nos livre desta paixão, sejamos mansos para com todos; e façamos com a nossa língua o contracto segundo o qual nos guardaremos de falar, quando se diga contra nós alguma coisa que nos possa irar. Se por desgraça nos tivéssemos irado, não se ponha o sol sobre a nossa ira.
I. Quantos males nascem do vício insensato da ira! Ela é semelhante ao fogo, porque assim como o fogo é veemente na sua força destrutiva, e logo que pega, impede a vista pelo fumo que dele sai, assim a ira faz o homem cair em mil excessos, e não lhe deixa ver o que está a fazer, e assim, conforme à palavra de Jesus Cristo no Evangelho de hoje, torna-o réu do juízo: Ominis qui irasciturr fratri suo, reus erit indicio.
É tão prejudicial ao homem a ira, que ainda mesmo exteriormente o desfigura. Ainda que seja a pessoa mais bela e graciosa do mundo, quando a cólera a transporta, será, como diz São Boaventura e confirma a experiência, semelhante a um monstro, a uma fera que atemoriza. Portanto, se a ira nos desfigura aos olhos dos homens, quanto mais nos desfigurará aos olhos de Deus.
Ira viri; escreve São Thiago, institiam Dei non operatur. Isto quer dizer que as obras de um homem iracundo não podem harmonizar-se com a justiça divina, nem, por conseguinte, estar isentas de pecado, talvez mesmo grave. Sim, porque a ira, no dizer de São Jerónimo, faz o homem perder a razão, e obrar cegamente como um louco ou uma fera. Fá-lo cair em pecados de murmurações, de injustiças, de vinganças, de blasfémias, de escândalos e de mil outras iniquidades. Numa palavra, conclui o mesmo Santo, é pela ira que entram na alma quase todos os vícios: Omnium vitiorum ianua est iracundia.
Ai, porém, dos iracundos! ao mesmo tempo que os desgraçados se inflamam em cólera contra o próximo, Deus não somente se afasta deles pela subtracção das graças, mas arma também a sua mão com o açoite do castigo para puní-los neste mundo e no outro. Além disso, os iracundos, nos dias da sua vida, passam uma existência infeliz, por estarem sempre agitados como numa tempestade.
II. Sendo tão numerosos e funestos os prejuízos que o vício da ira causa à alma, necessário é que usemos de todo o cuidado em refreá-la, afeiçoando-nos à mansidão, que é a virtude predilecta de Jesus Cristo. Dizia São Francisco de Sales: “O que se deixa levar por leves movimentos de ira, em breve se tornará furioso e insuportável”. - Devemos, portanto, conforme à exortação de São Paulo, vestir-nos de entranhas de misericórdia para com o próximo, e suportar os seus defeitos, lembrando-nos de que ele deve também suportar os nossos, que são talvez mais graves.
Quando recebermos algum agravo, respondamos com brandura, ou, melhor ainda, abstenhamo-nos de responder, à imitação de São Francisco de Sales, que tinha feito com a sua língua a convenção que havia de ficar calado quando se dissesse alguma coisa que o pudesse encolerizar. - Quando, porém, por desgraça, a ira tivesse entrado no nosso coração, tenhamos cuidado de não a deixar descansar ali: Sol non occidat super uracundiam vestram – “O sol não se ponha sobre a vossa ira”. E Jesus Cristo conclui o Evangelho de hoje com estas palavras: “Se, estando a apresentar a tua oferta diante do altar, te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, larga a tua oferta ao pé do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e depois virás fazer a tua oblação”.
Mas, sobretudo, para que não nos deixemos dominar por alguma paixão, e em particular pela ira, roguemos muitas vezes ao Senhor com o Eclesiástico: Não me entregues a uma alma sem pejo e sem recato: Animo irreverenti et infrunito ne tradas me.
Ó Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo, suplico-Vos, não permitais que eu seja escravo do vício da ira; infundi no meu coração o espírito de mansidão e de doçura, afim de que eu não ofenda a ninguém e perdoe aos que me ofendem. – “Ó Deus, que preparastes bens invisíveis para os que Vos amam, infundi nos nossos corações o afecto do vosso amor, para que, amando-Vos em tudo e sobre tudo, alcancemos as vossas promessas, que excedem todos os desejos”. Fazei-o pelos méritos de Jesus Cristo e pela intercessão de Maria Santíssima.»
(Santo Afonso Maria de Ligório, "Meditações Para todos os Dias e Festas do Ano")
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